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Resumo
Resenha de Eurema Gallo de Moraes e Mônica Medeiros Kother Macedo, Vivência de indiferença: do trauma ao ato-dor. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2011, 100 p.


Autor(es)
Berta Hoffmann Azevedo
é psicanalista, mestre em psicologia clínica pela PUCSP, professora e supervisora clínica da Faculdade de Psicologia da Universidade São Marcos, membro filiado do Instituto de Psicanálise da Sociedade Brasileira de São Paulo e autora do livro Crise pseudoepiléptica: corpo. histéria e dor psíquica (Coleção Clínica Psicanalítica) da Casa do Psicólogo.

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 LEITURA

Por uma metapsicologia do trauma

[Vivência de indiferença: do trauma ao ato-dor]


Towards a metapsychology of the trauma
Berta Hoffmann Azevedo

"Do que trata a Psicanálise se não dos efeitos de uma história?" (p. 34) É com essa questão em mente que Eurema Gallo de Moraes e Mônica Medeiros Kother Macedo desenvolvem o livro Vivência de indiferença: do trauma ao ato-dor. Partindo da clínica de pacientes marcados pelo traumático, cujo efeito se apresenta em ato, as autoras uniram esforços para refletir conceitualmente em Psicanálise de modo a encontrar a escuta e o manejo na justa medida para tais analisandos. E, para nossa sorte, brindam-nos com a possibilidade de acompanhar em livro o resultado dessa empreitada.

 

A principal contribuição do livro consiste na proposta, ao mesmo tempo inventiva e madura, de uma metapsicologia do trauma que aproveita, em um arranjo original, as construções de Freud e Ferenczi e de autores contemporâneos como Bleichmar, Hornstein e Figueiredo, e que conduz a um tipo de escuta analítica condizente às formulações decorrentes da investigação teórica - esta, por sua vez, motivada pela clínica.

 

Atentas à responsabilidade de transformar o que se encontra na clínica em produção escrita, passível de troca entre colegas e que permita avançar em Psicanálise, Eurema e Mônica se preocupam em demonstrar com clareza didática os conceitos e sua amarração a conceitos freudianos já consagrados. A escritura do texto possibilita aos leitores acompanhar de perto os movimentos teóricos, o que resulta numa experiência de leitura comparável à fruição de uma conferência bem proferida.

 

No Capítulo i, "Trauma: enlaces teóricos e desdobramentos da técnica", as autoras fazem trabalhar as proposições freudianas, e afirmam, já de início, que, apesar de uma leitura superficial sugerir que Freud tivesse abandonado suas hipóteses sobre o trauma, o que ele abandona em realidade é a ideia de trauma ligado à cena real de abuso sexual como único entendimento de qualquer padecimento.

 

Como é conhecido de seus leitores, ao longo de suas pesquisas Freud transita por diferentes interpretações acerca do que constitui o traumático, variando os pesos entre os fatores, mas mantendo a ideia de que o trauma se instaura a partir de um excesso, na medida em que o psiquismo é incapaz de elaborá-lo por seus meios ordinários. A produção desse fenômeno, para Freud, não é determinada universalmente, mas se insere numa linha de séries complementares - fatores que se somam, advindos do ambiente, da história sexual infantil e da constituição pré-histórica, e cujas relações complementares compõem o espaço de ação daquilo que poderá acarretar, em cada psiquismo, um excesso traumático. O peso dos fatores da série oscila ao longo da obra freudiana, mas mantém-se inalterada a ideia de complementação entre eles na formação de diferentes estruturas sobre as quais a variável do excesso incide. É dessa maneira que a metapsicologia freudiana deixa em aberto o que em si determinaria o excesso. Seria o impacto do acontecido? A fragilidade constitucional de quem o vive? Eurema e Mônica procuram lançar luz exatamente nessa abertura deixada por Freud, formulando teoricamente um tipo de vivência que produz excesso, observada em sua clínica.

 

No Projeto para uma psicologia científica, no início de sua obra, Freud afirma que o bebê, desamparado, precisa do encontro com um outro significativo que apazigue suas necessidades mediante ação específica e deixe inscrito nele as marcas da vivência de satisfação. Recuperando dessa concepção freudiana o caráter de realidade da vivência de satisfação, as autoras consideram esse não um momento mítico, e sim algo efetivamente vivido. Em se tratando do vivido, as autoras sublinham a importância das condições desse outro que se encarrega do bebê, e suas possibilidades de dar ao bebê a chance de ser visto como outro.

 

É nesse sentido que o Capítulo ii, "A vivência de indiferença e o ato-dor: articulações de intensidades", é um dos momentos-chave do livro, em que as autoras apresentam seus conceitos originais, imersos em uma tradição freudiana rigorosa. Apropriando-se do conceito freudiano de vivência de satisfação, Eurema e Mônica formulam o conceito de vivência de indiferença, que seria aquela vivência cuja marca ficaria impressa no psiquismo em constituição a partir do encontro com um adulto impedido de reconhecer a alteridade no bebê e que, com isso, acrescenta um elemento de excesso que será reproduzido posteriormente.

 

Essa "vivência marcada pela ausência do reconhecimento da diferença que a presença do outro aporta" (p. 17) será a matriz do trauma, e dela resulta o segundo conceito fundamental trazido no livro: o ato-dor, via de expressão de intensidades. Se o encontro com o outro inaugural "deixa o Eu à mercê de intensidades" (p. 46), essas terão de ser metabolizadas, e seu excesso poderá ter como resultado o ato evacuativo, nomeado pelas autoras como ato-dor, que procura dar conta do atordoamento psíquico do sujeito. Esse ato reproduz a impressão do excesso experenciado na vivência de indiferença, atualizando um circuito pulsional da ordem do desligado e do mortífero.

 

No Capítulo iii, "Construção do si mesmo no cenário de indiferença", é apresentada a singular construção do si mesmo nos casos marcados pelo traumático do desmentido da diferença no momento original de desamparo. Esse capítulo tem como ponto de ancoragem principal o conceito freudiano de Narcisismo, que fundamenta a relevância da presença do outro no processo de estruturação psíquica do sujeito.

 

Assim, no trabalho desses conceitos, as autoras vão tecendo uma metapsicologia do trauma que resgata, na Psicanálise, o "efeito tanático daquilo que efetivamente foi experenciado" (p. 15), sublinhando assim a relevância do acontecido como algo que se inscreve psiquicamente no contexto do trauma e constitui elemento inicial para uma matriz a ser reproduzida.

 

Trata-se de uma construção metapsicológica oriunda de uma clínica viva, que coloca inquietações, que confronta o não saber e que leva à produção. Essas mesmas contribuições no campo metapsicológico, por sua vez, voltam a enriquecer a clínica, trazendo novas potencialidades e formas de estar com esses pacientes, o que faz com que a própria Psicanálise se vitalize. O cenário clínico de onde partem as interrogações que compõem o livro é apresentado no Capítulo iv, "As manifestações de dor em ato e a potencialidade clínica", em que também as autoras detalham a escuta apropriada para tal situação. Assim é que, neste capítulo, encontramos a indagação original e o valor efetivo do livro.

 

As vinhetas clínicas, apesar de apresentadas de forma bastante resumida em razão do cuidado com a exposição dos casos, ilustram bem o traumático da vivência de indiferença e o nefasto do ato-dor. "O bebê Ivo confronta a mãe com a frustração de seu desejo de ser mãe de uma menina. No imperativo narcisista materno, Ivo é vestido como uma menina nos dois primeiros anos de sua infância." O que fazer com o excesso de ter tido negado o direito ao reconhecimento de sua existência independente dos desejos arbitrários da mãe?

 

Ao pensar os efeitos de experiências como essa, Eurema e Mônica destacam o cuidado necessário na escuta, já que confundir o ato-dor com um gozo perverso seria uma violência que deixaria o Eu novamente sem espaço para pensar-se, uma vez que o ato-dor, embora comporte uma carga de destrutividade reatualizada, é a via de expressão do conflito na demanda por diferenciação.

 

Por essa razão, as autoras defendem uma escuta ética que assegure, desde o início, o direito à diferença do outro, e que o ajude a reconhecer aquilo que se encontra desapropriado devido ao efeito violento do encontro primordial. Nesses casos, afirmam como proposta técnica, além da ética do cuidado (conceito trabalhado por autores como Maia, Kupermann e Figueiredo), a modalidade de escuta sustentada na ética da contratransferência. O trabalho cuidadoso com os casos e a modalidade de encontro analítico apresentada no livro falam do importante desafio de estar próximo sem se tornar sugestivo, de ser rigoroso sem rigidez, alcançando neutralidade sem indiferença - e, assim, permitindo que o paciente refaça, pelo processo analítico, o percurso designado no título do livro, do trauma ao ato-dor, de modo a romper o ciclo aprisionado em direção à escritura de novos trajetos no espaço branco da página, para além do ato.

 

O livro encerra com o capítulo v, "Sobre o devir", que sublinha a importância da capacidade interrogativa dentro da Psicanálise e sua influência para o investimento no futuro dessa tão fascinante ciência e arte da escuta. Ocupadas com problemas clínicos encontrados na atualidade, e não desprezando os efeitos da cultura sobre a subjetividade, as autoras deste livro afirmam que a complexidade humana não pode ficar restrita à influência de uma época. Esse ponto de vista está explicitado nas linhas que seguem:

 

Confundir a influência do real sob o psiquismo com uma construção de subjetividade determinada unicamente por padrões sociais e culturais de uma época incorre no equívoco de deixar à margem aspectos da complexidade humana que independem do tempo histórico (p. 19).

 

Motivado pelos problemas que a clínica psicanalítica contemporânea impõe, o livro alça-se à investigação metapsicológica mais ampla, com a liberdade de quem se permite produzir em Psicanálise alinhavada com a segurança de quem tem a consistência adquirida pelos anos de clínica e de compromisso com a transmissão da Psicanálise. Disso resulta a envergadura do livro.

 

Numa linhagem clínica preocupada com uma escuta que faça diferença na apropriação psíquica do sujeito, as autoras enfrentam os desafios clínicos inaugurando novos desdobramentos das zonas inesgotadas da obra de Freud. Sem a intenção de exaurir as proposições freudianas e prover modelos estanques, as autoras convocam o analista leitor a lançar-se também ele em uma trajetória investigativa, buscando ampliar suas ferramentas teóricas e práticas. A disponibilidade para aceitar tal convocatória é o que nos mantém analistas vivos, que se deixam afetar pela clínica e que têm a coragem de compartilhar o resultado articulado dessa afetação em forma de livro.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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