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Resumo
Resenha de Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosenbaum (orgs.), Escritas do Desejo – Crítica Literária e Psicanálise. Cotia, Ateliê Editorial, 2011, 248 p.


Autor(es)
Renato Tardivo
é psicanalista e escritor. Mestre e doutor em Psicologia Social pela usp. Pós-doutorando em Psicologia da Saúde (Metodista/capes). Autor, entre outros, de Porvir que vem antes de tudo– literatura e cinema em Lavoura arcaica.

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 LEITURA

Literatura e Psicanálise: o alimento do desejo

[Escritas do Desejo: Crítica Literária e Psicanálise]


Literature and Psychoanalysis: the food of desire
Renato Tardivo

Escritas do Desejo - Crítica Literária e Psicanálise (Ateliê Editorial) é o tipo de livro indispensável àqueles que se interessam pela relação - fecunda e ambígua - entre literatura e psicanálise. Mas será útil também ao leitor que, interessado em cultura e ciências humanas, se dispuser a lançar-se em busca do novo.

 

Onze são os ensaios que compõem o volume - organizado por Cleusa Rios P. Passos e Yudith Rosembaum. Além das organizadoras, assinam os capítulos: Adélia Bezerra de Menezes, Leda Tenório da Motta, Noemi Moritz Kon, Camila Salles Gonçalves, Philippe Willemart, Renato Mezan, Leyla Perrone-Moisés, Maria Rita Kehl e Márcia Marques de Morais. Como se vê, autores consagrados.

 

Conforme escrevem as organizadoras na Breve Apresentação, a maioria dos ensaios "compôs um colóquio sobre ‘Crítica Literária e Psicanálise', organizado em 2008, pelos departamentos de Teoria Literária e Literatura Brasileira da usp" (p. 9). Talvez por isso, em que se pese a densidade das reflexões, a leitura seja fluida e agradável.

 

O conjunto, além da Breve Apresentação, é dividido em três partes: A Experiência e o Verbo, A Palavra Encobridora, A Emergência da Palavra. A primeira parte traz ensaios que mapeiam as articulações entre literatura e psicanálise enquanto uma problemática relevante. Vejamos, a propósito, o capítulo de abertura, "A Palavra Poética: Experiência Formante", de Adélia Bezerra de Menezes. Ao finalizar a reflexão com a análise de poemas de Ferreira Gullar ("Traduzir-se") e de Adélia Prado ("Arte"), Adélia Bezerra de Menezes é, também ela, inspiradora: "Essa coisa visceral, em que lateja um ritmo, está na imagem da tripa, mas também na do coração: o que o caracteriza, quando pensamos nele, é a sua presença acústica, antes de mais nada: o tum, tum; tum, tum: o pulsar" (p. 37). Com efeito, tanto a literatura quanto a psicanálise lidam com o ritmo da vida - na e pela palavra.

 

Noemi Moritz Kon, ainda na primeira parte, habita a "íntima" e "conflituosa" relação entre "a psicanálise e a arte - e a literatura em particular" (p. 63). Sua reflexão explora desde as ambiguidades de Freud com relação à figura do artista e à própria arte, até as aproximações e limites entre a psicanálise e a literatura, sobretudo a fantástica, por meio, dentre outros, de Merleau-Ponty, Barthes e Foucault. Escreve Kon: "Penso que, apesar das inclinações de Freud e de seu temor quanto a uma cumplicidade com o trabalho criador do artista, compreendido como anverso do trabalho do cientista que ele pretende prioritariamente ser, o que liga o ato psicanalítico ao ato artístico é justamente a capacidade criadora" (p. 71). Na perspectiva adotada pela autora, portanto, a psicanálise é privilegiada enquanto um fazer formativo, ou seja, que se faz ao ser feito - perspectiva que problematiza, com densidade teórica e clínica, as leituras positivistas que ainda hoje se atribuem à psicanálise.

 

Se a Parte i procura mapear um campo mesmo de diálogo entre literatura e psicanálise, a Parte ii, A Palavra Encobridora, aborda problemas de pesquisa, ou seja, as reflexões são norteadas por uma questão. Sugestivamente, o ensaio que abre a seção, de Camila Salles Gonçalves, dialoga o tempo todo com o texto de Freud "Lembranças Encobridoras" (1899), em companhia, dentre outros, de Theodor Adorno, Isaias Melsohn e Fabio Herrmann. Vale citar o arremate de Gonçalves: "[...] há uma fabricação inconsciente dessa recordação bucólica, que encobre outros sentidos sob sua aparente banalidade. Acompanha um tipo de verdade que a literatura freudiana compõe, ainda que se esmere em demonstrar que o texto está além do princípio do prazer do próprio texto" (p. 94, grifo meu). Isto é, à ânsia de elevar a psicanálise a um, digamos assim, estatuto de ciência, o pai da psicanálise cai (felizmente) na própria armadilha. Desencobre-se em Freud, a partir de Freud, uma verdade mais afeita à literatura do que à ciência.

 

Em "O Desejo e a Criação Literária (Relações: autor/texto, texto/leitor)", Cleusa Rios P. Passos se debruça sobre os "laços entre autor/obra/leitor" (p. 112). Para analisar aspectos da gênese e criação do objeto literário, a autora convoca Clarice Lispector e Julio Cortázar, tomando em consideração depoimentos dos autores acerca dos próprios textos, isto é, refletindo "também sobre os efeitos provocados por sua recepção no autor quando convocado a adotar a posição de leitor da própria obra" (p. 112-113). Atitude, com efeito, arriscada e necessária. Arriscada porque, como sabemos, o psicanalista que se volta à obra de arte precisa de cautela para não tomá-la pela vida do artista - tema, aliás, do capítulo seguinte, "O Inferno da Autobiografia", de Philippe Willemart, que escreve: "Muitas vezes, o crítico literário que pretende ler apoiado na teoria psicanalítica busca retomar a vida amorosa e as pulsões do escritor ou fatos concretos da infância, estabelecendo aproximações indevidas entre vida e obra" (p. 115). Realmente, conexões apressadas entre vida e obra acabam por distorcer as apreciações de ambas. Contudo, conforme nos lembra Passos, tampouco devemos nos furtar às "associações dos envolvidos na ciranda" (p. 112); tomar em consideração essas associações "assinala a necessária passagem da primeira leitura [...] para o distanciamento crítico imbuído de outros saberes [...], instaurando, paralelamente à nossa visão pessoal e lacunar, a virtual pluralidade de sentidos da invenção literária" (p. 113).

 

A questão-título que norteia o ensaio de Renato Mezan é "Por que Lemos Romances Policiais?". De acordo com o autor, diferentemente de nossa reação ao tomar contato com crimes em noticiários, quando estamos diante de uma ficção "o que queremos saber é como e por quem o crime foi cometido" (p. 127-128). Com a erudição e o cuidado já conhecidos, Mezan traça um histórico do romance policial, desde Edgard Allan Poe até autores contemporâneos, o brasileiro (também psicanalista) Luiz Alfredo Garcia-Roza entre eles, criador do já célebre delegado Espinosa. O psicanalista, então, investiga diversas formas de prazer envolvidas na recepção estética do gênero, cuja maior virtude talvez seja a de marcar a permanência da "criança em nós" (p. 151). O investigativo e saboroso ensaio pode ser lido, também ele, da perspectiva de um romance policial: como e por quem o crime de gostarmos tanto das histórias policiais foi cometido?

 

A Parte iii, A Emergência da Palavra, apresenta análises de poéticas, conjunto de obras de um autor, ou um conto literário, sempre na interface da literatura com a psicanálise. No ensaio "Bovarismo e Modernidade", Maria Rita Kehl vale-se da expressão fundada a partir de Emma, célebre personagem do romance Madame Bovary, de Flaubert, para refletir o bovarismo nacional presente em Machado de Assis e a permanência desses traços no contexto contemporâneo. Mas não nos apressemos. O que seria bovarismo? Leiamos com a psicanalista: "O termo já se incorporou ao senso comum, mas vale lembrar que é uma expressão cunhada pelo psiquiatra francês Jules de Gaultier em 1902 [...] a fim de designar ‘todas as formas de ilusão do eu e insatisfação, desde a fantasia de ser um outro até a crença no livre-arbítrio'" (p. 178). Mas, como nos lembra Kehl, a possibilidade de tornar-se um outro, nas sociedades capitalistas, está inscrita no laço social. O problema está colocado, portanto. E, se "tornar-se um outro implica reconhecer o caráter simbólico da dívida para com os antepassados, de modo a não se deixar capturar pelas armadilhas da culpa" (p. 179), o problema transforma-se em "uma das figuras mais expressivas da subjetividade moderna" (p. 180), podendo ser encaminhado, também, pela psicanálise.

 

Sugestivamente, o ensaio "Construindo um Sujeito: Leitura de ‘Menino a Bico de Pena', de Clarice Lispector", escrito por Yudith Rosenbaum, fecha o livro. Rosenbaum realiza uma sensível e cuidadosa análise do conto de Clarice, presentificando - tal qual a escritora - a narrativa por meio de uma escrita que comunga de uma "atualidade fugidia" (p. 221). Assim, é a análise mesma que também ganha estatuto de sujeito, abrindo-se à alteridade que a leitura do conto proporciona. Há, nessa medida, uma espécie de atestado recíproco de existência: letras que se formam a bico de pena.

 

E muito mais poderia ser dito a respeito destes e dos demais ensaios de Escritas do Desejo - Crítica Literária e Psicanálise. Se, como diz Lacan a partir de Hegel, o desejo é o desejo do outro, a leitura dessas escritas irá, com efeito, nutrir o leitor desejoso por compartilhamento - um dos alimentos de que mais necessitamos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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