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Resumo
[Ensaios Psicanalíticos]Resenha de Flávio Carvalho Ferraz, Ensaios Psicanalíticos. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2011, 345 p.


Autor(es)
Belinda Mandelbaum
é psicanalista, professora associada do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da USP, onde coordena o Laboratório de Estudos da Família, Relações de Gênero e Sexualidade, autora do livro Psicanálise da Família (São Paulo, Casa do Psicólogo, 2010). 

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 LEITURA

Andando pelas margens

[Ensaios Psicanalíticos]


Walking along the borders
Belinda Mandelbaum

Há um fio andarilho que percorre o conjunto de ensaios que Flávio Carvalho Ferraz reuniu neste livro, e que antes se apresentavam dispersos como capítulos, artigos e participações suas em diversos fóruns psicanalíticos. O fio se lança logo no início, enunciando de onde parte: no primeiro capítulo, "A Psicanálise entre as ciências da loucura", o autor mapeia os caminhos que a loucura percorreu na História, em seu difícil diálogo com a razão, até os dias de hoje, distinguindo uma ciência que fala sobre a loucura, mas que se pretende separada dela, de uma ciência da loucura que se expressa a partir de sua interioridade. À primeira corresponderia em linhas gerais a Medicina, em particular a Psiquiatria, cuja história no Ocidente conhecemos, dentre outras genealogias, através de Foucault (1961). Flávio toma o outro caminho, que percorrerá ao longo do livro, para apresentar uma Psicanálise que nasce ao resgatar as dimensões trágicas do fenômeno psíquico, abrindo espaços para a sua expressividade. Trata-se de uma forma de conhecimento da loucura que emerge, como ele nos mostra, a partir da experiência vivida com ela, tal como expressa na arte, na literatura e na voz das primeiras histéricas de Freud. As formas de conhecimento humano que abrem espaço para as intuições, os devaneios, as visões, as fantasias e os delírios nos permitiram aproximar de tudo que a razão pôs à margem, como insensato.
 

Flávio parte de sua experiência com "loucos de rua" - os "andarilhos da imaginação", como ele os nomeou em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da usp em 1999 e publicada em livro em 2000[1] - para, passo a passo no decorrer das quase duas décadas que a sua produção escrita abarca até aqui, debruçar-se com as ferramentas teóricas e técnicas da Psicanálise sobre a perversão, a normopatia, as tendências antissociais, a violência e o medo, a psicossomática, a alienação no trabalho e a formação psicanalítica. Dizer que o autor inicia seus trabalhos com uma reflexão sobre a loucura é pouco específico. Ele se aprofunda no exame de uma categoria social, os loucos de rua, e o faz com um olhar fascinado que permite que estes emerjam em seu texto como portadores de aspectos que nos encantam. Ele inicia o segundo capítulo, "O louco de rua na literatura", dizendo que "este artigo inspira-se numa impressão que me acompanha desde menino: o fascínio pelos loucos de rua de minha cidade, com suas características tão fantásticas e, ao mesmo tempo, tão humanas" (p. 63). O seu trabalho com o tema nos mostra que ele não trata os loucos como categoria à parte, como objetos exteriores ao seu e também ao nosso olhar. Porque se interessa pelo próprio fascínio, pelo encantamento que o louco de rua exerce no outro, no sujeito da norma, aquele integrado aos modos de vida socialmente estabelecidos, que ora acolhe e se identifica, ora se afasta e rejeita a loucura percebida no andarilho. Flávio vai em busca de expressões desse fascínio na literatura brasileira e, conforme as ilustrações literárias vão se abrindo à nossa leitura, somos também envolvidos por este encantamento com as formas poéticas através das quais as personagens "loucas de rua" manifestam sua miséria e sua riqueza, sua violência, mas também seu cuidado com o outro, seus sentimentos de rejeição e de acolhimento, de amor e de ódio. Através dos olhares dos escritores que Flávio nos apresenta, os loucos de rua partilham uma humanidade que também é nossa e que permite que a nossa ganhe expressão. Os marginais que Flávio nos apresenta com a ajuda de nossa literatura fazem um percurso dentro de nós, ganham a nossa empatia e talvez isto contribua para que saiam da marginalidade a que estão condenados. Ao referir-se a uma das formas possíveis de consciência da loucura, a consciência enunciativa, ele diz:

 

Esta forma de consciência reconhece, na loucura, a familiaridade de sua dor. Pode ser a responsável pelo fascínio e pela atração exercidos pela figura do louco, simultâneos e correlatos ao horror e às tentativas de distanciamento. Na passagem de Fogo Morto, de José Lins do Rego (1943), em que a velha sinhá e a mocinha ouvem o canto do cachaceiro Zé Passarinho, fica evidente a identificação entre todos eles na dor melancólica expressa em sua canção. Esta identificação surge em movimentos sinuosos e oscilantes, inicialmente indecisos, que partem de um sentimento triste, ainda difuso. Em seguida, a consciência das mulheres procura afastá-lo para o outro, terminando por deixar transbordar um reconhecimento - ainda que negado e projetado - da dor e da infelicidade próprias (p. 109).

 

Como esses loucos produziram uma impressão em Flávio que o "acompanha desde menino", talvez tenham contribuído também para que ele adentrasse o mundo da loucura e, através dele, chegado à Psicanálise e aos seus achados sobre os modos de funcionamento mental. Este é, pelo menos, o percurso que fazem os seus ensaios no livro, partindo dos trabalhos sobre a loucura e os loucos de rua para adentrar, a cada capítulo que segue, uma diferente manifestação psicopatológica ou um diferente aspecto da metapsicologia psicanalítica, percorrendo todos os textos a impressão da presença de um encantamento pessoal que parece advir hoje do modo como Flávio pensa a Psicanálise e que se explicita, dentre outros momentos, quando ele diz, no último texto do livro, "Algumas consequências da teoria freudiana sobre a ética", cujas ideias fazem parte de seu primeiro trabalho de fôlego no interior dos estudos psicanalíticos - sua dissertação de mestrado, posteriormente publicada na forma de livro[2]: "ao se isentar de qualquer forma de juízo, [a Psicanálise] favorece o surgimento de um espaço para a encenação da fantasia" (p. 338). Na sua obra, loucura de rua, Literatura e Psicanálise são os espaços privilegiados para esta encenação.

 

A empatia com o louco de rua e com as manifestações trágicas da loucura também revela, desde o início de seu percurso, uma certa ética no trabalho com o outro que faz parte agora do ponto de vista e das formas pelas quais ele caminha e se expressa em Psicanálise. Flávio trabalha sempre avançando e ampliando o conhecimento dos mecanismos que subjazem às diferentes patologias, não para categorizá-las em algum tipo de nosografia psicanalítica, mas, ao contrário, para colocar em xeque as categorias que separam os homens em loucos e sãos, perversos e neuróticos, bons e maus, mostrando como elementos de loucura, perversidade e maldade habitam o interior de todos nós. Não faltam exemplos no decorrer do livro para mostrar esta voz que o autor assume no interior da Psicanálise, que se constitui como um ponto de vista a partir do qual ele observa os fenômenos psíquicos. Como no texto "Sacher-Masoch, A Vênus das Peles e o masoquismo", que Flávio publicou originalmente como um estudo introdutório à edição brasileira do livro de Sacher-Masoch e no qual apresenta as contribuições que a Psicanálise, em suas diversas abordagens desde Freud, fez ao estudo das perversões e, em particular, do masoquismo, ele escreve:

 

A experiência não apenas sensorial, mas sobretudo estética, que exala de um livro como A Vênus das peles, faz desta literatura uma produção sofisticada que traz à luz os mistérios mais profundos da alma e da sexualidade humana que, se se fazem presentes na superfície do masoquista, não deixam de existir nas profundezas inconscientes do dito "normal", ou seja, do humano universal. Sadismo e masoquismo, como se depreende da obra destes autores [psicanalistas], não se reduzem a meros sintomas ou doenças - perversões, de acordo com a Psicanálise, ou parafilias, de acordo com o linguajar psicanalítico contemporâneo - , mas refletem amplamente modos de vida (p. 143).

 

É este modo de se aproximar dos modos de vida dos homens que talvez se possa nomear como uma ética que Flávio observa em Psicanálise e pratica em seus ensaios, ao mostrar, já a partir da leitura dos "Três ensaios sobre a teoria da sexualidade", escritos por Freud em 1905, que "o desejo do perverso em nada se diferencia do desejo do neurótico ou do indivíduo ‘normal'" (p. 339). Por outro lado, ao se aprofundar em cada um dos textos na complexidade de cada uma das patologias que elege examinar e nos modos de funcionamento psíquico que as caracterizam singularmente, Flávio acaba por expor a diversidade radical dos modos de ser e das vicissitudes humanas no manejo psíquico dos desejos e das angústias que nos movem. No capítulo 8, "Das neuroses atuais à psicossomática", ele escreve:

 

Freud já alertara - antecipando a importância que isso viria a ter no futuro para as expansões da teoria e da clínica psicanalíticas - para o fato de que havia duas formas bastante diferentes de se processar a excitação psíquica: transformando-a diretamente em angústia - donde resultariam sintomas predominantemente somáticos ou não simbólicos - ou então procedendo-se à mediatização simbólica, donde resultariam sintomas eminentemente psíquicos (p. 217).

 

Nos escritos de Flávio, a investigação de cada uma das patologias ou dos aspectos da metapsicologia com que trabalha também não fica circunscrita a um autor de referência ou a uma escola psicanalítica. Seu compromisso é com a compreensão do fenômeno psíquico e, para tanto, lança mão com liberdade dos textos e autores que o ajudem na construção de seu pensamento. Ele revela amplitude em suas leituras de Psicanálise, bem como lê muita Literatura, Filosofia e Ciências Humanas em geral, constituindo todas estas leituras andaimes de sua escritura. Sua atividade de escrita é inseparável de sua atividade de leitura, o que o torna um autor em permanente diálogo com outros autores - psicanalistas, literatos, filósofos, cientistas sociais - que lhe permitem tratar os objetos psicanalíticos de forma multifacetada. Em seus textos, apresenta ao leitor autores e textos brasileiros e estrangeiros, contemporâneos e clássicos, o que faz da leitura do livro um contínuo aprendizado não apenas sobre os temas específicos tratados em cada capítulo, que ele apresenta com os cuidados de um generoso professor que gosta de ensinar, mas sobre o estado da arte da própria produção psicanalítica, desde Freud aos autores mais contemporâneos. Vale destacar a contribuição de Flavio para pôr em circulação, no interior de seus próprios escritos, nomes e textos de psicanalistas brasileiros que comparecem num diálogo vivo e instigante sobre cada um dos temas, mas que infelizmente são pouco citados entre nós mesmos, mais afeitos a ler e citar autores estrangeiros conhecidos e consagrados.

 

Esta generosa apresentação de autores e textos transborda os textos que compõem este livro. Na coleção Clínica Psicanalítica, da qual ele é editor e este livro faz parte, Flávio apresenta muitos de nós, seus colegas de ofício, como escritores. Arrisco dizer que vários de nós tornaram-se autores graças ao convite de Flávio para escrever e publicar - e não apenas na coleção, mas nas diversas coletâneas que ele já organizou em Psicanálise. De certo modo, somos nós agora os psicanalistas, professores e pesquisadores que Flávio retira de uma certa marginalidade a que estamos condenados como escritores de uma língua, o Português, e habitantes de um país periférico entre outras coisas também em relação a uma produção hegemônica em Psicanálise.

 

Estes Ensaios Psicanalíticos são prova de que boa Psicanálise só se faz andando pelas margens, ouvindo os loucos de rua, lendo poesia e Filosofia, dialogando com os amigos e ensinando os jovens, tudo o que faz o percurso de vida e trabalho de Flávio Ferraz.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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