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 ENTREVISTA

Heitor O’Dwyer de Macedo

Angústia, generosidade com a vida


Heitor O’Dwyer de Macedo
Anguish, generosity with life

Realização: Andréa Carvalho, Bela M. Sister, Danielle Melanie Breyton, Deborah Joan de Cardoso, Janete Frochtengarten e Silvio Hotimsky

São Paulo, Rio de Janeiro, anos 1960 - um jovem de dezesseis anos ousa desejar grande; com seus amigos da época, deseja instaurar um teatro, o Teatro brasileiro.


Paris, anos 1970 - o jovem psicanalista conduz sua prática orientado por uma concepção de sujeito como aquele que, quando confrontado com pressões massificantes e com estratégias de serialização dos indivíduos, faz da psicanálise uma arma revolucionária.


Paris, 1994 - um experiente psicanalista escreve que, para ele, o encontro com o mundo é feito de movimentos de mútuas transformações; relacionar-se com o mundo é transformá-lo, ao mesmo tempo que se é transformado.
Muda o século, muda o milênio.


Paris, 2008 - O psicanalista, autor de livros e artigos, pensa a escrita, sua constante companheira, como algo que não muda o mundo, mas torna o seu enigma mais íntimo.


São Paulo, 2012 - o jovem dos anos 1960 permanece em Heitor e é este que nos fala; fala para Percurso evocando, apaixonadamente, o pensamento de Freud de que "é preciso ser suficientemente neurótico para reconhecer a realidade e suficientemente psicótico para querer modificá-la".


Ter paixão, olhar para o mundo como um constante desafio, encarar a vida como criação e recriação, fazem com que Heitor seja uma espécie de funâmbulo, a andar e voltear na corda dos excessos, em um cai, não cai... Não, não cai! "[...] o excessivo namora com o patológico, mas pode namorar com a vida", diz-nos ele. Corre-se riscos, é certo. Mas, bom aramista, Heitor sabe de seu ofício; consegue manter-se em dinâmico equilíbrio, passo a passo no fio; tem a angústia como eixo de sustentação e apoia-se com firmeza e consistência na Metapsicologia.


Heitor não se perde em seus entusiasmos. Pensa que, sem dúvida, são os marcos teóricos que organizam o espaço de pensamento do analista e, fundamentado no rigor da teorização de Piera Aulagnier, outorga à Metapsicologia o lugar da reflexão privilegiada sobre o encontro analítico.


O início de sua caminhada, como diretor de atores, faz Heitor ter em Stanislavski uma referência importante em seu processo de formação e, em Brecht, a inspiração para pensar no "corte de cenas" no trabalho analítico. Diz-nos ele, em seu livro Do amor ao pensamento: "[...] se uma prática brechtiana do teatro pode ser uma excelente formação para um psicanalista, tornar-se-á um instrumento precioso no tratamento, quando confrontado ao mais intenso de sua prática: as crianças, os borderlines, os psicóticos e as histerias graves. Prática de situações-limite no tratamento, em que a questão é sempre separar as cenas psíquicas [...]; trabalho preliminar sem o qual nenhum sujeito poderá emergir".


Quantas e quantas águas irrigam a clínica para cada analista!


Para o nosso entrevistado: a amizade como a fonte-matriz da transferência, a companhia amiga de Ferenczi, Dolto e Pankow, de Neyraut, Réfarbet, Zaltzman e Rosenfeld, de Zygouris e Smirnoff, e poder conviver amigavelmente com a dor e com a esperança. Por último, mas sem falta, poder ter o júbilo do pensamento!


Para o nosso entrevistado, estar na clínica é encontrar-se na clínica, é deparar com uma parte singular de si próprio em cada tratamento, é se jogar no dispositivo analítico com algo que nos caracteriza enquanto sujeito; é, sempre, arriscar-se; é lançar-se em uma dimensão existencial do encontro, respeitando profundamente a coragem de quem se dispôs a estar à sua frente, na poltrona ou no divã, expondo-se a se questionar no que podia estar mal assentado, mas que assentado estava, de algum modo, em sua vida.


A clínica para Heitor: o teatro, a literatura - e nesta, Dostoievski em especial -, outros inúmeros investimentos na vida, a própria vida e o trabalho investidos de prazer, são condições fundamentais para que se possa "ajudar outras pessoas a irem para a vida". E mais: o humor e o lúdico, tão caros a Winnicott. Winnicott, pilar indispensável para o pensamento de Heitor. Winnicott, este analista freudiano, que soube que, sem brincar, não temos humanidade em nós.


E como um psicanalista, sujeito cidadão no mundo, Heitor ocupa-se em escrever sobre os abusos de poder e em batalhar contra totalitarismos, estejam estes no âmbito das políticas públicas ou no íntimo das instituições psicanalíticas, e em se posicionar frente às usurpações dos direitos de pensar e de viver com dignidade.
Quando indagado sobre a tragédia da modernidade, Heitor pensa no homem da modernidade como um resistente. Eu acrescento, imaginando-me em consonância com ele: um resistente das utopias.

JANETE FROCHTENGARTEN

 

PERCURSO Sabemos que você foi diretor de atores do Teatro Arena, Oficina e Tuca no Rio de Janeiro, tendo se exilado na França em 1968, onde se tornou psicanalista. Gostaríamos que você nos contasse um pouco sobre essa sua trajetória.
MACEDO Na verdade, antes do Tuca, do Teatro de Arena e Teatro Oficina - que, na ordem, seria Oficina, Arena em São Paulo e Tuca no Rio - eu e um grupo de amigos, Tite de Lemos, Renato Machado (hoje em dia jornalista na TV Globo), criamos um grupo de teatro que se chamava "O Grupo de Orla".
A ideia era muito modesta: o teatro brasileiro não existia e nós íamos constituí-lo! Então, fomos ver as pessoas que considerávamos criativas no teatro e pedimos que viessem nos dar cursos. Falamos com Gianni Ratto, Sérgio Brito, Ítalo Rossi. A Gianni Ratto pedimos que falasse de cenografia e por aí afora...
Começamos a trabalhar e o que fazíamos era ler Stanislavski e fazer laboratório de improvisação com os atores, e rapidamente mobilizaram-se afetos e rememorações muito penosas. Fiquei apavorado. Então, fui ver Helio Pellegrino e lhe disse: "É o seguinte, estamos criando o teatro brasileiro, estou fazendo um laboratório de teatro e estão ocorrendo coisas que não estou compreendendo. Como você é um psicanalista, deve vir assistir aos ensaios e nos ajudar para que não se mobilizem coisas que sejam destrutivas para as pessoas com quem trabalhamos". Ele disse: "Eu vou arrumar um tempinho para ir, mas você vai para análise, porque você é louco mesmo!". E lá fui eu ver Galina Schneider. Helio foi absolutamente maravilhoso! Ele vinha, brincava muito, às vezes trazia Fernando Sabino, Otto Lara Resende... e aquele grupo de garotos completamente alucinados.
Montamos uma série de espetáculos que tinham a particularidade de ser compreendidos apenas por nós mesmos, nos quais os atores, em geral, diziam onomatopeias para transmitir ao público uma emoção. O público não sabia muito bem por que estava se emocionando, mas o interessante é que essa transmissão foi feita. A Bárbara Heliodora e um jornalista do Diário de Notícias tiveram um papel importante na época dizendo que fazíamos um negócio absolutamente estranho, mas que era um teatro experimental que valia a pena...

 

PERCURSO Eles fizeram uma crítica?
MACEDO Sim, fizeram uma crítica. Aliás, vindo a São Paulo há alguns anos, estava no teatro e vejo Bárbara Heliodora, que me chama: "Heitor O'Dwyer!!". Na época, era assim que eu me chamava porque a família do meu pai não tinha me autorizado a usar o nome de Macedo para fazer essa coisa indecente que se chamava teatro. Houve até um conselho de família sobre isso. Mas como eu tive o vaticínio de ter o mesmo nome e sobrenome que o meu avô materno, então todo mundo achava que era ele quem estava fazendo teatro! Depois de um tempo o grupo foi ao festival de teatro de Recife.

 

PERCURSO Nesse momento você já tinha terminado o colégio e havia formado esse grupo?
MACEDO Eu estava terminando o colégio nessa época, e devo ter começado o "Grupo de Orla" quando eu tinha uns dezesseis anos. Antes disso, na verdade, o que me levou ao teatro foi o encontro com o Arnaldo Jabor, que era do mesmo colégio que eu. Montaram uma peça do Jabor, que foi para mim a primeira experiência de ver o pensamento ligado à criação.
Depois do festival, passei um tempo em Recife e, quando voltei, o Orla já não existia mais. Eu era sabidamente uma pessoa que se interessava por direção de atores, não me lembro muito como isso se deu, mas o Zé Celso me propôs fazer a direção de ator do espetáculo "Os Inimigos".
Então eu vim [para São Paulo] e foi um período muito intenso. Havia uma figura maravilhosa , o [Eugenio] Kusnet, que ficou furioso por ser eu o diretor de ator e não ele. Mas, sei lá, isso eram as histórias do Zé com o Kusnet. Para mim, essa foi uma experiência muito forte assim como a do Teatro de Arena.
Depois voltei para o Rio e fiz o "Terror e Misérias no Terceiro Reich" de [Bertold] Brecht. Na época, tínhamos que submeter os textos à censura. O texto não foi liberado e mesmo assim eu decidi fazer o espetáculo. Chegávamos aos Centros Acadêmicos, montávamos tudo muito rapidamente, fazíamos o espetáculo e íamos embora. Em uma dessas vezes, havia um policial infiltrado no Centro Acadêmico de uma faculdade, e a polícia estava esperando. Eu consegui fugir.
A partir do Golpe de 1964 tínhamos medo o tempo todo, porque havia sempre um amigo próximo ou um conhecido que tinha sido preso. O medo era de sermos procurados pelo simples fato de constarmos na agenda dessa pessoa. Porque tudo era possível! Tudo era possível! E ainda não era o horror que viria depois com o Ato Institucional! A partir daí, a ideia era ir embora o mais rapidamente possível do Brasil. Eu consegui uma bolsa para a França e fui.

 

PERCURSO A bolsa de estudos que você recebeu foi para teatro?
MACEDO Sim. Era uma bolsa que facilitava absolutamente tudo, pois eu tinha a obrigação de fazer três conferências por ano sobre Teatro brasileiro. Nada, não é? Na verdade, o que eu tive foi a possibilidade de sair do Brasil.

 

PERCURSO Qual foi a importância de sua experiência com o teatro em seu ofício de analista?
MACEDO A minha entrada no teatro coincidiu com a minha entrada em análise. Considero Stanislavski um ser genial que compreendeu tudo do inconsciente. Para ele, a organização do texto do ator supõe um subtexto, que tem a ver com experiências que o personagem viveu antes daquele momento que está na peça. E o modo de construir o personagem é fazer com que o ator consiga descobrir experiências de sua própria vida que sejam análogas ou que tenham ressonâncias com as experiências do personagem. Stanislavski é genial!
Respondendo à pergunta: O teatro me deu duas coisas como embasamento para o trabalho analítico. Em primeiro lugar, uma disponibilidade para a brincadeira. Eu gostei muito de trabalhar com crianças. Depois que a minha filha nasceu, quando ela tinha um ano e meio, decidi parar de atender crianças. Na época eu trabalhava em casa e me dizia que se não pudesse estar com ela, porque estava com doentes, ela ficaria doente para estar comigo! Só voltei a atender crianças quando passei a ter consultório fora de casa.
Em segundo lugar, trata-se de algo que é um pouco incurável em mim: eu sempre tenho uma ideia de prospecção para os meus pacientes. Sempre imagino aquilo que pode vir a acontecer na vida deles, a partir do trabalho analítico que está sendo realizado. O que o teatro me deu, como diretor de ator, é estar sempre muito preocupado com o depois da análise. Eu nunca tinha pensado nisso, estou pensando falando para vocês.
Existe aí algo que eu poderia chamar de estratégia terapêutica. Sou muito atento ao destino que se pode dar ao material que está sendo trabalhado, o que será priorizado. Isso eu digo em um dos meus livros: existe todo o trabalho de desligamento da organização defensiva, mas no meu entender, esse trabalho de desligamento só tem sentido se, ao mesmo tempo, se inventa e se imagina uma nova organização pulsional.
Para trabalhar o mundo interno do paciente é importante que algo do vínculo com o analista seja suficientemente forte e reconhecido, para que se corra o risco de deixar peles antigas, de deixar modos de se situar no mundo, sem se sentir completamente abandonado pela humanidade. Quer dizer, eu não penso que o fim da análise seja aquilo que Lacan apresenta como des-être, ausência-de-ser. Penso que isso é um momento analítico, no qual as funções que sustentam a defesa começam a ser desligadas; para mim, isso é um início e não um fim do trabalho.
E falando nisso, eu estou falando a vocês algo que tem a ver com uma preocupação terapêutica de Winnicott, que é a preocupação materna primária. O analista, do ponto de vista de Winnicott ou do Winnicott que faço meu, é um continente a partir do qual podem ser revisitadas as carências, as falhas, as dificuldades que ocorreram durante o curso de uma vida, para que possam ser repensadas, pela confiança que se tem com um vínculo absolutamente novo, e assim, reconstituir algo mais econômico do ponto de vista do desejo e da criatividade do pensamento.

 

PERCURSO Isso que você chamaria de estratégia?
MACEDO Não, isso não é o que eu chamaria de estratégia. Diria que isso é uma atitude de base, uma posição de partida. É um modo de acolher alguém numa cura, o que leva a outro tipo de anterioridade lógica que são as entrevistas preliminares que considero muito importantes. Dedico cada vez mais tempo às entrevistas preliminares, com o objetivo de ter uma representação daquilo que, naquele momento, será o processo.
Eu não me sinto absolutamente à vontade, não me reconheço, na ideia de estruturas psíquicas: estrutura psicótica, estrutura neurótica... Freud nunca falou dessa maneira. Ele dizia, por exemplo, que existem núcleos obsessivos na histeria, núcleos histéricos no obsessivo, aspectos psicóticos e aspectos não psicóticos.
Falo sobre isso no meu livro Do Amor ao Pensamento se não me engano. Esse texto foi muito importante para mim, foi quando reli ou redescobri "A perda da realidade na neurose e na psicose", em que Freud diz que é preciso ser suficientemente neurótico para reconhecer a realidade e suficientemente psicótico para querer modificá-la. É a combinatória dos dois que torna possível estar no mundo.
Estratégia é uma outra coisa. Trata-se de como lidar, num dado momento, com um conjunto de aspectos, traços trazidos pelo paciente.
Vou dar um exemplo: alguém vem me ver e percebo um grande componente ansioso. Ele vem de uma cidade perto de Paris e gasta quatro horas para ir e vir, o que para vocês em São Paulo parece algo absolutamente cotidiano. Então, eu digo a ele: "Olha, vamos fazer o seguinte: você vem uma vez por semana e faremos as outras duas sessões por telefone."
Eu levei esse caso para minha habilitação no Quarto Grupo e foi um escândalo! Como é que eu faço sessão por telefone? Eu perguntei: "Como é que vocês fazem com pacientes que moram longe?" E me responderam: "Nós fazemos uma sessão de manhã, outra à tarde e outra à noite". Freud dizia que é preciso um cotidiano entre uma sessão e outra, mas tudo bem, toma-se um café... Prefiro o que fiz com o meu paciente.
Voltando ao caso, quando a análise começou, eu notei que no final das sessões ao vivo ele ficava muito agitado. Pensei: "Caramba, será que eu me enganei? Será que é um troço mais psicótico?" E disse a ele: "Sinto que quando a sessão está terminando, você fica muito angustiado. É por causa do final da sessão? É muito difícil para você?" Ele disse: "Não, é porque eu tenho quinze minutos para sair e conseguir pegar o trem." Eu digo: "Ah! Teremos que encontrar outro horário, assim não vai dar...". Eu não interpretei o porquê de ele não ter me dito isso até então. E ele: "Mas o problema é que o outro trem sai duas horas depois". "Então vamos ver..." Discutimos, até que se arrumou um horário em que ele passou a vir tranquilamente.
No manejo do enquadre existiu algo interpretativo em relação à onipotência, algo interpretativo em relação aos dispositivos obsessivos. Mas, eu não toquei nisso no nível transferencial. Esperei que reaparecesse na vida, que ele me trouxesse e então eu lembrei o que aconteceu. É como se fosse uma reserva de sentido.
Acredito que as tematizações transferenciais, quando os sintomas são muito graves, não devem ser imediatamente formuladas, e, sim, reservadas como ilustrações de impasses que se encontram depois na existência e que já conseguiram modificações graças à relação analítica. Mas o analista foi chamado a se ocupar de coisas com que o outro na realidade não é obrigado a se ocupar. Isso tem a ver com a constituição desse outro através da fantasia do paciente, ele projeta no outro a recondução de impasses que ele encontrou na própria história.
Também me parece importante a necessidade - e nisso sigo Freud e Winnicott - de que o espaço da sessão seja um espaço confortável, que a análise seja algo confortável. Porque a barra é muito pesada, não no real da relação e sim porque será preciso pensar e tratar temas que são difíceis. É muito difícil viver consigo mesmo.

 

PERCURSO Voltando a seu percurso, você já pensava em ser psicanalista?
MACEDO Quando saí daqui a única coisa que não queria ver no mundo era teatro! Realmente gostava era do trabalho de ator, prepará-lo para um espetáculo durante meses mas, naquela época, o espetáculo estreava e duas semanas depois a Globo chegava e propunha pagar ao ator, por semana, o que não podíamos pagar em dois meses! E então toda organização de teatro de repertório, de equipe, ficava comprometida porque todo dia tinha gravação. Isso quando não era no Rio! Estou pensando quando estava aqui em São Paulo. E no Rio era a mesma coisa. Era uma experiência muito penosa e masoquista. Masoquismo mesmo. Você criava uma coisa e de repente ia tudo embora.
O que eu tinha vontade de fazer mesmo era teatro aqui no Brasil. Para mim, o teatro deve ser absolutamente atual e presente. Tem a ver com o momento e deve dar uma interpretação do que está ocorrendo na cidade naquele momento. A França foi a experiência de chegar a um lugar que eu não conhecia.
Bem, agora voltando à pergunta sobre meu percurso. É um percurso curioso, cheguei à França com uma carta do Helio Pellegrino para o Lagache, que ele tinha conhecido não sei onde. Fui ver Lagache, que me disse: "Aqui está muito complicado. O melhor que você pode fazer é ir ali, acolá, de outro lado, onde tem gente interessante. Hoje em dia há uma tal baderna que você poderá circular por todos esses lugares." Foi assim que eu comecei.
Fazia análise e entrei na faculdade para ter um diploma de psicólogo, uma habilitação. Quando eu saí daqui, o Hélio havia me dito: "Não fica na França. Na França tem uns lacanianos que são todos loucos. O Lacan é genial, mas os lacanianos são malucos, tem apenas duas ou três pessoas. Vá para a Inglaterra".
Fui para a Inglaterra, mas contrariamente ao que imaginava, que você, sendo psicanalista ou querendo ser psicanalista, chegava à Inglaterra e dizia: "Eu quero ser psicanalista" e já ia trabalhar em todos os lugares... Imaginava que a psicanálise na Inglaterra era algo reconhecido por todas as instituições psiquiátricas, o que não é verdade. E como se isso não bastasse, descobri na França a crítica de Lacan à IPA. E dentre suas críticas, existe uma que, a meu ver, é fundamental. Trata-se da questão do analista didata, um analista com quem se fala de sua mais íntima intimidade e que vai, ao mesmo tempo, decidir se o paciente pode ou não ser reconhecido como analista. Quando eu soube que havia tal interpenetração de um trabalho eminentemente terapêutico numa decisão de vida social, eu me disse: "Isso é maluco! Estou saindo de uma ditadura para entrar em outra!"
Bem, decidi voltar para a França. Eu tinha feito entrevistas com Hanna Segal e com Rosenfeld, com quem depois eu fiz supervisão (não menciono isso nas Cartas) e que foi algo muito importante.
Na França, tão logo obtive meu mestrado, antes mesmo de terminá-lo, fui trabalhar num hospital porque queria saber se aguentava trabalhar com loucos, queria saber se isso era mesmo possível. Na época era mais fácil trabalhar como psicanalista, tinha acabado maio de 1968, era um grande trauma político e cultural, ainda não tinha acontecido o que aconteceu dois anos depois de os militantes terem ido para a cultura, muitos para a Psicanálise, os lacanianos comandados pelo General Jacques Alain Miller.
Era muito fácil trabalhar num hospital como estagiário, quarenta horas por semana. Na verdade, como digo nas Cartas a uma jovem analista, fui procurar pessoas. Pessoas com quem trabalhei, pessoas com quem me formei porque, a partir de um certo momento, comecei a identificar as pessoas e os trabalhos que me interessavam. Uma das pessoas que me foram recomendadas, cujo encontro também foi determinante na minha vida, sobretudo do ponto de vista institucional, foi Piera Aulagnier, que foi muito generosa comigo e me acolheu rapidamente num seminário fechado dela. Piera Aulagnier era uma das fundadoras do Quarto Grupo.
Depois do episódio com Gisela Pankow que, da noite para o dia, me disse que não me daria mais supervisão porque não gostava da mulher com quem eu decidira viver, fui fazer supervisão com Victor Smirnoff. Depois de algum tempo de trabalho, uns dois anos, ele me disse: "Se você quiser retomar a análise (eu falava muito disso), como você gosta muito da Piera, tem uma pessoa do Quarto Grupo de quem gosto muito, a Nathalie Zaltzman". E eu retomei a análise com ela.
Fiz um trabalho com a Nathalie que foi muito importante. Eu estava querendo me integrar ao Quarto Grupo. Um dia, recebi um telefonema de Maud Mannoni, que tinha lido o livro Le psychanalyste sous la terreur [O psicanalista sob o terror]. Ela tinha lido o manuscrito porque um amigo fez uma indiscrição amigável, que foi dar isso a ela, achando que poderia lhe interessar. Eu nunca tinha visto a Mannoni. No telefonema, ela disse: "Nós vamos fundar uma instituição e você tem uma posição um pouco heterogênea em relação ao que existe aqui na França, gostei muito do livro que você organizou, quer integrar a equipe que vai se ocupar do início do Centro?". Respondi: "Estou num processo de engajamento no Quarto Grupo. Vou conversar com a Piera, e o que ela me disser...". Piera me disse: "Vai ser muito bom para você, estará num lugar que vai permitir que você faça um trabalho". E então fui para o CFRP [Centre de Formation et de Recherches Psychanalytiques], onde comecei meus seminários sobre Winnicott. Algum tempo depois saí do CFRP por causa das infinitas crises institucionais francesas, a instituição que se torna uma espécie de supermercado para ganhar muito dinheiro. Saí do CFRP e me integrei ao Quarto Grupo e depois saí do Quarto Grupo. Fui analista membro durante vários anos e me demiti há cinco anos porque, após a morte de Piera Aulagnier, a instituição ficou completamente fechada sobre si mesma. Recentemente não reagiu a nenhuma das leis criadas durante o governo Sarkozy e não tem nenhuma participação efetiva sobre o ataque que se faz à Psicanálise e à Psicoterapia Institucional.
Eu dizia: somos um grupo de quarta idade! Para vocês terem uma ideia, passaram seis anos sem ter uma única reunião institucional entre os analistas membros e os analistas em formação. Eles têm medo dos jovens. Isso é frequente nas instituições, mas elas se organizam de uma forma mais inteligente. Fui então para a Federação [Federação de Ateliês de Psicanálise], onde ministro o seminário sobre Dostoievski.
A pergunta que você faz levanta uma pergunta muito mais importante e atual, que é a da formação de um jovem analista. Vocês têm aqui no Sedes algo que considero interessante, que é uma clínica social. Isso pode ser um elemento muito importante numa instituição, um lugar - como eu me beneficiei graças à Françoise Dolto, que dava consultas públicas no Hospital Trousseau - onde os jovens analistas possam participar, presenciar sessões de terapia de alguém que tenha mais experiência e com quem se discute o porquê do como. E, paralelamente a isso, a possibilidade de um trabalho psiquiátrico, numa clínica psiquiátrica. Acho que é muito formador o trabalho em psiquiatria porque se é imediatamente confrontado com a necessidade da inventividade na clínica. A cada momento você tem que encontrar uma resposta que seja uma resposta cabível e circunscrita pela relação.

 

PERCURSO Na sua passagem pelo Sedes (abril de 2012), surgiu uma questão com relação a psicanálise de grupo. Gostaríamos de entender como você pensa os dispositivos grupais na clínica psicanalítica.
MACEDO A psicanálise de grupo se afirmou na Inglaterra durante a Segunda Guerra Mundial. Ou seja: existe uma situação traumática compartilhada pelo conjunto da sociedade, e o grupo analítico é um meio pelo qual cada participante pode reconhecer o seu modo singular de atravessar este trauma, o modo pelo qual a situação atual mobiliza seus movimentos inconscientes.
A pertinência desta hipótese de trabalho se verificou nas zonas urbanas do Brasil e da Argentina durante o período ditatorial militar.
Esta experiência existencial comum me parece ser uma condição necessária para que o grupo possa funcionar como uma ferramenta para singularizar as vivências, como uma ferramenta para aceder ao tratamento inconsciente dado por cada participante à experiência que os reúne.
O trabalho realizado nas comunidades terapêuticas na França, na filiação da Psicoterapia Institucional - como La Borde, ou o Centro Antonin Artaud - são exemplos de uma adaptação feliz do fruto da pesquisa dos grupos analíticos ao trabalho com psicóticos.
Contrariamente, penso que, nas sociedades serializadas nas quais vivemos, um grupo analítico reunindo pessoas que vivem uma vida normal (ou anormalmente) burguesa nada mais será que uma ocasião de escapar da solidão insuportável à qual é submetida a totalidade da população. Este aspecto imediato e massivamente gratificante do grupo constituído me parece um empecilho para o acesso à dimensão inconsciente, cuja dinâmica se limitará aos benefícios egoicos.
Penso que uma população de baixa renda, mesmo miserável, pode se beneficiar de um trabalho analítico. Mas isto requer uma pluralidade de cuidados, entre os quais a dimensão da inserção social é, evidentemente, fundamental. Neste sentido o trabalho com uma população de baixa renda se inscreve na filiação da Psicoterapia Institucional, ou mais perto de nós, no trabalho realizado por Helio Pellegrino na Clínica Social de Psicanálise numa favela do Rio de Janeiro - trabalho que Michel Foucault considerou a experiência antropológica mais importante do século vinte.

 

PERCURSO Você diz em seu livro Cartas a uma jovem psicanalista que antes da prática psicanalítica é importante ter outra prática. Por quê? Como você justifica essa posição?
MACEDO Por causa da praga que é a Psicanálise na Universidade na França. Uma pessoa entra na Universidade e sai com um diploma de psicanalista. E acredita que é psicanalista! O momento de começar uma análise é algo muito complicado. O que me interessa quando alguém me procura como analista é que essa demanda seja uma demanda fundamental na vida daquela pessoa. Hoje em dia as pessoas acreditam que elas vão fazer análise para se tornarem psicanalistas, como se fizesse parte do currículo universitário.
Eu penso que é muito importante para um analista que ele tenha outros investimentos além da psicanálise, que tenha uma vida. Quando eu digo outra prática antes da psicanálise, penso numa forma de se garantir um horizonte no qual possa se nutrir, possa se enriquecer, se revigorar, que seja a própria vida pessoal. Senão, começa a haver uma espécie de homogeneidade entre o trabalho, o interesse e a vida. Passa a ser algo bem autista. Como ajudar as pessoas a irem para a vida se a única vida que se tem tem a ver com o universo psicanalítico?

PERCURSO Você se refere a uma suposta formação psicanalítica ideal, propõe uma sequência: primeiro o trabalho com loucos, depois os pacientes afetados por normose e depois o trabalho com crianças. Por que essa sequência?
MACEDO Com os psicóticos trabalhamos em instituição, apoiados por uma equipe, menos sós. Todo o trabalho que se faz com loucos é um trabalho que começa, inevitavelmente, numa cena institucional. Quando essa cena institucional é organizada para dar hospitalidade à loucura, existe um diretor de hospital e uma equipe experiente, que acolhe o profissional que chega - foi isso que eu vivi - e que vai fornecendo os instrumentos para que ele não se sinta incompetente ao se encontrar com a incompetência inevitável diante da magnitude de uma tarefa, que é sempre impossível. A instituição psiquiátrica fornece um enquadre para que se dê toda a latitude de tempo para que, pouco a pouco, você singularize o seu modo de encontrar o paciente psicótico. Se for uma comunidade terapêutica digna desse nome, o ajudará a encontrá-lo com uma parte singular de você mesmo.
Depois os normopatas, porque são eles que nos permitem compreender melhor o que é o funcionamento intrapsíquico e, graças aos analistas que nos acompanham (nosso analista pessoal, aquele que acompanha nossas curas, os amigos e colegas), entender como interagem as dificuldades psíquicas do paciente e as nossas próprias dificuldades. O fenômeno, mais ou menos clássico, da transferência e da contratransferência.
E as crianças em último lugar, porque considero a clínica mais difícil. Tem muito a ver com a clínica de psicóticos, porque é uma inventividade permanente. Acredito, nisso eu estou absolutamente alinhado com a Françoise Dolto, que essas terapias e análises devem ser sempre curtas. O que existe de particular em Dolto é como ela e a Gisela Pankow integravam imediatamente os pais no trabalho. A questão de chamar ou não a família não se coloca, ela sempre é integrada ao trabalho.

 

PERCURSO Em seu livro Cartas, quando você fala dos seus mestres, frisa intervenções clínicas muito extraordinárias, assim como nos exemplos que você nos conta. Diz também que o extraordinário é comum nessa clínica, dado que o dispositivo da transferência nos leva a regiões pouco habituais, e que é isso que confere esse caráter extraordinário ao que nelas acontece. Diante disso, como você pensa que se compõem o extraordinário e o originário na clínica psicanalítica?
MACEDO Em relação aos pacientes psicóticos, existe o que a Piera Aulagnier chamará de violência da interpretação. Eu não me reconheço nessa concepção de Piera, segundo a qual o que funda o humano seria uma interpretação violenta. Parece-me uma perspectiva um pouco naturalista. Penso que o que faz o humano é o humano. Mas, em certas constelações defensivas, sejam organizações psicóticas, sejam quadros clínicos de crianças, penso que, a partir das entrevistas preliminares, se você não consegue inventar uma transformação radical da circulação das mensagens, no universo de origem, tudo fica comprometido. À medida que se consegue isso, existem, inevitavelmente, mudanças espetaculares. E, nesse sentido, a expressão violência da interpretação me convém.
Por exemplo, por insistência de uma amiga, recebi uma moça que está em análise com ela e que me trouxe o caso de um filho que se tornou um terror, um garoto de quatorze anos. O pai e a mãe têm medo do menino e a questão era se ele ia ou não para um internato. O encontro durou cerca de duas horas.
O tempo de trabalho é algo muito importante. Se eu recebo alguém que, inicialmente, pensei que traria uma questão pontual e descubro que é algo gigantesco, eu digo: "Vamos parar aqui porque o que você está me trazendo exige muito mais tempo. Não gostaria que você começasse a falar disso e que eu tenha que parar por falta de tempo. Volte e eu te darei bastante tempo".
O que eu não sabia, e que foi reconhecido e identificado nessa entrevista com esses pais, é que a mãe da mãe é psicótica e a mãe do pai é psicótica. O filho estava no lugar da mãe psicótica dos dois, entendem? A partir disso cria-se um novo corte das cenas (o cap. 9, "Um novo corte das cenas" do meu livro Do Amor ao Pensamento, é o que mais fala da minha clínica), redistribui-se, remaneja-se o tipo de funcionamento simbólico da família. Faço algo que tem a ver com o enxerto de transferência do qual fala Pankow. Aplicar isso é o mínimo para começarmos a trabalhar os quatro, pai, mãe e criança. Quando se trata de crianças e de organizações psicóticas, com sorte, o que nos é trazido exige uma reorganização do que eu chamo de superego real e atual. Existe uma maneira pela qual, de forma presente e insistente, na realidade cotidiana do paciente, um superego terrível interfere e o assedia em todos os momentos de sua vida. Isso precisa ser reconhecido e trabalhado; por vezes, é a condição da cura.
Por exemplo, eu posso dizer aos pais e mães de um rapaz de vinte anos: "Para eu começar a cura, é importante que esse jovem saia da casa de vocês". A ideia de que, através do trabalho clínico que se faz com o paciente, lhe serão fornecidos os elementos para que ele possa posicionar-se melhor em relação ao pai e a mãe é onipotência do analista. Fazer isso é jogar para o paciente, se existe uma situação de ordem traumática, uma responsabilidade existencial que ele não é capaz de assumir, dada a fragilidade que o traz para a análise pelos pais ou, o que é complementar, pela culpa de se separar. Portanto, é o analista que intervém e faz esse corte.

 

PERCURSO Winnicott fazia essas intervenções. Indicar, às vezes, que o filho fosse separado da mãe.
MACEDO Winnicott e Dolto faziam. Winnicott também tomava os pais como coterapeutas, outro modo de fazer isso. Mas ele utilizava os pais como coterapeutas para regressões graves dos pacientes, o que ele podia fazer porque sabia bem o que estava fazendo. Eu sentiria muito medo, não saberia como lidar com um negócio desses. Se um paciente regredir, prefiro que seja comigo, embora, às vezes, isso não seja possível.

 

PERCURSO Como fica a questão econômica de esse jovem de vinte anos morar sozinho? Às custas de quem? Trabalhando ou às custas dos pais? Ainda assim, vale essa separação?
MACEDO Às custas dos pais, claro! Para mim, o importante é o que chamo de dialética dos espaços. A questão do espaço, aprendi com Pankow. Separar os espaços, a casa da criança, a casa dos pais. Trata-se, pensando num caso bem preciso, de trabalhar questões tais como quem vai decorar a casa, porque não se trata de levar os objetos que estavam na outra casa... aí não!

 

PERCURSO Você enfatiza a importância de o adolescente se responsabilizar pela sua própria análise, pagá-la, integralmente ou em parte.
MACEDO Isso é outra coisa. Aqui são adolescentes que chegam com os pais, o que é outro quadro. Mas a ideia é que, uma vez separado, ele se vire para me pagar, mas não imediatamente. A ideia é que ele me pague com um dinheiro que ganhe fazendo baby sitter, trabalhando num restaurante. Evidentemente, não é possível multiplicar tais condições de trabalho, porque você precisa de uma renda para viver, não é mesmo?
O mais importante nesse processo é que o trabalho terapêutico seja realmente assumido como um trabalho que pertença ao adolescente. Às vezes, o adolescente vem para a análise porque pede, faz uma queixa aos pais, mas, geralmente, tem a ver com a rede relacional familiar. Quando as crianças e adolescentes vêm para análise, acabam tornando-se uma prova dos limites dos próprios pais em conseguir acompanhar, responder, conter um tipo de dificuldade, de sofrimento, de impasse no qual está envolvido o adolescente.
Trata-se de uma maneira de apostar que o adolescente tenha algo a dizer nesse samba, que o samba também é dele e não só dos pais. A consequência dessa intervenção nos impasses da realidade é que se centra muito mais rapidamente sobre as dificuldades do remanejo identificatório na adolescência e sobre a questão dos objetos internos, do que é o mundo interno.

 

PERCURSO Permanecendo ainda nessa questão do pagamento, em seu livro Anna K., você diz que essa paciente era atendida numa instituição e que você cobrava dela, mesmo que fosse simbolicamente. Por que você considera importante o pagamento, ainda que simbólico, no atendimento institucional?
MACEDO Porque na França existe, ou melhor, existia um assistencialismo que fazia com que os pacientes tivessem uma dificuldade muito grande em subjetivar que o que eles estavam fazendo era para eles. O que me parece bacana e fundamental é que, na medida em que o trabalho está sendo pago pelo Estado e não pelos pais, dependendo do manejo, existe a possibilidade de dizer: "Veja, você já está aqui num outro espaço que não é o espaço paterno, materno ou parental, já que o pagamento é feito pelo Estado". Mas, além disso, me parecia importante que houvesse uma contribuição do paciente para que ocorresse um engajamento no trabalho, assim como com os adolescentes.

 

PERCURSO Pensando naqueles momentos de uma intervenção mais radical, como as que você nos trouxe, gostaríamos de levantar a questão do analista na posição de agente do trauma, um lugar de muita potência, mas perigoso. Quais seriam as condições e os cuidados para que não se faça uma reedição ou uma repetição do próprio trauma?
MACEDO Isso é para começar o jogo, antes do apito. Uma vez que as equipes estão em campo, que o analista reocupe o lugar do trauma depende de mil fatores. Quando ele consegue reconhecer isso é formidável, mas, às vezes, ele não consegue. Isso tem a ver com o que vai acontecer no espaço transferência-contratransferência. Eu prefiro transferência do paciente e transferência do analista em vez de transferência-contratransferência. Não se pode antecipar.
Considero inclusive que seria algo analiticamente suspeito você estar demasiado atento em não repetir a posição do agente do trauma. Se ficarmos atentos demais a isso, ficamos, inevitavelmente, muito defendidos para um tipo de acontecimento. Por exemplo, quando o paciente deposita no analista uma angústia que ele não pode reconhecer e que num dado momento o analista vai não apenas reconhecê-la como, sobretudo, exprimi-la de uma forma inversa.
Trata-se do conceito de identificação projetiva de Melanie Klein, que é um conceito muito importante, tanto na cura com os psicóticos quanto na cura com crianças. Para mim, o extraordinário das interpretações e das mudanças extraordinárias das interpretações são situações onde o analista aceitou determinadas depositações, malgrado ele. Não se trata de uma estratégia de acolher tudo que foi depositado no paciente pelos pais, o que seria uma loucura. A ideia é que o paciente, inconscientemente, faz com o analista o que fizeram com ele e espera-se que o analista tenha a possibilidade de poder nomear aquilo que a criança não pôde nomear. A criança não pôde, por exemplo, nomear: "Você está me maltratando", "Você me impede de pensar", "Você está me obrigando a fazer algo que eu não quero fazer".
O afeto é outro elemento que me parece importante. Em todas essas histórias os sentimentos que ficaram rejeitados, clivados, inalcançáveis para o paciente, enquanto tal, são depositados na sensibilidade do analista, como um contrabando.

 

PERCURSO Em seu seminário sobre Dostoievski, você afirma que na obra deste autor as mulheres são histéricas, loucas histéricas ou histéricas maternais e que os homens são perversos, psicopatas, ou psicóticos histéricos e que, portanto, não existe amor verdadeiro em Dostoievski. Como você entende o amor verdadeiro e quais as condições para que ele exista? Em outras palavras, você diz que o amor verdadeiro é um ideal bem encarnado.
MACEDO Quando preparei esse trabalho sobre o amor, queria colocar em discussão a indistinção que faço entre amor e paixão. Existe algo defensivo nos analistas, que se manifesta nas teorias, de que tudo que é excessivo namora com o patológico. Acredito que tudo que é excessivo namora com o patológico, mas pode namorar com a vida! E é nesse ponto, na vinculação do excessivo com a vida, que ajudamos os pacientes.
Vocês me fazem pensar numa coisa, provavelmente porque falamos da época em que trabalhei no teatro. Quando eu saí do Brasil, fui para a Europa num navio da cabotagem, o que em qualquer país sensato seria proibido. Era um navio que fazia seis nós por hora. Isso dá, no máximo, cerca de dezoito quilômetros. Passei quarenta e dois dias entre o porto de Santos e Trieste, praticamente sem tocar a terra, com apenas uma parada em Palma, um inferno. Tive muito tempo para pensar. Antes de entrar no navio eu ainda não tinha decidido que seria psicanalista. Estava na dúvida, me dizia que talvez eu fosse sociólogo. E então me veio a ideia. Pensei que, trabalhando com pacientes, teria que aumentar o limiar de minha possibilidade de aguentar a angústia. Vinha numa continuidade do meu trabalho com os atores, mas que nesse trabalho não era suficiente. Portanto, teria cada vez mais possibilidade de viver coisas excessivas e boas na vida. A economia de angústia e sua modificação, é para isso que trabalhamos com os pacientes, é para que eles possam suportar cada vez mais uma intensidade de angústia, ligando-a ao que quer que seja, atravessando-a e indo mais além daquilo que era a possibilidade imaginativa que eles tinham antes de começar a análise.

 

PERCURSO Você inclusive considera a angústia um traço essencial do amor, não?
MACEDO Penso que a angústia é um traço essencial do humano. Uma pessoa que não tem angústia é alguém inquietante, muito inquietante, é alguém que tem uma defesa absoluta em relação a todas as possibilidades de encontro. Há uma história muito bonita, não me lembro mais o nome do ator, mas era um grande ator shakespeariano na Rússia no final do século dezenove. Quando ele fazia um Shakespeare, vinha gente de toda a Europa para assistir. As peças podiam ficar meses em cartaz, tamanho o público. Um dia ele estava representando Otelo e quando acabou o espetáculo foi falar com o diretor: "Na próxima temporada eu não vou mais trabalhar como ator, vou começar a trabalhar com direção", o diretor retrucou "Você está maluco! Estamos com a casa cheia". "É, mas está decidido..." disse o ator. "Mas você decidiu isso quando?", "Decidi hoje, agora!" respondeu o ator. E assim foi feito. Ele nunca mais subiu em cena. Evidentemente, as pessoas perguntavam o porquê e ele não respondia. Ficou um grande enigma. Na sala do teatro, assistindo a aquele ator estava um garoto chamado Constantin Stanislasvski. Quando passou a fazer as suas montagens, desde o começo, Stanislavski chamava esse ator para assistir. Certa vez esse ator estava doente, ele foi visitá-lo e, com toda a delicadeza, lhe disse: "Eu gostaria de perguntar uma coisa a você, uma coisa delicada, eu gostaria de saber por que você deixou de fazer o trabalho de ator?". Ele respondeu "Ah, mas para você eu respondo, você é um grande ator e vai compreender imediatamente. Eu estava nos bastidores onde ia entrar para fazer o segundo monólogo do Otelo, e descobri que não estava absolutamente angustiado". Quer dizer, a angústia é a generosidade para a vida!

 

PERCURSO Você fundamenta a questão da transferência e da amizade fazendo parte de uma matriz comum a partir da questão do desejo de pensamento presente tanto no analista quanto no analisando. Como você pensa isso na clínica das psicoses?
MACEDO Ah, uma bela questão! Volto ao tema do ator. Nunca tinha pensado nisso, mas acho que o que estou conseguindo formular com vocês são coisas, muito sutis e muito íntimas, sobre a posição sensível que eu tenho no meu trabalho, como cada um de nós tem. Eu nunca tinha pensado nisso, mas eu tenho certeza de que isso é verdadeiro. Quando você está com um ator, você toma um café com ele, ou bate um papo e de repente a gente diz "Bom, vamos trabalhar?" e começamos a trabalhar o personagem, o dispositivo é outro, o dispositivo é: vamos começar a trabalhar. Isso é algo que eu levo para o enquadre. Posso discutir com as pessoas sobre coisas num tom que, evidentemente, aquilo que se está falando é algo que vai paralelo com a análise. Posso dizer para um paciente, por exemplo, que eu sei que está vivendo um momento muito complicado, "olha, não vamos continuar aquilo que a gente estava falando da última vez porque estou muito cansado e eu não vou conseguir te escutar como gostaria, podemos falar de quê?" Aí, com a generosidade que têm os pacientes, ele diz "sabe, eu vou falar de outra coisa, fui ver um filme..." evidentemente, não é por acaso que está falando daquele filme agora. Eu jogo muito para o dispositivo analítico algo da minha presença enquanto sujeito.
É isso que Lacan me ensinou e que é menos utilizado pelos lacanianos que, em princípio, deveriam ser mestres nisso e nos ensinar como fazer, lembrar que tem o ego e que tem o sujeito. A teoria winnicottiana diz que a mãe vai dar espaço para o bebê, assim como o analista vai dar um espaço para o paciente para que confortavelmente alguma coisa seja modificada na posição defensiva. É importante distinguir, no encontro com o paciente, aquilo que nos constitui existencialmente e aquilo que é a nossa função. É algo que a clínica em instituições psiquiátricas fornece. Lá você pode ter acabado de atender o paciente no seu consultório e depois cruzar com ele na cafeteria, tomar um café, ou preparar com ele um espetáculo de teatro, uma festa que vai haver na instituição e, nesse momento, as relações que vocês têm são de outra ordem. É uma relação de pessoas que se ocupam de um objeto outro que aquele que está em circulação, por exemplo, no espaço da terapia.
Levo sempre em conta aquilo que eu poderia chamar de dimensão existencial do encontro. Nunca devemos esquecer que é muito complicado, muito difícil e corajoso, vir para uma análise tentar modificar algo que, é verdade, faz sofrer, mas que exige uma coragem de pensamento extraordinário, porque isso vai colocar em questão uma parte da história familiar, que, por razões evidentes, foi rejeitada, completamente clivada, completamente negada. Com as crianças, considero que esse aspecto é muito presente na minha relação com os pais. Tenho a preocupação de amparar os pais no trabalho que faço com as crianças ou com os adolescentes, porque parto do princípio de que é uma ferida narcísica muito grande ter que aceitar não ser capaz de responder às necessidades psíquicas do seu filho. O importante é ajudar essas pessoas a compreender que eles não são julgados, mas eu acho que não basta não julgar teoricamente, é necessário compartilhar, discutir, dizer que realmente é muito difícil. Por exemplo, o casal que veio me falar do filho que, inconscientemente, eles constituíram no lugar do tirano. Em determinado momento da entrevista em que eles estavam muito, muito mal, eu digo "com adolescente, deveria ter uma lixeira, que faria um tratamento ecológico para se jogar o adolescente, separar a parte boa e a parte má, e depois devolvê-lo aos pais, cinco anos depois. Mas infelizmente isso não é possível". Quer dizer, eu tenho a preocupação de desculpabilizar, mas de uma maneira muito ativa.
Considero sempre importante poder distinguir aquilo sobre o qual se trabalha e as condições para que esse trabalho seja feito. Na verdade eu teorizo algo que é como eu sou, não é algo que eu me imponho, é algo que se teoriza depois. É como eu digo na carta sobre escrever, a coisa mais difícil no mundo é escrever aquilo que é o seu estilo, embora sempre se devesse escrever a partir disso, mas para isso é necessário ter uma quilometragem de trabalho. A questão da amizade para mim é um operador que favorece que o objeto de trabalho analítico seja realmente bem reconhecido, identificado e tratado. Considero que trabalhamos coisas muito precisas e que, se encontramos um nódulo que condensa dificuldades, impasses, paralisias, e já temos com o paciente uma relação de amizade, ela se irradia depois para o resto e facilita o tratamento destas dificuldades. Acho que se as análises pudessem durar menos, elas seriam certamente mais eficazes do ponto de vista existencial, mas para que elas durem menos, é preciso que se tenha uma maior possibilidade de encontro com os pacientes.
O que ocorre hoje em dia é que, por exemplo, vocês em São Paulo, não sei como é que vocês fazem, eu acho que vocês são heróis. Como marcar com o paciente e respeitar os horários quando se tem duas horas para ir e voltar com esse trânsito, são coisas muito acrobáticas, além do problema econômico.
Hoje em dia estou numa situação diferente, só trabalho meio período, a parte da tarde eu tenho para mim, assim tenho uma latitude que eu não tinha, o que me permite dizer a alguém, por exemplo: "Espere aí, então essa semana vamos nos ver todos os dias" e ele responder "mas eu não tenho dinheiro para pagar", "Mas isso tem a ver com a sua análise e sou eu que quero isso. Você me paga as duas sessões por semana, o problema é meu. É para eu poder fazer o meu trabalho que eu estou dizendo para que venha aqui cinco vezes nessa semana, para fazer o meu trabalho com você e para que isso seja confortável."
Para voltar às histórias extraordinárias, eu acho que as histórias são tão mais extraordinárias quanto menos imaginamos que elas virão a acontecer, não é? Porque se estamos preocupados com que alguma coisa de extraordinário ocorra, aí é puro narcisismo. É aquela posição paranoica dos analistas lacanianos.
Lembro uma moça que conheci num lugar onde eu dei aula, a qual enviei para fazer uma análise com um colega meu com quem tinha feito um grupo de estudo e que tinha me parecido simpático. Ele me telefona um dia e me diz: "olha, Heitor, eu acabei de ver fulana de tal, acho que ela está passando por um momento difícil na vida dela...". Eu digo "ah é, eu tenho mais ou menos a dimensão...", ele continua: "então eu disse que ela viesse viver em Paris, ela vai morar na sua casa para que possa ter uma nova posição em relação à vida...". Isso era muito "analista lacaniano de Paris dos anos setenta"!!

 

PERCURSO Como você pensa a questão do tempo da análise, a duração da análise, a duração das sessões, a frequência das sessões?
MACEDO Eu reservo, em princípio, quarenta minutos e não trabalho menos do que três vezes por semana. Com pessoas que eu sinto que são muito, muito complicadas, eu me guardo entre uma hora e uma hora e meia e eu as vejo duas vezes por semana. Nesses casos considero que há uma questão importante da presença, pois são pessoas que, quando chegam, precisam de um tempo para se instalar, tomar um cafezinho, falar de uma coisa ou outra. É algo bem operatório, quando a pessoa acha que vai acabar a sessão é que começa a falar. São sessões que eu faço em tempo variável. Eu tenho disponível uma hora e meia, mas eu faço em tempo variável. Mas o tempo variável é para mais, não é para menos! Tempo variável geralmente é para menos, não é?

 

PERCURSO Apesar da influência de Lacan em seu pensamento clínico, você é um crítico feroz do que denomina "análise lacano-milleriana", ou "lacanês". No seu seminário sobre o Homem do Subsolo de Dostoievski, você afirma que a narrativa do personagem é o melhor exemplo de uma análise lacano-milleriana bem-sucedida: "a consciência de que o ser humano é apenas um dejeto, que todo o sentimento de bem-estar não passa de uma ilusão e que a única verdade consiste na contemplação de sua impotência". A que você se refere quando fala em análise lacano-milleriana bem-sucedida?
MACEDO Considero completamente perversa a ideia de que uma boa análise é uma análise que obterá, da parte do sujeito, que ele não tenha mais nenhuma ilusão em relação à vida. Que ele compreenda que todos os anseios que tinha antes de vir à análise estavam presentes porque ele não tinha a possibilidade de compreender a dificuldade essencial de responder, de uma forma criativa, à complexidade do mundo. Que a única coisa que realmente vale a pena de ser pensada é que nós todos vamos morrer um dia e que, a partir desse pensamento, se compreende o âmago do ser, algo absolutamente ínfimo em relação à magnitude das dificuldades do real. É um samba do crioulo doido! Não tem nenhum tipo de encarnação na existência, na vida, no corpo, no desejo.
Fui convidado em 2000, pelo Luiz Maia, pessoa maravilhosa, que dirigia a Sociedade Psicanalítica da Paraíba, para ir com o Rodrigué fazer uma comunicação num congresso que eles organizaram sobre os sonhos, "Centenário dos Sonhos de Freud". Tinha um cidadão que fez uma apresentação muito similar ao que eu ouvia e ouço na França até hoje, mas de uma forma exagerada, era amplificado de tal forma que você não acreditava no que estava ouvindo. Ele fez uma apresentação de uma paciente histérica para falar do gozo histérico. Começou a narrar o trabalho com essa paciente que, depois de algum tempo, porque era incapaz de reconhecer a castração, começou a beber. Evidentemente, ele diminuiu o tempo de sessão e aumentou o preço das sessões! Toda a família ficou muito angustiada porque essa moça estava cada vez pior, ele narrou então, como ele pôde resistir a isso, e ela se suicidou no final! Até hoje eu fico mal com essa história. Fiquei possesso da vida, levantei-me e disse "isso não é análise, isso é neofascismo analítico!" Depois, era ele quem iria estar na mesa comigo para me apresentar, eu era o convidado de honra e faria a conferência final. Peguei o microfone e disse: "me recuso a ser apresentado por um crápula, um maluco, um louco, como é que você é capaz de fazer o que fez com aquela paciente!" Esse é o modo que os analistas lacanianos trabalham.

 

PERCURSO De um modo geral, ou você considera que existem lacanianos que trabalham de outra maneira?
MACEDO Não, esses são analistas lacanianos que não são analistas, são impostores, canalhas, que estão unicamente interessados em ganhar dinheiro.

 

PERCURSO O que seria uma análise lacaniana bem-sucedida?
MACEDO Considero que análise lacaniana bem-sucedida foi tudo o que criou a psicanálise na França: Serge Leclaire, André Green, que não foi paciente de Lacan, mas que assistiu aos seus seminários, Smirnoff, Laplanche, Pontalis. Eles foram analisandos de Lacan, e o Lacan, do qual o Smirnoff me falava, não tem nada a ver com esse tipo que eu critico e chamo de lacanês. Lacan podia telefonar para o Victor às duas horas da manhã e dizer "eu não estou dormindo, e pensei em você e naquilo que você me disse na semana passada, então vem amanhã que eu quero continuar a conversar". É a presença do analista da qual o Lacan falava muito. Era algo efetivo e central, o respeito pelas pessoas, o carinho dele pelas pessoas. Isso antes de ele ficar maluco. Ele ficou maluco quando foi excluído da sociedade, da IPA, e a partir daí entrou em parafuso e virou uma espécie de totem para ele mesmo. Os analistas que eram clínicos partiram. Alguns como Aulagnier e Perrier ainda ficaram por fidelidade, mas, pouco a pouco, ele foi ficando com as pessoas mais medíocres.
Vejam só uma anedota terrível: todo sábado eu almoçava na casa de Françoise Dolto, que é a madrinha de minha filha. Um dia encontro Françoise completamente pálida, o que era muito raro, pois ela tinha uma enorme energia. Eu perguntei se ela estava cansada e ela respondeu que tinha acabado de ouvir uma coisa horrível. Uma moça que veio se consultar com Dolto perguntou a ela se era normal um analista dar socos em seus pacientes. Dolto disse que não. A moça contou que o analista a socava. Lacan no final de sua vida estava muito mal e andava dando socos. Foi Jean Oury quem contou isso e disse que Lacan um dia deu-lhe um soco; foi quando ele o pegou e levou-o para o hospital. Mas enfim, nessa época os analistas começaram a socar os pacientes, um troço de seita, louca, demente! E que mostra também o lado demoníaco da transferência, a sua componente alienante, o que concerne a qualquer cura.

 

PERCURSO Você é um psicanalista engajado e preocupado com a situação sociocultural e política e suas repercussões na vida psíquica inconsciente. Nesse sentido organizou, em 1986, um Encontro Latino-Americano de Psicanálise que foi publicado no livro Le Psychanalyste Sous La Terreur (Rocinante, 1988). Que avaliação você faz desse encontro?
MACEDO Minha ideia foi de reunir e fazer dialogar os analistas que tinham trabalhado sob o regime de terror, portanto com uma tensão permanente, com pessoas que trabalhavam com psicóticos. Então, todos os interlocutores eram pessoas que tinham muita experiência em trabalho com psicóticos. Participaram Piera Aulagnier, Nathalie Zaltzman, Radmila Zygouris, Françoise Dolto, Pierre Delaunay entre tantos outros. Para os participantes foi maravilhoso!

 

PERCURSO Recentemente no Brasil, o Ministério Público trouxe à tona a questão dos desaparecidos na época da ditadura militar, considerando tratar-se de um crime continuado, diferentemente de outros crimes de Estado que tiveram um termo e seus agentes anistiados. Você considera que a dimensão do silêncio sobre os terrores aos quais a sociedade civil foi submetida, o fato de não nomeá-los e nem reconhecê-los, permite "que o crime e o ódio continuem a ser inconscientemente transmitidos, imutáveis, de geração em geração". Como pensar o "assassinato da morte" no caso dos desaparecidos políticos, fato que parece ter uma especificidade própria?
MACEDO Não tenho acompanhado muito a questão dos desaparecidos no Brasil, mas é claro que aponto para os riscos de não se nomear e reconhecer os crimes e horrores cometidos pelo Estado. Considero fundamental poder nomear aquilo que está proibido de ser nomeado. Eu acho que isso tem a ver com o cerne do trabalho que realizamos.
As loucas da Praça de Maio tiveram uma função interpretativa extraordinária para a Ditadura Argentina. Graças a elas é que foi mantida uma espécie de esperança para o pensamento que deveria um dia poder ocorrer e isso se deu pela coragem que elas tiveram.
Outro exemplo, muito atual, e espetacular, é o que ocorre na França, em que hoje vemos as repercussões de não se ter reconhecido o sentido e a realidade do que foi politicamente a Guerra da Argélia, ou o que foi o período de Governo de Vichy, em que toda a organização da sociedade era fascista. Como isso não foi devidamente pensado, hoje temos no poder um neofascista, Nicolas Sar­kozy. É corrupto, xenófobo, ataca violentamente os ciganos, defendendo sua expulsão da França. Uma França fascista que tolera guetos, porque a França fascista nunca foi devidamente pensada. Considero que essas batalhas são fundamentais, o grande problema é que são projetos que demandam muito tempo. As resistências a eles não são restritas ao aparelho do Poder. As resistências são de reconhecer como cicatrizes certas coisas que acabamos por reconhecer como fazendo parte da paisagem.
Na época do Geisel o governo declarou que não haveria mais tortura, mas ela continuou existindo. Fizeram disso um problema de comunicação: como vender o que ele disse, que não haveria mais tortura, mas que vai ter que haver tortura? Em primeiro lugar a tortura deixou de ser realizada pelo exército e passou a ser realizada pela polícia. Mas, ao mesmo tempo, chamaram profissionais da comunicação e realizaram uma série de propagandas onde a tortura estava colocada. Então você tinha em revistas, por exemplo, uma geladeira, cheia de correntes, sangue, fios elétricos... "Compre tal, a única que conseguiu resistir à Câmara de Tortura". Um cara no chão, completamente arrebentado, "ele foi torturado e mereceu porque não comprou o último carro de tal marca". Me lembro bem! Isso é a mensagem de poder que faz com que circule, como um discurso comum, algo que é da ordem do horror. Isto tem tudo a ver com o que foi feito aos judeus pelos nazistas, cujos filmes associavam os judeus aos ratos. Na França, por exemplo, temos agora uma propaganda, sobre a qual eu pensei em escrever e acabei não escrevendo, em que há um homem que dirige um carro, ele passa pela cidade de Paris, as luzes, mulheres lindas, e você tem um rato que entra no metrô. Então você tem um metrô com rato e você tem o carro que passa. É uma propaganda da Nissan.

 

PERCURSO Como está a questão do financiamento público da psicanálise atualmente na França?
MACEDO Atualmente isso é algo que está em vias de desaparecimento. Hoje em dia na França as sociedades comportamentalistas recebem fábulas de dinheiro, oitenta mil reais por paciente. A formação de um terapeuta comportamentalista custa cinco mil reais e há um financiamento do Estado. Os oitenta mil são dados pelo Estado. Ao mesmo tempo, há uma diminuição drástica de leitos hospitalares, o financiamento de tudo que seria alternativo está diminuindo cada vez mais.
Isso sem falar do campo da cultura. Em relação ao cinema, eu não sei se já foi aprovado, mas existe o Centro Nacional de Cinema, que financia projetos. Para isso recolhe um percentual da bilheteria que é utilizado, entre outros, para financiar novos projetos, o que se chama um "adiantamento sobre a receita". Existem comissões que escolhem certo número de filmes por ano aos quais é dado esse dinheiro, que é um adiantamento da receita. O governo de Sarkozy determinou que uma parte desse dinheiro fosse reintegrada ao orçamento do Estado para suprir suas dívidas, o que representa uma diminuição de possibilidades.
Com relação aos escritores, por exemplo, existia um recolhimento de quatro por cento sobre o valor dos direitos autorais e agora isso aumentou para sete por cento. Minha mulher, que é escritora, assinou um contrato e recebeu dez mil euros como primeira mensalidade e teve setecentos euros recolhidos pelo Estado. É um absurdo!
É uma maneira de fazer com que todo agente cultural seja tratado como autoempreendedor. O nível da cultura, a autonomia, não existe mais.

 

PERCURSO Segundo você, Raskolnikov, personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski, é nosso precursor no caminho sem Deus, na angústia e no desejo. Ele é o anúncio da tragédia que será a fundação da modernidade. Como você pensa hoje esse homem moderno e a tragédia da modernidade?
MACEDO Eu penso que o homem da modernidade é um resistente. Um homem que vai ter que criar e se integrar em práticas alternativas. Vai ter que resistir a todo esse tipo de decomposição do simbólico que foi constituído durante o século dezenove, e que se tentou resgatar depois da Segunda Guerra Mundial. Há um retorno de uma brutalidade política, uma negação de todos os valores, da ética que constituiu desde sempre o pensamento humanista. O homem moderno está aí, nessa resistência a isso tudo.

 

PERCURSO Antes de terminar nossa conversa, queremos muito agradecer sua disponibilidade e saber se você gostaria de dizer algo mais.
MACEDO Sim. Uma coisa que eu não quis dizer porque poderia me levar a falar muito mais tem a ver com alguém que foi muito importante na minha vida, sobre quem nunca escrevi, que é Jean-Paul Sartre.
Eu o conheci em Recife, quando estava lá por conta da ida ao festival de teatro, com o Grupo de Orla, e fui apresentado a ele por alguém que se ocupava da sua estada. Eu era um garoto de dezessete anos e discutia com ele, dizia que o Ser para a Morte não era exatamente aquilo... Ele ficou completamente embasbacado porque eu era um garoto de dezessete anos que tinha lido O Ser e o Nada, e era preciso ser muito louco para ter dito aquilo que eu dissera.
Quando cheguei à França, ele foi uma pessoa muito carinhosa comigo, e me deu, inclusive, sua última entrevista que foi publicada no Em Tempo. Essa entrevista foi realizada junto com Marco Aurélio Garcia e Eder Sader. É uma entrevista belíssima na qual ele fala muito dos agentes culturais.
Penso que em tudo isso que conversamos tem algo, que está muito mais no pré-consciente, que é toda a noção de projeto, projeto sartreano. A ideia sartreana de liberdade, o modo como ele trata a questão da imaginação, que é a questão da responsabilidade diante da vida. São coisas que me permeiam, é minha pré-história.

 

PERCURSO E a paixão, a alegria, o amor e a liberdade, de onde vêm?
MACEDO Do fato de eu ter tido um pai e uma mãe loucos e ter conseguido sobreviver a isso! Então tudo é ganho! O pai de minha mulher foi quem recebeu em Paris os sobreviventes dos campos de extermínio. Harold conhecia muita gente que tinha escapado dos campos, com quem ele manteve relações. E todas essas pessoas tinham uma alegria de viver, uma fome de viver, como se cada dia fosse o último.
Então, eu acho que a paixão vem do fato de ter escapado de um mundo louco.


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