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Resumo
Este estudo pretende analisar as obras Zygotic Acceleration, Biogenetic, De-Sublimated Libidinal Model (1995) e Great Deeds Against the Dead (1994), de Jake e Dinos Chapman, à luz da psicanálise. Os conceitos freudianos de estranho e fetiche possibilitam maneiras de se compreender a arte desses irmãos ingleses. Consideradas uma encarnação de fantasias infantis, as obras de Jake e Dino Chapman materializam elementos recalcados, que, por isso, provocam no espectador inquietude, terror, asco. Ao reconhecermos tais obras como elementos inconscientes encarnados, elas podem ganhar, sem prejuízo da faceta chocante, um lado também humorístico e lúdico.


Palavras-chave
Irmãos Chapman; fetiche; perversão; estranho; sexualidade; humor


Autor(es)
Alessandra Affortunati Martins  Parente
é psicanalista, psicóloga (PUCSP), bacharel em Filosofia (FFLCHUSP), mestre em Psicologia Clínica e doutoranda em Psicologia Social.


Notas

[1] R. Mackay, "Esto es peor".

[1] H. Foster, "The art of cynical reason", p. 99-126.

[1] Platão, O banquete.

[1] Sófocles, Édipo-rei.

[1] Hesíodo, Teogonia.

[1] Eurípides, Bacas o mito de Dioniso.

[1] M. Coelho, "Pais e filhos no mundo do consumo".

[1] M. Coelho, op. cit.

[1] C. Jencks, Post-Modernism, The New Classicism in art and architecture.

[1] F. Foster, op. cit.

[1] F. Jameson, Pós-modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio.

[1] J. A. Hansen, "O imortal e a verossimilhança"p. 56-78.

[1] D. R. dos Santos, "Anything goes? Uma discussão ética sobre arte extrema".

[1] R. Mackay, op.cit. e J. Hari, "The art of subverting the Enlightenment".

[1] T. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do esclarecimento.

[1] W. Benjamin, "Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo", p. 52-3.

[1] Segundo Foster, A. Warhol disse: "They didn't want my product. They kept saying, ‘We want your aura'" (Cf. Foster, op.cit., p. 114).

[1] W. Benjamin, Passagens, p. 239.

[1] H. Foster, op. cit. p. 118.

[1] S. Freud, "O fetichismo", p. 157.

[1] V. Safatle, A paixão do negativo: Lacan e a dialética.

[1] V. Safatle, op. cit., p. 186.

[1] V. Safatle, op. cit., p. 188.

[1] S. Freud, "O humor", p. 166.

[1] S. Freud, op. cit., p. 169.

[1] S. Freud, "O inquietante".

[1] J. Lacan, "Kant com Sade", p. 792.

[1] Cf. L. A. Garcia-Roza, "Pulsão Parénklisis ou Climanen?".

[1] S. Freud, "Análise terminável e interminável", p. 248.



Referências bibliográficas

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Hansen J. A. (2006). O imortal e a verossimilhança. Teresa (usp). São Paulo,
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Safatle S. (2006). A paixão do negativo: Lacan e a dialética. São Paulo: Editora da Unesp.

Santos D. R. (2009). Anything goes? Uma discussão ética sobre arte extrema. Disponível em <http://iconline.ipleiria.pt/bitstream/10400.8/58/1/Anything_Goes_Uma_discussao_etica_sobre_arte_.pdf>

Sófocles (1997). Édipo-rei. São Paulo: Ediouro.

Vasconcellos F. M. de (2012). Não sei ainda, posso pensar? Dissertação de Mestrado, feusp.





Abstract
This study aims to analyze the works Zygotic Acceleration, Biogenetic, De-Sublimated Libidinal Model (1995) and Great Deeds Against the Dead (1994), by Jake and Dinos Chapman, in the light of psychoanalysis. The Freudian concepts of uncanny and fetish provide ways to understand the art of the English brothers. Considered an incarnation of childish fantasies Jake and Dinos Chapman’s work materialize repressed elements, which cause anxiety, terror and disgust in its viewer. By recognizing such works as embodied unconscious elements, they can win, without prejudice to their shocking aspect, a humorous and playful side as well.


Keywords
Brothers Chapman; fetish; perversion; strange; sexuality; humor.

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 TEXTO

O que vem de dentro me atinge

What comes from within reaches me
Alessandra Affortunati Martins  Parente

O diálogo entre as obras dos irmãos Chapman e a psicanálise é evidente para alguns críticos, e uma referência declarada pelos artistas. Outros[1], porém, assinalam uma distância intransponível entre o pensamento psicanalítico e o trabalho artístico dos Chap­man. As obras Zygotic Acceleration, Biogenetic, De-Sublimated Libidinal Model (1995) e Great Deeds Against the Dead (1994), entretanto, incitam a psicanálise em diversos aspectos; sexualidade, morte, infância, terror e elementos oníricos de toda ordem atravessam esses trabalhos, compondo cenas assustadoras. Algumas temáticas levantadas nas obras parecem conter aspectos terríveis em si: xifópagas, morte, castração, ou falos e ânus deslocados. Entretanto, as obras de alguns artistas com temas semelhantes mostram que nem sempre eles são estarrecedores. O artista brasileiro Tunga é um bom exemplo disso. Em suas obras encontramos conteúdos muito próximos daqueles trabalhados pelos Chapman, como as xifópagas. Há algo, porém, que os diferencia decisivamente: enquanto o brasileiro contorna essa aberração com um ar de mistério próximo dos contos fantásticos, mantendo tais componentes envoltos em uma aura onírica, os irmãos Chapman parecem apenas escancarar nossos anseios de forma nua e crua. São sonhos transpostos para a realidade, extinguindo precisamente o que os mantêm distantes. Tal distância suprimida[2] choca, causa aversão, ojeriza, estranheza. As obras assombram, para só depois ganharem um ar artificial e risível.

 

A obra Zygotic Acceleration, Biogenetic, De-Sublimated Libidinal Model (1995) apresenta diversas meninas bizarras nuas, unidas como gêmeas siamesas. Seus órgãos sexuais estão deslocados para outros lugares do corpo - o ânus na boca, o pênis no nariz e, entre as cabeças, vaginas. Cada uma delas está posicionada diferentemente da outra, e todas calçam tênis preto. O título da peça evoca questões atuais sobre pesquisas genéticas, mas, após seu primeiro impacto, é possível identificar o conteúdo tratado no trabalho desses artistas já na Antiguidade Grega. O mito de Eros, narrado por Aristófanes em O banquete de Platão[3], guarda uma relação com os bonecos unidos de Jake e Dinos Chapman, e o que era amedrontador passa a ter relação com o amor.

 

Em Great Deeds Against the Dead (1994), os artistas retomam a fase negra de Goya, ao reproduzirem o quadro do artista espanhol sob nova forma. Um aspecto pode ser destacado tanto na gravura de Goya, como na obra dos irmãos ingleses. Os membros das figuras - pés e braços - estão amarrados a uma árvore e a castração do corpo morto é visível (fig. 2). Ao mesmo tempo que tratam dos desastres da guerra, há uma retomada da tragédia Édipo-rei[4] escrita por Sófocles na Grécia Antiga. A leitura dessa tragédia grega foi definitiva na formulação feita por Freud do conceito psicanalítico do complexo de Édipo. Muitos elementos da peça já foram analisados na literatura psicanalítica. Um deles é o pé machucado de Édipo. O nome Oedipous etimologicamente significa pé inchado. Ao amarrar os pés de Édipo recém-nascido, Laio antecipa sua própria morte, enxergando no filho um rival que o destituirá de seu lugar no poder, e no coração de sua esposa. Com isso, inibe e mutila os pés (símbolo da força na antiguidade, como o próprio ferimento de Aquiles já havia demonstrado) para enfraquecer a vítima. Édipo fica incapacitado de exercer sua força viril e, além disso, ao mutilar o filho, Laio o exclui das atividades atléticas - importantíssimas na Grécia Clássica - que habilitariam o jovem guerreiro para a conquista do poder.

 

A Teogonia de Hesíodo[5], por outro lado, já apresentava o tema da castração quando, por sugestão da mãe Terra, Crono corta o pênis de seu pai com uma foice dentada. Mas a gravura de Goya, reproduzida pelos irmãos Chapman, evoca ainda outra tragédia: As Bacantes de Eurípides[6]. Nela Penteu, confundido com um leão, tem sua cabeça decepada pela mãe, Agave. Acreditando ter matado uma fera, Agave finca a cabeça do filho em uma haste, para mostrá-la aos cidadãos de Tebas. Eurípides constrói cenas de sexualidade e morte selvagens em homenagem ao deus Dioniso, assim como fazem os irmãos Chapman em seus trabalhos.

 

Se a relação entre a arte dos irmãos Chapman e as diferentes cenas mitológicas não é suscitada imediatamente no espectador, os elos entre a psicanálise e algumas obras dos irmãos ingleses podem parecer óbvios demais para merecer qualquer empenho maior de um pesquisador. O aspecto polimorfo e infantil da sexualidade, a agressividade como faceta de um gozo, relações simbióticas, a castração ou elementos oníricos, presentes em grande parte das peças dos artistas, podem ser considerados um prato cheio para o psicanalista e sua sede de interpretar.

 

Antes de entrar na articulação entre psicanálise e as obras mencionadas, gostaria de apresentar uma anedota para retomá-la mais adiante: ao entrar em uma loja de brinquedos infantis, Marcelo Coelho[7], colunista semanal na Folha Ilustrada, fica perplexo diante da perfeição dos objetos concretos e das surpresas maravilhosas existentes nos dias de hoje, chegando a se perguntar: "Como é que não tiveram essa ideia antes?". A Fada dos Desejos, segundo o jornalista, ganha vida ao conceder existência real a algumas coisas até simples, mas que não vislumbrávamos em sua forma material. Assim, o sapatinho de cristal da Cinderela ganha corpo, e sai das páginas dos contos de fadas dos irmãos Grimm e do imaginário infantil, para incorporar um material específico e ter um preço, o que torna possível até mesmo possuí-lo. Desse modo, para o adulto, o espaço entre o universo da imaginação que habitava sua infância ganha corpo e vida numa espécie de presentificação absoluta.

 

Como complemento à difundida análise sobre a pós-modernidade em que predomina o virtual, as imagens, o simulacro, Marcelo Coelho destaca em sua experiência "uma espécie de hiper-realismo, de replicação, de duplicação, de clonagem perfeita das imagens virtuais no mundo concreto"[8]. Existem bonecas capazes de controlar seus músculos faciais, articular a boca para frente e para trás, e mover as bochechas. Se os sonhos eram antes mais belos do que a realidade, os objetos são hoje tão perfeitos que nem mesmo nossa imaginação poderia concebê-los. Esta experiência de júbilo, ao encontrar nossas caras fantasias encarnadas, tem seu avesso na arte dos irmãos Chapman. Pesadelos ou pensamentos rechaçados assumem sua forma material nos bonecos dos irmãos ingleses.

 

Antes de prosseguirmos, é importante situar essas obras. Para isso, vale a pergunta: em que quadro crítico atual poderiam se inserir os trabalhos desses irmãos? A referência aos mitos[9], um caráter fetichista, o real e uma ausência de distância[10], o pastiche ou a paródia[11], uma citação histórica fora de contexto[12], o abjeto, podem ser alguns dos elementos que justificam pensar a produção dos irmãos ingleses sob a ótica da pós-modernidade. A definição do que é arte pós-moderna, entretanto, não é simples. Há uma polifonia entre os diferentes autores que tentaram achar traços comuns nas expressões artísticas assim denominadas.

 

Alguns desses autores identificaram, no mínimo, traços neoconservadores na arte pós-moderna. Outros, porém, vão mais longe, ao argumentarem que existem componentes fascistas nesse tipo de produção estética. Análises inspiradas em George Steiner, por exemplo, consideram que "em vez de se assomarem caras vivas e cheias de densidade, de existência humana", na arte extrema "apenas nos aparecem bonecos, máquinas e manequins manchados de sangue pelas dóceis mãos do autor"[13].

 

Críticos ferozes[14] da arte dos Chapman argumentam, seguindo essa linha, que tais artistas produzem lixo venal, permanecendo num plano absolutamente superficial, que promove o vandalismo, a crueldade e intensifica o terror e a violência. Do ponto de vista ético, são comparados por esses críticos ao Marquês de Sade ou a Georges Bataille, reiterando ou brincando com temáticas nazistas.

 

De todo modo, se as expressões pós-modernas podem adquirir uma fisionomia fascista, e os irmãos Chapman já foram encaixados dentro dessa perspectiva, não é lícito que uma análise dessas obras escape de tal temática, que resguarda uma dimensão ética. O que se deve perguntar é: afinal, as produções artísticas pós-modernas têm realmente valores semelhantes aos difundidos nas ideologias fascistas? E, se a resposta for sim, outra questão deve ser formulada: as obras aqui analisadas reiteram, ou mais, exaltam um viés fascista? Essas questões têm implicações diversas. Aqui farei uma breve digressão para retornarmos aos artistas, e responder a essas questões a partir das obras já citadas.

 

O fetiche como estratégia

Adorno e Horkheimer[15] publicam a Dialética do Esclarecimento em 1947, época em que todos ainda estavam sob o forte impacto da Segunda Grande Guerra e das atrocidades do regime nazifascista. A imagem da igualdade tecida pelo comunismo também já havia sido abalada com a urss e seus meios totalitários de governo. Por outro lado, a experiência dos autores nos eua demonstrou que o capitalismo norte-americano não só criava a falsa ilusão de igualdade e liberdade, como também havia criado um Estado que regulava o mercado e contra o qual uma luta parecia ser inviável. Sob o disfarce da liberdade individual, slogan capitalista, os regimes totalitários europeus eram substituídos por outro método ultrassofisticado de totalitarismo: o capitalismo administrado.

 

É no interior desse panorama que Adorno e Horkheimer penetram nos meandros das diferentes formas de totalitarismo, para revelar o modo como elas funcionam. A racionalidade aparece como o principal entrave na materialização das utopias e, por isso, se torna alvo da crítica feita pelos autores. Por meio de uma racionalidade instrumental, aquilo que se manifestava como intervenção ou tentativa de ruptura em relação ao sistema vigente era, paradoxalmente, cooptado por este. Sonhos revolucionários, bem como a crença no esclarecimento como forma de conquistar a autonomia, pareciam dissolver-se. Desse modo, indicam um diagnóstico da conjuntura pós-guerra sem oferecer respostas propositivas, acentuando a condição de imobilidade do pensamento crítico.

 

A racionalidade instrumental é identificada pelos filósofos até mesmo na moral iluminista de Kant ou Sade. Ao contrário do que pretendia a humanidade em sua incansável empreitada racional, o fracasso da autonomia impera, e os filhos do iluminismo tornam-se paradigmas notáveis da derrocada da razão.

 

Para Kant, o esclarecimento retira o homem de sua condição de menoridade, isto é, de sua condição heterônoma. A razão organiza elementos formais em uma unidade sistemática conceitual, e garante a existência de um imperativo categórico universal, capaz de orientar moralmente as ações humanas. Tal imperativo categórico distancia o homem do que é natural, trazendo-o para as ações morais - racionais - e para sua condição de liberdade. O que ocorre, entretanto, é que a racionalidade ética, que por definição orienta uma prática, fica apartada da realidade concreta. O maior paradoxo, contudo, não é este, mas o fato de que as mesmas coordenadas para se chegar ao imperativo categórico aparecem nos textos de Sade, alcançando resultados opostos à ética kantiana. Em Sade, a Lei é atingir o prazer unicamente individual, e os meios para realizá-lo revelam-se nas mais diferentes e inescrupulosas formas de violação do outro.

 

Dessa forma, Sade imprime à razão uma capacidade insuperável de subjugar o corpo do outro, mera máquina de peripécias sexuais para libertinos, com uma moral minuciosamente bem construída nos moldes da racionalidade instrumental. Se violar o outro é desafio, as virtudes passam a ser autodisciplina, controle, comando e sagacidade, para que o resultado pretendido seja alcançado sem que nenhum tipo de paixão interfira.

 

Para Adorno e Horkheimer, a arte contemporânea também apresenta uma regressão do esclarecimento à mecânica cooperação com a ideologia burguesa. As novas formas de expressão artística estão fundadas em cálculo, eficiência e técnica, para a difusão do sistema dominante. O que se considera arte é mercadoria a ser consumida sem que qualquer tipo de fruição crítica ou elaborativa prejudique as novas oportunidades de lucro. A arte como reprodução do existente abdica de seus potenciais imaginativos, expressivos e de negação da realidade dada. Tudo é padronizado para divertir e ser infinitamente consumido. Sua qualidade é avaliada de acordo com os critérios do mercado, atendendo à satisfação dos indivíduos de forma condizente com o princípio de prazer.

 

A racionalidade instrumental, vislumbrada na arte que se tornou publicidade, ou na moral iluminista, é o que sustenta o caráter adaptativo das massas à ordem burguesa. Assim, o estudo dos filósofos de Frankfurt mostra que a razão, aparentemente comprometida com o esclarecimento, possui uma face totalitária. O progresso do pensamento perseguido pelos homens para livrá-los do medo, desencantando os mistérios do mundo ao dissolver os mitos e substituí-los pelo saber, desembocou em um pensamento eternamente reificado. Este coincide com a mitologia, e a razão cooptada pela lógica capitalista compele o homem a responder automaticamente no interior dessa dinâmica burguesa.

 

Sem retirar a pertinência da crítica desses autores, seria necessário perguntar também se, ao igualarem toda e qualquer manifestação como integradas ao sistema vigente, e sendo condizentes com a racionalidade instrumental, não estariam precisamente virando o holofote da crítica que formulam para si mesmos. Isto é, assim como os filósofos criticam os objetos que se conformam perfeitamente a um esquematismo conceitual subjetivo já estabelecido - o imperativo categórico kantiano - a crítica tecida por eles adapta toda variedade histórica e das expressões culturais à mesma leitura. O objeto passa a ser visto apenas como mercadoria, sob a ótica da razão instrumental totalitária, perdendo toda sua complexidade.

 

Walter Benjamin (1939) segue em outra direção. Embora reconheça as características apontadas por Adorno e Horkheimer, mostra ambiguidade em relação às conquistas do capitalismo. Sobre o fetiche da mercadoria, diz: "Se a mercadoria tivesse uma alma [...], esta seria a mais plena de empatia já encontrada no reino das almas, pois deveria procurar em cada comprador a cuja mão e cuja morada se ajustar". Mais adiante lemos: "Quando Baudelaire fala de uma ‘ebreidade religiosa da cidade grande', o sujeito, que permanece anônimo, bem poderia ser a mercadoria"[16].

 

Aqui, seria importante analisarmos o papel das artes no contexto atual. Resignados, os artistas não só se rendem ao mercado, disponibilizando suas obras em feiras, leilões e galerias, como também se tornam, eles mesmos, mercadoria, como bem percebeu e expressou Andy Warhol[17]. No entanto, trata-se de uma mercadoria que se adapta ao mesmo tempo que resiste aos ditames do mercado. Diferentemente dos brinquedos encantadores aspirados por Marcelo Coelho, é como se algumas obras recentes invertessem a afirmação de Walter Benjamin, pois a alma da obra-mercadoria não causa qualquer empatia em seu fruidor, mas pede que este se transforme, se ajuste, ou construa uma nova morada para suas formas desajustadas. O colecionador, por sua vez, sente-se desafiado a "[...] inscrever a coisa particular em um círculo mágico no qual ela se imobiliza, enquanto a percorre um último estremecimento (o estremecimento de ser adquirida [pelo colecionador])"[18] ou, pode-se acrescentar, o estremecimento de ser compreendida pelo crítico.

 

Ao se valer do status de mercadoria para inserir sua obra no cenário cultural, o artista talvez esteja próximo do que Peter Sloterdijk definiu como razão cínica. Hal Foster retoma este filósofo justamente para analisar como a razão cínica se inscreve nas artes. Nas palavras do autor: "[...] A razão cínica é uma falsa consciência esclarecida. O cínico sabe que suas convicções são falsas ou ideológicas, mas ele as mantém para o seu próprio bem ou para se proteger, como um meio de negociar as demandas contraditórias que estão acima dele"[19].

 

Segundo o autor americano, essa formulação aponta para a ideia de fetiche tal como elaborada por Freud. Ao ocupar o vácuo deixado pela castração flagrada, o fetiche nega o oco constatado pela visão do órgão genital castrado (feminino), e assume o lugar de substituto do falo. Para Foster, da mesma forma que o perverso ergue o fetiche e escamoteia sua constatação da castração, o cínico desmistifica as ideologias vigentes, sem agir na realidade, simplesmente usando seu esclarecimento a favor de seus interesses.

 

A psicanálise e os irmãos Chapman

Mas afinal, o que se pode dizer sobre as obras dos Chapman? São elas fascistas? Mercadoria? Perversas? Fetichistas? No texto O fetichismo[20], Freud (1927) mostra como o fetiche ocupa lugar de destaque para o perverso, dizendo: "o horror da castração ergueu um monumento a si próprio na criação desse substituto". Em certo sentido, alguns artistas como os Chapman não são ingênuos ou, em jargão marxista, alienados, mas sabem precisamente onde pisam e invertem as ações tradicionalmente esperadas daqueles que são esclarecidos - luta, revolução ou crítica - aproveitando o sistema no qual estão inseridos, para realizar e sobreviver de sua arte, que se torna fetichista.

 

A análise feita por Safatle[21] do texto lacaniano Kant com Sade, unida à sua retomada da perspectiva de Deleuze sobre Sacher-Masoch, rende bons frutos aqui. Em primeiro lugar, Lacan mostra como o sadismo não é a inversão do masoquismo, mas ambos operam da mesma maneira, sendo o sádico mais ingênuo. O que Safatle vai demonstrando por meio de sua análise é que o masoquista incita todo o sadismo do outro, que ingenuamente "sussurra as palavras duras que [o masoquista] lhe endereça"[22]. Assim, trata-se de uma encenação a dois, mas o sádico é mais ingênuo, pois tem a ilusão de preservar sua autonomia. Tal encenação aponta para o humor masoquista que

 

[...] admite a existência de uma inadequação entre a Lei e os objetos empíricos, mas age como se não soubesse. Lacan se serve, por exemplo, da metáfora instrutiva do fetiche como véu no qual "o que está para além como falta tende a realizar-se como imagem. Porém esta realização da falta como imagem é feita por meio de uma estranha transformação do fetiche em "ídolo da ausência" [...]. - o termo ídolo serve aqui para sublinhar a potência da fascinação enquanto desejo de desmentido[23].

 

O termo imagem, empregado pelo autor na passagem citada, deve ser destacado. O masoquista precisamente encena - recorre a uma imagem - a não castração do Outro, isto é, paradoxalmente a aceita e a recusa. Ao encenar seu papel submisso, não destitui a onipotência do Outro, mas simultaneamente reconhece tratar-se de uma encenação, isto é, de uma representação ou imagem irreal, pois a falta do Outro já foi desvelada. Há uma brincadeira, um caráter jocoso e performático do masoquista ao recusar, e ao mesmo tempo admitir, a castração do Outro. Talvez seja essa a relação que os Chapman, entre outros artistas, estabelecem com o consumidores de arte. Ao encenarem esse jogo com o sistema vigente, subvertem-no sem tentar efetivamente modificá-lo, mas, acima de tudo, se divertem no interior dessa lógica perversa do capital.

 

O humor não é destituído de importância. Para Freud, ele concentra algo de libertador e, ao mesmo tempo, guarda certa elevação. Tal "grandeza [do humor] reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do ego"[24]. Ao assumir uma faceta cômica, o ego recusa o abalo diante das provocações da realidade e se nega a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo, que se tornam pretexto para a obtenção do prazer. O humor não é resignado, não se submete à imposição da realidade, mas se mostra iconoclasta. Há uma vitória do princípio do prazer, que afirma sua força frente à crueldade das circunstâncias reais. A atitude humorística para com os outros se assemelha ao modo como um adulto age com as crianças, quando identifica e sorri da trivialidade dos interesses e sofrimentos que parecem tão grandes a elas. Ao repudiar a realidade e se servir da ilusão, o humor liberta as pessoas para rirem da miséria humana. O sujeito, que deve assumir um semblante pesaroso ou de condolência frente à dor do outro, é desarmado e convocado a exprimir o que se escondia por trás dessa máscara. Freud traduz bem o que está em jogo nas intenções do humorista: "Olhem! Aqui está o mundo, que parece tão perigoso! Não passa de um jogo de crianças, digno apenas de que sobre ele se faça uma pilhéria!"[25].

 

Para alguns, contudo, quando temas terríveis da história da humanidade, ou aberrações da natureza, são resgatados com uma pitada de humor - como fazem os Chapman diante de temas catastróficos tratados por Goya, ou com as xifópagas - tornam-se obras de mau gosto e se transformam em terror.

 

O assombroso, o terrível, o grotesco são analisados por Freud em 1919. Em seu texto das Unheimliche, Freud[26] aborda esta categoria como um paradoxo. O termo traduzido para o português pela palavra inquietante diz respeito ao assustador e ao estranho, mas paradoxalmente trata-se de algo que em tempos remotos era bastante íntimo. Etimologicamente, portanto, o termo Unheimliche desemboca em acepções contraditórias, significando tanto o que é estranho quanto o que é familiar.

 

Ao usarem bonecos e manequins, os Chapman, assim como Hans Bellmer, Cindy Sherman, Robert Gober e outros artistas pós-modernos, remetem a uma temática presente em contos fantásticos do século xix. Freud, no texto mencionado, discorda de Jentsch, que considera o melhor elemento para tornar um conto misterioso ou fantástico: a dúvida despertada diante de autômatos ou bonecos aparentemente animados, quanto a serem ou não seres humanos. No caso do conto fantástico de E.T.A. Hoffmann, O homem de areia, analisado tanto por Freud como por Jentsch, o próprio Dr. Coppelius - o homem de areia -, que reencarna o Dr. Coppola, parece ser o elemento estranho e central para o mistério que o autor consegue provocar em seus leitores. Entretanto, o papel de Olímpia, a boneca criada pelo Dr. Spalanzani, não é pequeno, como o próprio Freud admite. Em nota de rodapé, vemos que Freud considera Olímpia o duplo de Natanael, isto é, trata-se de um espelho de sua faceta feminina e, como Narciso, ao ver sua própria imagem refletida na boneca, apaixona-se por ela. Mas, também como o lago, o espelho do duplo é uma armadilha: a correspondência exata entre os ideais do eu e a imagem que emerge diante do sujeito dura sempre muito pouco. No caso de Natanael, o espelho - Olímpia - se despedaça quando o autômato é carregado pelo Dr. Coppola, que discute com Spalanzani, e em meio a um corre-corre seus braços e pernas batem nos degraus da escada, ressoando o barulho da madeira, que toca os ouvidos iludidos de Natanael. Seus olhos estão no chão e duas cavidades negras compõem sua face de cera.

 

Se o impacto terrível sofrido por Natanael diante de Olímpia despedaçada é proporcional à intensidade de seus afetos em relação a ela, e de sua identificação com a boneca, podemos perguntar o que ocorre com nossos afetos, e qual a nossa identificação em relação aos manequins dos Chapman.

 

O efeito de duplicação do eu em bonecos - ou em outros suportes - ou o tema do duplo na psicanálise trata do que originalmente era um artifício para assegurar a não destruição do eu, ou para lutar energicamente contra a fragilidade humana. Exorcizar alguns conteúdos psíquicos, concedendo-os ao duplo que aparece sob forma de espírito, animal ou boneco, é uma boa estratégia para manter a onipotência narcísica. Logo, tais personagens duplicados brotam do solo de um amor-próprio ilimitado, característico do narcisismo primário infantil. Na vida adulta, porém, o duplo com sua faceta amistosa e tranquilizadora fica superado. Assim, se por alguma eventualidade ele ressurge, reacende todos os pavores antes apaziguados precisamente por ele. O que antes era um meio de tranquilizar o ego inverte seu aspecto e ganha qualidade de estranheza, assombrando-o.

 

É esse efeito do duplo pensado pela psicanálise que pode ser suscitado pelos cenários e manequins construídos pelos Chapman. As fantasias de onipotência, plenitude, do encontro de uma alma gêmea, seguem longe em nossas fantasias porque temos ciência de que elas jamais saltarão diante de nossos olhos como espectros flutuantes. Tais fantasias, aludidas no interior de uma diversidade da linguagem humana, aparentemente assumem feição concreta nas obras dos Chapman. Elas parecem despencar do imaginário para o real. É como se os artistas brincassem: "É simbiose o que vocês querem? Olhem o resultado aí". Ou: "A castração é tema, olhem o resultado aí" ou até algo mais sutil, como: "Goya é grande hoje, mas reavaliem suas obras hoje". Justamente ao concederem consistência a fantasmas como esses, as peças dos irmãos ingleses causam terror, atravessam o imaginário e ganham matéria, corpo, e o que antes habitava a vida anímica transforma-se em algo abjeto. Pouco a pouco, porém, começamos a reconhecer nossos sonhos, o terrível que precisamente compõe os nossos desejos, a estranheza que os habita. Se superarmos o choque inicial suscitado pelas obras de Jake e Dinos Chapman, começamos a reconhecer quão absurdos e bizarros são nossos próprios desejos, o que de fato habita nossas fantasias, e o resultado que estas teriam se fossem realizadas. Nossas fantasias transpostas para a realidade não realizam nossos desejos, mas, ao contrário, se tornam desprezíveis.

 

A psicanálise mostrou a presença do prazer polimorfo, da sexualidade infantil, o desejo de fusão com o Outro ou de uma relação simbiótica. Entretanto, tais aspectos jamais são alcançados, pois o sujeito só pode alcançar parcialmente e provisoriamente aquilo que deseja. O sujeito da psicanálise se define por aquilo que lhe falta, e tal falta marca justamente um sujeito amputado de um amor simbiótico - que supostamente o tornaria pleno -, sua ilusória onipotência, sua ilimitada perfeição. Só conseguimos acessar tais desejos, que se mantêm recalcados, de forma indireta e por alusão a eles, jamais diretamente.

 

Lacan (1962) escreve em Kant com Sade: "[...] o objeto do desejo, ali onde ele se propõe desnudo, é apenas a escória de uma fantasia em que o sujeito não se refaz de sua síncope. É um caso de necrofilia"[27].

 

Transfigurada em um objeto preciso, a fantasia passa a ser horripilante. Ora, evidentemente se aquela fantasia passa a ser algo vil, o olhar é direcionado para novas perspectivas. A pulsão de morte[28] geralmente associada com um retorno ao inorgânico, com a ruptura de elos, ou com o desligamento da libido investida em objetos, pode ser também propulsora do novo. Pois, se ela desliga os investimentos em objetos, também é capaz de colocar em causa o que existe, podendo provocar transformações. Torna-se princípio disjuntivo e recusa da permanência do mesmo. Ao promover desligamentos, provoca a natureza das coisas, impõe limites e, portanto, novos começos, em vez de reproduzir o existente.

 

Se as obras dos irmãos Chapman contêm elementos mortíferos, talvez esses elementos estejam atrelados a esta faceta inovadora da pulsão de morte. As obras desses irmãos não são propositivas, nem oferecem soluções, mas rompem com fantasias ou idealizações precisamente ao concretizá-las. Diante disso, regozijamo-nos por habitar um mundo mais belo do que aquele que imaginávamos ser o melhor. Aos olhos de alguns, considerar o fato de que essas obras possam nos devolver nossa condição anterior com novos olhos pode parecer muito pouco, ou pior: uma postura conservadora, resignada, conformista, pouco afeita à revolução, ou até reacionária. Gostaria, no entanto, de sugerir outro ponto de vista: ao reconhecermos que nossos sonhos não são tão maravilhosos como pensávamos e, mais do que isso, muitas vezes eles assumirem máscaras terríveis, voltamos um olhar mais vivo para aquilo que sempre esteve ao nosso lado, e aprendemos a ver o que temos de belo, que merece cuidado e a dedicação de nossos esforços.

 

Não podemos também esquecer de que muitas utopias desembocaram em barbárie. Um amor ideal que supõe uma completude, "cara metade", ou almas gêmeas assume corpo nos gêmeos siameses dos Chapman, e neles percebemos o quão terrível pode ser tal espécie de amor. Como Freud (1937) bem expressou em seu texto Análise terminável e interminável: "o melhor é sempre inimigo do bom"[29] Almejar a realização plena de um ideal implica certo desprezo diante de pequenas conquistas, decisivas para mudanças que realmente importam[30].

 

O que nos resta é o humor diante de nossos fracassos, como o desses ingleses, que brincam até mesmo com fantasias que podem ser deles mesmos - irmãos muito parecidos, quase siameses nos anseios que compartilham -, mas, em vez de se frustrarem por não serem um, divertem-se diante da condição de ter que dividir e negociar meios de realizarem uma obra comum. A vida também não exige sucessivas concessões e permite algumas realizações de nossos anseios? Rir dessa empreitada não me parece nada mal.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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