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Resumo
O autor discute diversos aspectos da relação entre "eu" e "outro", em particular nos casos em que a interação resulta em modificações mais ou menos extensas em um ou em outro.


Palavras-chave
intersubjetividade; alteridade; outro; vínculo; teoria do vínculo


Autor(es)
Isidoro Berenstein


Notas
Esta conferência foi apresentada no XVIII Congresso Latino-Americano FLAPAG e X Simpósio CEFAS, Práticas institucionais na América Latina: Casal, Família, Grupo e Comunidades, realizado em Buenos Aires em outubro de 2009.
 
Revista APDEBA, XXXIII, n. 1, 2011, p. 42. Janine Puget, amiga e associada de Isidoro em muitas de suas incursões nesse território, se despede dele em nome dessa sociedade, que o contou entre seus fundadores e da qual foi um dos mais eminentes membros, num Obituário no n. 3 do mesmo volume dessa revista.

Seus livros dão amplo testemunho deste esforço: Família y enfermedad mental (Paidós, 1976),
Vinculos familiares y Inconsciente (Paidós, 1989), Psicoanalizar una família (Paidós, 1990), Psicoanalisis de la pareja matrimonial (em colaboração com J. Puget, Paidós, 1993), Lo vincular: teoría y técnica psicoanalítica (com J. Puget, Paidós, 1997), El sujeto y el outro: de la ausencia a la prescencia (Paidós, 2001), Devenir otro con otro(s), ajenidad, prescencia, interferência (Paidós, 2004), Del ser al hacer. Curso sobre vincularidad (Paidós, 2007).

I. Berenstein, Do ser ao fazer - curso sobre vincularidade, Via Lettera, 2011, p. 14.

Pessoalmente acredito que também poderia estar expressando sua preocupação com o fato de que seu pensamento pudesse levá-lo a uma ruptura com setores institucionais com visões reducionistas ou sectárias da psicanálise.

I. Berenstein, 2011, Un hecho social visto por un psicoanalista, Manifestaciones alejadas del holocausto, em www.coloquio.org.

N. Crossley, Intersubjectivity. The fabric of social becoming. Outros autores que se ocuparam do tema são Husserl, Buber, Kojeve, Levinas, entre outros.

Alterar. Diccionario de la Lengua Española.

Crossley citando Husserl. N. Crossley, op. cit. (Esta e as próximas traduções de citação do espanhol para o português foram feitas livremente pela tradutora.)
Dentro das formas de se considerar o Outro, Laín Entralgo, citado por Ferrater Mora (1965), bem como outros autores, falam do outro enquanto objeto de um eu instintivo ou sentimental, como característica da Psicologia inglesa. Aparenta-se ao ponto de vista do outro como invenção do eu (Dilthey, Unamuno). Outra forma é o reconhecimento do outro a partir do cogito (Descartes) e criado pelo eu. Reconhecimento a partir do eu, o qual é diferente de conhecimento possível ou impossível. A esta caracterização falta o que de Nietzsche em diante tratou-se de pensar acerca das coerções que o eu impunha e que inaugurou o que seria, com o avanço do século XX, um pensamento acerca do outro.
"O término deste movimento - a outra parte ou o outro - é chamado outro num sentido eminente. Nenhuma viagem, nenhuma mudança de clima e ambiente poderiam satisfazer o desejo a que ele aspira. O Outro, metafisicamente desejado, não é outro como o pão que como, como o país em que habito, como a paisagem que contemplo, ou por vezes, como eu mesmo em relação a mim mesmo - esse eu que é outro. Dessas realidades, posso nutrir-me e, em grande medida, satisfazer-me, como se outrora me houvesse faltado. Sua alteridade é reabsorvida por minha identidade pensante ou possuidora. O desejo metafísico tende ao totalmente Outro, ao absolutamente Outro. A análise habitual do desejo não poderia dar razão de sua singular pretensão. No fundo do desejo comumente interpretado, encontrar-se-ia a necessidade; o desejo assinalaria para um ser indigente e incompleto, ou despojado de sua grandeza passada. Coincidiria com a consciência do que foi perdido. Seria essencialmente nostalgia saudosa. Mas, deste modo, não suspeitaria ainda o que é verdadeiramente Outro. O desejo metafísico não aspira ao retorno, visto que é desejo de um país no qual não nascemos. De um país completamente estranho, que não foi nossa pátria e ao qual nunca iremos. O desejo metafísico não repousa sequer nalgum parentesco prévio.

Na tradução para o português, considera-se a conotação da palavra ajeno em espanhol: (adj.) pertencente a outra pessoa. Diccionario de la lengua española, p. 80. No português, considera-se a conotação da palavra alheio: (adj.) que é de outrem ou lhe diz respeito, Dicionário Houaiss da língua portuguesa, p. 94.

R. Espósito, Communitas. Origen y destino de la comunidad, p. 22.


Referências bibliográficas
Crossley N. (1996). Intersubjectivity. The fabric of social becoming. Londres: Sage Publications.

Diccionario de la Lengua Española (1956). Madri: Espasa Calpe.

Diccionario de la lengua española (2001). Madri: Real Academia Española, v. 1. 22. ed. (Cidade do México, 2009).

Dicionário Houaiss da língua portuguesa (2009). Rio de Janeiro: Objetiva.

Espósito R. (1998/2003). Communitas. Origen y destino de la comunidad. Buenos Aires: Amorrortu.





Abstract
The author discusses several aspects of the interdependency between the self and the other, especially when the outcome of their interactions is an alteration in one, in the other or in both.


Keywords
intersubjectivity; alterity; otherness; link; theory of the links.

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 TEXTO

Intersubjetividade e alteridade: a alteração do sujeito e do outro

Intersubjectivity and otherness: changing the subject and the other
Isidoro Berenstein

Apresentação
Isidoro Berenstein (1932-2011)

No quarto ano de medicina, éramos treinados para escutar todos os ruídos do corpo humano. Um dia, dois colegas me avisaram que havia um professor que estava ensinando a escutar um estranho ruído cuja propedêutica ainda não tínhamos estudado. O professor era Isidoro e o estranho ruído era a voz humana captada numa primeira entrevista feita por ele com uma família, que chegava a nós através de um gravador italiano de fita de marca Gelosso. Essa foi a primeira vez que estive próximo de Isidoro.

 

O último contato muito próximo com ele foi através de Sara, sua esposa, quando, depois de sua morte, tive a honra de que ela compartilhasse comigo alguns trabalhos póstumos e algumas comunicações de Isidoro para sua família. Entre eles, gostaria de destacar uma carta de Isidoro a seu neto, em que lhe contava como ele era aos nove anos, como dormia na sala da casa onde seu pai tinha sua oficina de alfaiate, como caminhava longas distâncias para chegar à escola, como eram seus jogos de futebol na rua, etc. Ele tinha aquela condição tão necessária aos terapeutas e/ou professores (ainda que não tão difundida entre eles) de poder falar com cada um em seu nível, desprovido do narcisismo exibicionista que tanto distorce a transmissão. Sabia cumprir eficientemente com seu objetivo de se comunicar com o outro em seu nível, fosse ele interno de medicina, neto ou colega acadêmico. Essa atitude - junto a seu humor, sua generosidade, seu democrático senso de justiça e sua persistência - permitiu-lhe ter uma plêiade de amigos entre seus colegas, discípulos e analisandos que mantiveram contacto com ele durante toda sua vida, entre os quais fazemos parte aqueles quartanistas que começamos a apreender os primeiros "ruídos" da voz humana com ele.

 

Sua vida foi fértil em êxitos profissionais: foi professor na Universidade de Buenos Aires (onde o conheci com seu gravador Gelosso), na apa e depois na apdeba; dirigiu por muitos anos cursos universitários em vários países e foi o primeiro diretor do comitê de estudos de casal e família da Associação Internacional de Psicanálise. Foi galardoado com múltiplas honrarias, entre elas o Prêmio M. Sigourney por contribuições excepcionais no campo da Psiquiatria e da Psicanálise.

 

Em sua longa trajetória no campo de pensar os diferentes aspectos da psicologia humana, Isidoro centrou-se na pesquisa da especificidade da dinâmica dos casais e das famílias. Podemos dizer que percorreu várias etapas na sua pesquisa, como ele mesmo comenta em diversos textos (por exemplo I. Berenstein, Do ser ao fazer, Via Lettera, 2011). Segundo a poesia de Antonio Machado que ele mesmo gostava de citar, foi "...fazendo o caminho ao andar" ("caminante no hay camino / se hace camino al andar"). Mas, para uma melhor compreensão das dinâmicas que pretendia estudar, aprofundou sua compreensão do filosófico, do histórico e do antropológico-social, recorrendo a exaustivas leituras de autores como Levi-Strauss, Levinas, Agambem, Espósito, Foucault, Camus, Lewkowicz, entre tantos outros. Seu profundo conhecimento dos autores psicanalíticos iluminou seu percurso para se valer deles para conhecer e também para saber o que a partir deles não se podia conhecer do território que pretendia explorar.

 

Conseguiu driblar a armadilha exemplificada com a piada do bêbado em que frequentemente se encontram (nos encontramos?) os pesquisadores desta área: o bêbado que tendo perdido as chaves do carro se dirige a uma luminária distante para procurá-las, já que ali tinha luz suficiente, mas não era ali onde as chaves tinham caído!! Frequentemente tentamos iluminar a dinâmica do que acontece no vínculo com conceitos vindos da luz da psicanálise individual, a qual nem sempre nos ilumina o "lugar" em que estão as chaves do enigma que pretendemos debelar.

 

Assim, para iluminar seu pensamento foi propondo conceitos que davam conta de sua caminhada na construção de seu "objeto formal abstrato" casal e família, que não são necessariamente, ou pelo menos não são só, o casal ou a família da psicanálise clássica (narcisismo, Édipo, identificação), nem da antropologia (relações de parentesco) e sim os que ele tentava pensar desde sua particular visão do vínculo.

 

"Chamamos vínculo a conexão ou enlace, ao laço, que liga de uma maneira fluida e acompanhada de alguma ideia de estabilidade (que seja estável o decide cada um informado também pelo olhar da época em que vive) a duas ou mais pessoas (sujeitos) que decidem um fazer desde uma relação de presença", diz Isidoro em seu artigo de 2011 publicado na Revista de la Asociación Psicoanalítica de Buenos Aires[1].

 

Nesta definição de vínculo estão contidos alguns dos termos principais de sua visão: este é o campo de ação e teorização principal de sua empreitada[2] na qual progressivamente vai diferenciando sua temática, desenvolvendo a importância da presença do outro, que excede a dos objetos internos projetados. Em oposição à repetição (trabalhada exaustivamente desde Freud), ele trabalha a interferência no presente através de mecanismos de imposição que aparecem como eixo da relação vincular, onde a mútua imposição tem capacidade de produzir inconsciente, diferenciando-se da transferência.

 

Explora também a temática do fazer no vínculo. Estuda como cada um é um outro diferente com cada outro, em uma subjetividade vincular na qual nenhum deles é centro de si mesmo nem da relação e na qual "...ambos se produzem como sujeitos a partir de determinadas relações de poder que percorrem o vínculo"[3].

 

Isidoro transitava com leveza entre a problemática vincular e a social, e sua tão frequente referência nos seus últimos escritos à "revolução" - tanto a Revolução Francesa, quanto a revolução social em geral e a revolução nas relações interpessoais - traz à tona seu pensamento sobre a noção de ruptura com o anterior, acompanhado da problemática da autorização para produzir o novo, enriquecendo com seu pensamento a psicanálise em sua borda com o novo, com o inesperado que se apresenta na relação vincular ou no espaço social[4].

 

Em pelo menos dois momentos (uma vez em São Paulo e outra em Buenos Aires), discuti com Isidoro se, ao teorizar nos últimos tempos o que acontecia no "entre" quase com exclusividade, não poderia favorecer as cobranças que alguns colegas lhe faziam de deixar de lado o inconsciente "clássico" e todas suas implicações sobre o histórico, as identificações, as repetições, etc. Com suas respostas, sempre carinhosas e bem humoradas, me lembrava, com seu conhecimento erudito da psicanálise, que não estava deixando nada de lado, estava acrescentando algo que poderia enriquecer nossa compreensão.

 

Em seu trabalho apresentado ao cmj (Congresso Mundial Judaico)[5] em 2011, nos oferece uma análise muito interessante de uma notícia que no fim dos anos 1970 comoveu a opinião pública de Israel quando Isidoro ali morava. Uma jovem mãe judia, filha de pais deportados de campo de concentração, ao ser informada pela vizinha que sua casa ia ser assaltada por um comando terrorista, se refugia no sótão com seu marido, sua filha mais velha, sua filha de colo e a vizinha que tinha vindo alertá-la sobre a invasão. Percebendo que tinham deixado a chupeta que iria silenciar a pequena, impedindo de serem notados em seu refúgio, o pai e a filha mais velha partem para trazer a chupeta para o sótão. Ao serem pegos pelos invasores, são fuzilados. A mãe desesperada percebe o acontecido. Sua filha, antes de recomeçar a chorar, lhe pergunta em que lugar estavam. Ela recordará mais tarde que sua resposta foi que estavam num trem. Como sua filha continuava chorando e ante o perigo de serem ouvidas e correr o mesmo fim do marido e a filha, ela continua tampando a boca de sua filha até que ela morre.

 

Isidoro propõe que é a vivência transgeracionalmente transmitida do cativeiro dos pais da vítima o que dá sentido à aparente estranha resposta da mãe sobre estar num trem, ao descrever seu esconderijo no sótão em sua comunicação final para sua pequena filha. Isidoro informa suas hipóteses com relatos que Primo Levi e Eli Weisel realizaram do transporte deles no trem que os conduziria a Auchswitz. Neste riquíssimo artigo, vemos como desde o histórico social mais amplo até a mais sofisticada filigrana das identificações, da qualidade dos objetos internos até as postulações vinculares profundas, nos são oferecidas as percepções agudas de alguém que, como poucos, alcançou uma rara maturidade na teorização psicanalítica, ampliando seus horizontes.

carlos guillermo bigliani

 

Introdução e dificuldades
que nos levam ao tema

A intersubjetividade surge com a questão da existência, da subjetividade do outro, e se coloca em torno de uma questão ética: o outro existe por direito próprio, tem ideias e formas de atuar próprias, que não são reduzíveis ao nosso pensamento[6]. No entanto, quando falamos da existência do outro ou inclusão do outro, fica claro que a perspectiva é a do eu. Para acentuar o descentramento do eu, sugiro pensá-lo como outro entre outros, e a relação também como sendo entre outros. Dizer nós (em espanhol, nosotros) obriga dizer outros (em espanhol, otros). O plural não anula a ideia de autocentramento.

 

Estou falando num congresso de analistas, e certamente meus interlocutores podem pensar que isto não seja novidade. Afinal: não é a transferência uma relação do paciente com o outro, o analista, e este último não responde ao primeiro por contratransferência? Não é esta uma relação para entre um e outro?

 

Entretanto, nós, psicanalistas, que atendemos pacientes chamados individuais ou conjuntos, estes casais, famílias ou grupos, vemo-nos diante do problema de: i) pensar o conjunto a partir de uma clínica e teoria individuais, aplicadas a tratar de mais de um atendido (ideia de um, mais um, mais um, etc.). Ou então, ii) permitir pensar outras formulação clínico-teóricas, que deem conta das relações que ocorrem nesses conjuntos pluripessoais ou intersubjetivos, o que implica usarmos novos termos para nomearmos novos conceitos. Talvez ambas as questões possam ser consideradas, contanto que sejam declaradas heterogêneas, ainda que superpostas. Faz-se necessário aceitar que têm lógicas diferentes, além de constituírem-se em áreas distintas, embora coexistentes - a do plano individual e a do vincular.

 

A alteração do sujeito e do outro

Alteridade, bem como alteração, deriva de alter: o outro entre dois. É que, numa relação, o outro produz uma perturbação, um transtorno, provocando uma inquietude, ao propor uma mudança da essência ou da forma de uma coisa[7]. Consiste no sentido da identidade do eu.

 

A necessidade de voltar à noção de outro em psicanálise está determinada pelo esgotamento do uso das noções de eu e de self, em suas relações de objeto e com o objeto. Não se pode ter consciência de si e conhecimento de si, sem tomar-se conhecimento do outro[8]. O pertencimento a um conjunto humano dá-se quando há um mínimo de duas pessoas, podendo este constituir-se por mais de duas, como, por exemplo, no caso da família e do conjunto social. Esse pertencimento demarca um vasto reino de identidade, tornando-a menos idêntica a si mesma. Nesse sentido, é pouco o que se diz de um integrante de um conjunto em seu documento de identidade.

 

Certa assimetria caracteriza a relação entre o sujeito e o outro. Não podem ser considerados parte de uma unidade, que é o que se expressa na noção de dois. Trata-se de uma experiência subjetiva. Observamos que a experiência de dor física num outro, por exemplo, não é provocadora da mesma dor no sujeito. Traz pena, lástima, comiseração, mas não a própria dor física. No entanto, a afetação assimétrica e o fazer conjunto numa situação de dor física do outro produzem uma experiência de vínculo dos dois.

 

Lembro-me de certa ocasião em que eu falava por telefone com um amigo de Israel, à época da incursão israelense no sul do Líbano, quando recrudesciam os combates e ações contra o Hezbollah. Uma sirene anunciava que, num tempo breve e determinado, os israelenses seriam atingidos por um míssil. Meu amigo lá e eu cá, em meu quarto em Buenos Aires, discutíamos a experiência. Percebi que por mais que eu me identificasse com a inquietação e o sobressalto vividos por meu amigo, eu não experimentava a mesma vivência de risco, de perigo, de desamparo, diante da iminência do míssil e da perspectiva de ter que abandonar o que fosse para correr até um refúgio subterrâneo, este que certamente cheiraria a medo. O que fazíamos os dois, por telefone, era bordar, sobre o hiato dessa diferença, uma ponte de palavras. Não de explicações, mas onde fosse possível conversar, apesar das circunstâncias, nas quais ser estrangeiro não implicasse anulamento, mas ajudasse a construir essa ponte. Ponte é metáfora do entre que permite transitar o intervalo que separa dois espaços, dois momentos, estes que caracterizam a relação entre os sujeitos.

 

É importante ampliar a distinção entre objeto, mesmo que se considere objeto externo, e outro, que possui características para além de ser externo, e isto tanto ao eu, como à sua própria interioridade. O eu está movido por uma carga pulsional e uma inscrição representacional, no vínculo com o outro, e poderá incorporar e modificar-se desde o que é proveniente do outro[9] (Berenstein, 2001). Um filósofo indispensável à consideração do outro é Levinas (1971; 57, 60)[10].

 

Cada ser falante chama a si mesmo de eu no ato da fala, e está relacionado a um outro reversível, recíproco e complementar a si próprio, a um você. Mas, nessa relação, há aspectos que podem ser conhecidos, identificados, postos ilusoriamente como semelhanças, mediante identificações. Outros aspectos permanecem fora, não sendo passíveis de identificação. Aparecem como pertencentes especificamente ao outro e, ao mesmo tempo, como produto da relação. Trata-se do alheio[11], que só pode ser apresentado e não representado. Não possui lugar preestabelecido, nem se pode esperar que o possua. Sempre surpreende, sendo nossa tarefa dar-lhe lugar, inscrevê-lo, aceitá-lo. É resultado de uma imposição, inerente ao fato de se estar vinculado. Seria o que Levinas descreveu como esse país completamente estranho, que não foi pátria e para o qual nunca iremos... que não repousa em algum parentesco prévio.

 

A intersubjetividade vista
a partir da teoria do vínculo

Chamamos vínculo à conexão, ao enlace, ao laço, à ligação entre duas ou mais pessoas, aos sujeitos relacionados tanto de maneira fluida, como estável, embora cada um decida o que é, para si, o estável. Trata-se de uma ligação que permite um fazer e um ser diferentes do que seriam individualmente ou se estivessem numa relação diferente. Ser uma ligação estável implica dar-se entre, no meio - consiste numa série de ações cambiantes e variadas que, uma vez transcorridas, deixam como pegadas na memória, de um feito conjunto. Mas as pegadas não são as ações evanescentes, que se consumiram no fazer. Por exemplo, se um conjunto de pessoas produz uma ação, como a ação da fala, esta flui, passa, e fica a recordação coincidente daquela conversa que tivemos. Se um par moveu-se para cumprir uma relação sexual, logo fica a memória dessa relação sexual, da qual se pode falar. Dessa ação, a que chamamos fazer, ficam registros, a que chamamos os fatos, e destes se apagam características do momento do fazer, do acontecer. Ficam os acontecimentos e se perdem as peculiaridades.

 

Como vocês notarão, essa definição exclui do termo vínculo outras relações - como aquelas entre representações, entre uma palavra e seu significado, entre objetos internos e o eu. Nesse sentido, eu gostaria de apresentar alguns esclarecimentos: i) o termo vínculo, bem como link, em inglês, ou lien, em francês, pode pensar-se, e em geral se tem pensado, como caracterizado por certa firmeza, rigidez ou solidez. Estas características não são confirmadas por nossas observações clínicas. O mesmo ocorre com a noção de lugares estáveis (do pai, da mãe, do filho, etc.). Pensa-se que a família impõe tais lugares, que implicariam um dever ou não dever fazer, bem como o cumprimento de certas funções que organizariam esses lugares. Nossas observações clínicas, entretanto, não reproduzem essas descrições.

 

Por outro lado, não é simples falar e mover-se numa relação caracterizada pela fluidez. Talvez possamos encontrar outros termos para descrevermos essa relação entre sujeitos, tal que transmita a ideia de fluidez e mobilidade, associada a essa fragilidade das certezas. Por sua vez, as incertezas não devem desaparecer, senão devemos dar-lhes um lugar e deixá-las trabalhar. Não constituem uma falha, mas um componente atual da vida que vivemos, e devem participar de nossas formulações.

 

O vínculo como expressão de intersubjetividade, que está em jogo na alteridade, implica dois requerimentos: i) a vivência e o conhecimento do alheio e ii) o reconhecimento da busca da semelhança na diferença. O primeiro tem como efeito a surpresa ante uma perspectiva que não é a do próprio sujeito, que implica certa vivência de imprevisão, a respeito da qual não é possível conduzir-se um cálculo antecipado, e que atua na direção do descentramento. O reconhecimento liga-se ao desejo, como o expressa Hegel: o desejo de ser desejado. Liga-se secundariamente a uma presença, porque em sua base há certa falta que só pode ser suprida a partir do exterior, similar às necessidades do corpo. A presença do outro produz uma imposição, um conhecimento, e relaciona-se ao desejo secundariamente - depois, é investido por ele. A presença do outro dá lugar e sentido à presença do próprio sujeito, que é o que se chega a conhecer. Aprende-se que o desejo não o cobre, o que seria o máximo de descentramento. Há uma disparidade: o desejo do outro tende à unicidade. Se o conhecimento do outro produz uma brecha e uma separação inicial, deve levar a um fazer para habitar essa relação. Por sua parte, o reconhecimento e o desejo de ser desejado produzem uma identificação - tendem a uma unidade.

 

Difícil conter um sentimento dentro de si mesmo: a autoestima tem seu reconhecimento na estima do outro. Não qualquer outro, mas o outro qualificado pelo sujeito. O orgulho está na base da relação com o outro que lhe exalta suas qualidades a partir de uma posição vincular. Difícil responder com agressão se não se é agredido. A vergonha da criança com enurese está ligada ao tornar visível ante do outro (pai, mãe, madrasta, escola) o que se requereria ser invisível. Faz-se vincular um feito que dir-se-ia individual, ou torna-se público o que se demanda manter privado. A inveja nasce daquilo que o outro não pode deixar de mostrar e o sujeito não possui e não pode deixar de ver. Estabelece-se uma competição entre os dois, ou mais de dois, que buscam demonstrar quem é melhor, ou se dá melhor, diante de um juiz, pai, mãe ou jurado. Em todo caso, isto é possível àqueles que formam parte de um grupo e são reconhecidos como seus integrantes, tornando-se algo assim como seus cidadãos. Desta espécie de cidadania, alguém é expulso por sua agudez e acritude, sendo a máxima expressão da exclusão declarar-se como não pertencente a este vínculo. Há vários indícios prévios que marcam a saída do território vincular - um casal em que um muda de cama, de quarto ou de casa, estas três representações que sustentam esse lugar de pertencimento específico.

 

Isso se exacerba quando predomina o biológico na relação de casal ou a família adota a forma de se estar a serviço de outrem, já que a necessidade corpórea gera situações de desamparo. Ver-se-á em casais que, quando o corpo de um adoece, o outro se põe a seu serviço. Suspende-se o conflito, cessam os reproches que marcam a relação e, no geral, o segundo dispõe-se assimetricamente a cuidar do primeiro, a assisti-lo e ampará-lo. Isto é sentido como um renascer do amor, o que, na realidade, caracteriza uma relação de amparo-desamparo. Anula-se a situação que gera o alheio, suspendendo-se o reconhecimento de ambos como sujeitos desejantes, e exacerba-se a relação de necessidade.

 

Continuando-se a pensar a diferença entre dois e um, essa disparidade aplicada ao conceito de comunidade é explicitada por Espósito[12]: "[...] essas culturas da intersubjetividade sempre a buscar a alteridade num alter ego semelhante em tudo e para tudo ao ipse que queriam refutar, e que em troca reproduzem duplos. O que na verdade une a todas estas concepções é o pressuposto não meditado de que a comunidade é uma propriedade dos sujeitos que une: um atributo, uma determinação, um predicado que os qualifica como pertencentes ao mesmo conjunto. Ou inclusive uma substância produzida pela sua união" (p. 22).

 

Mas Espósito deseja propor outro sentido: o de separação entre um e outro. Comum, diz ele, é o que não é próprio: "[...] não é o próprio, senão o impróprio - ou mais drasticamente, o outro - o que caracteriza o comum. Um esvaziamento, parcial ou integral, da propriedade em seu contrário. Uma desapropriação que investe e descentra o sujeito proprietário, forçando-o a sair de si mesmo, a alterar-se. Na comunidade, os sujeitos não encontram um princípio de identificação, nem tampouco um recinto asséptico em cujo interior se estabeleça uma comunicação transparente, ou então, o conteúdo a comunicar. Não encontram senão esse vazio, essa distância, esse doadores a, enquanto eles mesmos doados por um circuito de doação recíproca, cuja peculiaridade reside justamente em sua obliquidade, respeito à frontalidade da relação sujeito-objeto, e por comparação à plenitude ontológica da pessoa (a não ser na formidável duplicidade semântica do termo francês personne: que tem o sentido de pessoa e de ninguém).

 

"Não sujeitos. Ou sujeitos de sua própria ausência"[13].

 

A relação está atravessada por um conflito entre o não conhecido por conhecer e o conhecido por reconhecer, entre o alheio e o semelhante. Isto pode i) dar lugar ao alheio do outro, que não tem registro representacional no sujeito, arriscando uma desestruturação de sua identidade e o surgimento de uma subjetividade do vínculo distinta à prévia, dependente do vínculo com o outro, ou ii) dar pertencimento ao vínculo estando ligado à autorização, a incluir-se numa zona de azar, de incerteza, de não conhecimento prévio e de correr-se o risco de modificar-se e de modificar o outro. Autorizar-se é agregar certa qualidade à permissão dos pais internos ou externos e aos hábitos sociais vigentes. Do começo ao fim, o vínculo carrega um conflito interminável entre individual e intersubjetivo, entre a identidade e o pertencimento.


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