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Resumo
Resenha de Fernando José Barbosa Rocha, Entrevistas Preliminares em Psicanálise. São Paulo, Casa do Psicólogo, 2011. 219 p.


Autor(es)
Betty Bernardo Fuks
é psicanalista, professora do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade – UVA (RJ), autora de Freud e a judeidade: vocação do exílio (Zahar, 2000) e Freud e a cultura (Zahar, 2003).

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 LEITURA

Do navegar à transmissão da Psicanálise em nossos tempos

[Entrevistas Preliminares em Psicanálise]


From sailing to the transmission of psychoanalysis in our time
Betty Bernardo Fuks

No conto "A terceira margem do rio"[1], Guimarães Rosa escreve sobre transmissão: um homem decide abandonar a família, ir-se numa canoa para o meio do rio sem nunca voltar a uma das duas margens possíveis. Os filhos assistem à partida e este abençoa apenas aquele que manifesta o desejo de ir-se com ele. Passados alguns anos, já velho, apela a este filho que o substitua na tarefa de manter-se no fluxo contínuo do rio. Entretanto, tomado de pânico o jovem não atende à convocação paterna e, daí em diante, o conto se transforma na narrativa de sua culpa. A crítica literária costuma traduzir esta situação entre pai e filho como o impasse de todo escritor diante do rio da tradição. Para criar uma obra de valor, todo escritor deve ocupar o lugar da terceira margem, lugar simbólico que permite a transmissão da herança cultural[2].

 

O mesmo vale para os impasses da transmissão e da preservação do lugar da psicanálise na cultura. É esta a lição que encontramos no livro, recentemente lançado pela editora Casa do Psicólogo, Entrevistas Preliminares em Psicanálise.

 

O autor Fernando Rocha possui um estilo de transmissão que parece estar calcado no mandato de um outro Fernando, o poeta dos heterônimos: Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: "Viver não é necessário; o que é necessário é criar"[3]. Rocha, na introdução do livro, aproxima, sob a égide da alegoria, arte de navegar e psicanálise. Com isso aponta para um problema que toca de perto a transmissão da psicanálise: de que modo conciliar o valor dos conceitos que instituem a teoria psicanalítica com uma prática que ocorre essencialmente na transferência, na relação com o outro, nas formas tornadas possíveis pelo desenvolvimento da linguagem?

 

Rocha propõe duas grandes qualidades de Freud, criatividade e precisão clínica e teórica, como o norte do trabalho que irá apresentar nas páginas de seu livro, obra marcada pela leitura de vários autores que se debruçaram sobre a clínica e a teoria analítica nos seus mais de cem anos de existência. Partindo da experiência vivida em outro país, Rocha escolhe colocar em destaque o tema desenvolvido por Freud em "O início do tratamento" (1912). Para evitar a interrupção da análise, o inventor do método psicanalítico entendia como necessário um tratamento preliminar no qual o analista avaliaria as condições do paciente à transferência. Com isso ele pode melhor se inteirar do caso e decidir sobre a possibilidade de sua analisabilidade. Jacques Lacan, como se sabe, chamou a este período de "entrevistas preliminares" e o definiu como um tempo que compreende a formulação do diagnóstico estrutural, até o momento em que se inicia a análise propriamente dita. Trata-se, para este analista, de entrevistas que têm a função de transformar o sintoma do qual o candidato à análise se queixa, em sintoma analítico.

 

Num esforço de traduzir a importância do tema que irá desenvolver, Rocha expõe algumas vinhetas clínicas com as quais vai mostrar que a dimensão analítica tem início no momento em que é marcada a primeira entrevista. A exposição facilita ao leitor apreender do que se trata este período no qual o analista procura garantir o êxito da condução do tratamento. Por outro lado, algumas passagens do livro ressaltam que a diversidade de constelações psíquicas reservam aos analistas um elemento de surpresa que não tem como prever.

 

A aspiração de Rocha em distinguir o ato clínico do relato do analista é o que marca seu estilo de transmissão. O que os pacientes lhe transmitiram, portanto o que lhe ensinaram, foi o fato de que não há análise sem o estabelecimento destas entrevistas. Logo, cabe ao analista "redirecionar a demanda do entrevistando, podendo, assim, conduzi-lo a uma demanda de análise" (p. 35). Com efeito, trata-se de uma ação que instala o dispositivo da transferência, o playground, como dizia Freud, onde se desenrola a análise. Neste lugar que espelha tanto o motor de uma análise quanto a própria resistência do inconsciente, o analista encontra meios de fazer com que o analisante se submeta à associação livre, cuidando de ele próprio não fugir, jamais, de manter sua escuta voltada ao que emerge em função dos efeitos desta regra básica.

 

Um outro aspecto do valor do livro encontra-se na reflexão que o leitor é levado a fazer sobre o futuro da psicanálise em nosso tempo. Ameaças cientificistas pesam sobre a psicanálise: as neurociências, na pretensão de explicar o inconsciente em termos neuronais, concorrem para que o sujeito do desejo seja categoricamente exterminado. Portanto, merece saudações um livro que dá mostra da importância da transmissão, do valor e da qualidade das ferramentas teóricas psicanalíticas que permitem operar a prática clínica.

 

Rocha estabelece, no último capítulo, uma forte resistência a que o corpo biológico - destacado pela metodologia estatística do dsm e do cid que encarrega a nova psiquiatria a tratar os sofrimentos humanos exclusivamente através de medicamentos, descartando totalmente o sentido do sintoma como produção de linguagem - se sobreponha ao corpo da linguagem.

 

Aí reside, a meu ver, um ponto importante do livro em questão: defender a excepcionalidade clínica das entrevistas preliminares na contemporaneidade, um tempo invadido pelas patologias do corpo. Resguardar o que foi prescrito por Freud significa navegar com os instrumentos precisos de seu legado e, ao mesmo tempo, estar aberto à criatividade para enfrentar o acaso com a qual deparamos a cada caso, a cada interrupção abrupta do tratamento; e, finalmente, a cada término de um percurso por mares nunca dantes navegados.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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