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Resumo
Resenha de Néstor A. Braunstein; Betty B. Fuks (orgs.), Cem anos de novidade – A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno de Sigmund Freud [1908-2008]. Rio de Janeiro, Contra Capa, 2011.


Autor(es)
Glaucia Dunley
é psicanalista, mestre em Teoria Psicanalítica e professora universitária.

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 LEITURA

Sobre 100 anos de novidade – A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno, de Sigmund Freud (1908-2008)

[Cem anos de novidade – A moral sexual “cultural” e o nervosismo moderno de Sigmund Freud (1908-2008)]


On 100 years of innovation– Freud’s “Cultural” sexual morality and the modern nervousness
Glaucia Dunley

A formulação de Lacan "antes renuncie a isso [à psicanálise], quem não conseguiu alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época", lançada por Daniel Koren como epígrafe de seu texto "Cultura sexual e nervosismo hipermoderno" (p. 99), será aqui tomada como um imperativo ético para os psicanalistas que buscaram celebrar a novidade do texto freudiano "A moral sexual ‘cultural' e o nervosismo moderno", de 1908, com o livro 100 anos de novidade - a moral sexual "cultural" e o nervosismo moderno de Sigmund Freud [1908-2008].

 

Organizado por Betty Fuks e Néstor Braunstein, seus nove autores - brasileiros e de língua espanhola - reúnem-se em torno do texto de Freud, também presente no livro com uma nova tradução diretamente do alemão, para afirmarem os laços constitutivos da psicanálise entre a escuta clínica e o pensamento crítico de seu tempo. Neste atrelamento ético e questionador, reside a novidade maior e incessante do texto freudiano que se transmite com êxito nos nove textos do livro, tornando também seus leitores herdeiros desta conjunção freudiana, reformulada por Lacan ao exigir da psicanálise e dos psicanalistas um pensamento vivo e atual para lidarem com o sofrimento humano.

 

Se ao filósofo comprometido com sua época cabe fazer "o diagnóstico do presente", como nos diz Deleuze em O que é a filosofia, urge ao psicanalista pensar o mal-estar de seu tempo, seu "nervosismo", sua "angústia social" (Freud, 1929)[1], trazido pelas falas e corpos dos sujeitos em busca de um melhor viver. Talvez não mais para que tentemos "transformar uma miséria histérica em uma infelicidade banal", como nos diz Freud no final de "Estudos sobre a histeria" ao marcar os limites e mesmo a impossibilidade da psicanálise em nos oferecer felicidade diante de um mal-estar irredutível e independente de sua época, seja ela mais ou menos repressiva; mas, ao contrário, para que tentemos transformar em conflito explícito o marasmo depressivo ou anorético diante da vida dos sujeitos que nos chegam, as adições que nada acrescentam, as chamadas depressões... Tantas mudanças na fenomenologia do mal-estar foram sendo constituídas nas últimas décadas, simultaneamente à oferta abusiva de bens de consumo, dos quais esses sujeitos lançam mão de maneira frenética, indiferenciando-se cada vez mais e, ironicamente, transformando o mal-estar irredutível em mal-estar intolerável porque não dito nem refletido. Nesta festa tecnológica na qual estamos imersos, à semelhança do festim totêmico freudiano de "Totem e tabu", durante os quais se celebra ainda e sempre "a morte de Deus", as mercadorias do "deus com próteses" tomaram o lugar das palavras sem, no entanto, nos tornarem mais felizes, conforme a intuição esclarecida de Freud em "O mal-estar na cultura".

 

Na verdade, ler este livro faz pensar, e muito. Inclusive, para não nos perdermos diante de tantas questões pertinentes que são colocadas a propósito das novas caras do nervosismo moderno tardio, ou pós-moderno, ou ainda "hipermoderno", e de suas relações com uma possível moral "sexual" contemporânea, regida aparentemente nem tanto pelo recalque das pulsões, como em 1908, mas por um imperativo absoluto de consumir e gozar impingido pelo discurso dos mercados, que nos submeteria a um funcionamento perverso, sem, no entanto, o sermos, ao nos fascinar com suas inúmeras formas de escamotear o real sexual da castração e a impossibilidade de satisfação do desejo.

 

Parto da premissa inarredável para a psicanálise, como quem porta uma bússola, de que o conflito existe, e constitui o pilar fundamental da teoria e da clínica psicanalítica, nele residindo a tragicidade do humano, tão largamente captada por Freud. Se, conforme o que se depreende dos textos que constituem 100 anos de novidade, esta tragicidade conflituosa não ocupa mais a ribalta da cena psicanalítica, nem da cultura, ofuscada pelo atulhamento dos sujeitos pelas mercadorias e pelo esgarçamento do laço social em favor do individualismo acirrado e das facilidades extremas, cabe talvez ao psicanalista insistir sobre ela em sua clínica e em seus escritos. Embora sejamos tentados por toda sorte de discursos sobre "novas subjetividades", que podem não ser nada mais do que contrapesos ou contaminações do discurso capitalista e dos mercados na prática-teórica da psicanálise, escamoteando igualmente suas premissas fundamentais, sua castração, sua finitude. Ao deixarmos de lhes dar seu nome ou seu lugar preciso na teoria psicanalítica, ao sermos enganados ou confundidos pela extrema plasticidade das pulsões, o que lhes permite fazer a mimese sem fim da cultura no campo da fala e da linguagem dos corpos, esquecemos o fundamental: por trás dessas máscaras, vige o conflito interminável entre Eros e Tanatos.

 

Portanto, ainda em relação ao esforço empreendido por alguns autores do livro ao tentar uma possível demarcação teórica para essas novas caras do mal-estar, e a sua posição quanto à articulação imprescindível do "nervosismo" com o sexual - tese geral do texto de 1908 -, é preciso lembrar que as neuroses atuais são sempre atuais! E repensar, quando pretendemos entender o mal-estar à nossa meia-luz contemporânea, na correspondência que Freud insistiu em fazer entre o campo das neuroses atuais (neurastenia, neurose de angústia e, posteriormente, hipocondria) e o campo das psiconeuroses. O termo atual referindo-se ao tempo presente, a uma angústia de origem somática e não psíquica, sem mediação simbólica através da qual uma representação angustiante do passado é recalcada, rejeitada ou recusada pelo conflito que ela poderia causar, transformando-se em sintoma que fala, se estivermos à escuta.

 

Pareceu-me ouvir neste livro que uma das tarefas do psicanalista hoje consistiria em ouvir essas "novas caras" do nervosismo não estruturadas sob a forma de conflito em suas relações prováveis com as psiconeuroses, procurando dar-lhes assim um destino de linguagem, freudianamente. Entretanto, talvez nem todas essas "novas patologias da alma" poderiam ser relacionadas às neuroses atuais, como seria o caso de reconhecer na síndrome do pânico atual a neurose de angústia do final do século xix, e levá-la ao seu destino linguageiro na histeria. Outras correlações e composições precisarão ser feitas para que não ignoremos as premissas da psicanálise, ao mesmo tempo que nos tornamos psicanalistas contemporâneos, se pudermos dar ao contemporâneo do psicanalista o sentido do intempestivo, no qual ser contemporâneo não se refere àquele que se identifica com seu tempo, ou que com ele se sintoniza plenamente, mas que, graças a uma diferença, a uma defasagem ou a um anacronismo, é capaz de captar seu tempo e enxergá-lo. Talvez assim possamos compreender e fazer dialogar a antiguidade e a novidade da psicanálise.

 

A tarefa dos autores não é amena. A começar pelo enigma do "cultural" com o qual Freud qualifica a moral sexual de sua época no início de seu ensaio e sobre o qual se debruçam vários deles. Partindo da tese central do ensaio freudiano, a cultura/Kultur se baseia na repressão das pulsões, exigindo de cada indivíduo uma renúncia das inclinações onipotentes e agressivas de sua personalidade para que se constitua um patrimônio coletivo de bens materiais e ideais, sendo lícito supor que, sob a égide dessa moral sexual cultural [repressiva], os danos causados aos indivíduos pelos sacrifícios que lhes são impostos coloquem em risco o próprio objetivo cultural.

 

Entre eles, pareceu-me instigante o questionamento feito por Marco Antônio Coutinho Jorge (p. 9) sobre as aspas do cultural, ao propor que elas estejam querendo significar algo que não é cultural neste "cultural". Este ponto cego, pelo menos para nós, do próprio ensaio de 1908, tomado de Von Ehrenfels a partir de uma oposição, se dissemina implicitamente na oposição inclusiva entre civilização e cultura por toda a obra freudiana, como também pelas interpretações de outros autores no livro, valendo talvez alguns comentários, no sentido de procurar lançar luz sobre as falsas querelas entre pulsão e cultura, desfazendo falsas antinomias que embaçam desde sempre o conceito de sublimação e a própria função da Kultur germânica e freudiana.

 

Freud nunca realizou de forma explícita em sua obra uma diferenciação entre cultura e civilização, ou, se quisermos, entre processo ("evolução") cultural e processo civilizatório, embora tenha deixado indícios e mesmo definições de sua Kultur nas quais estas duas vertentes estão presentes e se hibridizam, sem se oporem. O próprio "Moral sexual cultural e o nervosismo moderno", "Totem e tabu", "O futuro de uma ilusão" e "O mal-estar na cultura", entre outros, são textos de interlocução obrigatória quanto a este aspecto e a outros do texto de 1908, fato este cuja importância é captada e explorada por Betty Fuks de forma extraordinária no livro, assim como por Sergio Telles, ambos fazendo justiça a Freud em sua infindável Aufhebung - seu ultrapassar (quase sempre) mantendo suas posições, por não temer abrir-se ao desconhecido onde ele encontrava o novo.

 

Pressuponho que esta tática de pensamento - que não é dialética, mas afirmadora e incluidora da diferença, sem procurar sínteses - resulte no caráter de novidade do texto e da obra freudiana, em si inclusiva e crítica, capaz de acolher o paradoxo e dispensar a contradição, seja ela entre psíquico e somático, cultural e natural, cultura e civilização. E tome aspas! O que talvez devesse ocorrer também na tradução oferecida no livro do ensaio de 1908 de pulsão por impulso, onde, no meu entender, na tradução de pulsão por impulso fica escondido ou pelo menos escamoteado o caráter de pulsação da pulsão, de período do "estímulo nervoso" (Projeto, 1925), ou seja, da pulsão como Konstant Kraft (1915) - força constante que diferencia Trieb de impulso - este último como aquilo que, no seu ímpeto, pode estancar-se ou ser estancado. Valendo-lhe, então, suas aspas diferenciadoras.

 

Para abreviar, é ela, a pulsão como esta força sem trégua, a responsável por nossa condenação civilizatória - tout court, condenação aos interditos do assassinato e do sexual que nos fazem renunciar aos desejos humanos mais pressionantes - e por nossa meia redenção cultural - processo "concomitante-dependente" pelo qual nos "indenizamos" do sacrifício de nossas pulsões, segundo nossas possibilidades pulsionais e sublimatórias, pela disponibilidade de acesso aos objetos de cultura, e pela presença desde sempre de Tanatos.

 

A presença deste último na cena da cultura é trazida por Néstor Braunstein em seu texto peremptório e brilhante, lembrando-me a pergunta crucial de Freud em "O mal-estar da cultura" - em tudo relacionada ao texto de 1908 -, sobre até que ponto a cultura se estabelece ou se baseia necessariamente sobre a repressão das pulsões. No meio do capítulo v do texto de 1929, Freud introduz a pulsão de morte enquanto pulsão de destruição para explicar as restrições aplicadas pela civilização à manifestação das pulsões. A partir daí, nomeadamente, a cultura não é mais apenas fruto de Eros e Ananké, mas de Eros e Tanatos.

 

Este mesmo Tanatos que, no cenário trágico de "Totem e Tabu", investe o pai da horda com todo o seu poder de gozo, e obriga sua deposição violenta pela coalizão dos irmãos, instaura o processo civilizatório por meio de interditos primordiais, cuja conta será paga pelo mal-estar na cultura - na Kultur como processo humano geral que inclui o processo civilizatório interditor, ao mesmo tempo que faz uso do "valor cultural" das pulsões para construir e acumular bens materiais e espirituais, estabelecendo os laços sociais entre os homens.

 

Bataille, leitor afiado de Freud, em O erotismo, fala do surgimento possível dos interditos de assassinar e do sexual, no período paleolítico, significativamente apostos ao desenvolvimento das técnicas de sepultamento, ornamento dos mortos e pinturas rupestres (homo sapiens/faber), sinalizando para nós a interdependência desses dois processos, e lembrando inclusive que os interditos do incesto e do parricídio foram formas especiais de interditos civilizatórios trazidos por Freud para a psicanálise. Fonte a investigar, assim como O processo civilizador de Norbert Elias, onde ele dedica um extenso capítulo a discutir a significação que os termos Civilization e Kultur têm, historicamente, para franceses e ingleses, de um lado, e alemães do outro - onde o conceito alemão de Kultur refere-se basicamente a fatos intelectuais, artísticos e religiosos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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