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Resumo
Resenha de Regina Néri, A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade. Novas configurações da diferença sexual. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005. 306 p.


Autor(es)
Elaine Armenio
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.

Flávia Branco Volpe  Volpe
é psicanalista, membro do Espaço Palavra Viva: Clínica e Estudos Psicanalíticos

Roberto Villaboim  Villaboim 
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

Sílvia Gonçalves Gonçalves
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae

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 LEITURA

Da razão ao conflito, do excesso à criação, a questão da entrada do feminino na cena cultural da modernidade

[A psicanálise e o feminino: um horizonte da modernidade. Novas configurações da diferença sexual]


From reason to conflict, from excess to creation, the question of the inclusion of the feminine in the cultural scene of modernity
Elaine Armenio
Flávia Branco Volpe  Volpe
Roberto Villaboim  Villaboim 
Sílvia Gonçalves Gonçalves

Regina Néri retrata e delineia um panorama social, cultural e filosófico extenso da sociedade na época freudiana, mostrando a emergência do discurso psicanalítico no esteio da crise da razão e da evidência do feminino na cultura.

 

Expõe a passagem, demarcada pelos historiadores, da filosofia clássica para a moderna, e ressalta que Descartes, Kant e Hegel realizam modos de ruptura com o conhecimento metafísico e com a verdade absoluta da filosofia teológica. De formas diferentes, cada um desses filósofos reexamina as relações entre a verdade e a razão humanas.

 

O romantismo alemão faz contraponto a esta filosofia racionalista, base do iluminismo. Para os filósofos do romantismo, o conhecimento vem da intuição da noite, dos sonhos, das intensidades, da irrupção das paixões. Para alguns, as ciências desejariam ser poetizadas, já que ao artista é dado o poder de decifrar o sentido da vida. Nietzsche, considerado por muitos o filósofo poeta, desenvolve em vários de seus escritos a oposição a concepções racionalistas de verdade, que levariam o homem a inúmeros impasses e a viver como se o pensamento predominasse sobre a realidade. Inaugura sua obra pela recusa da verdade. Para ele, a realidade é diversa, plural, um jogo de forças em eterno devir.

 

Freud também teria abalado a hegemonia da racionalidade filosófica ao traçar limites do consciente, reduzido à parte visível de um iceberg, e afirmar terem o desejo inconsciente e as pulsões uma participação mais fundamental, mais ampla e mais extensa em sua concepção da constituição do homem.

 

A autora situa a obra freudiana entre a razão e as intensidades. Para ela, Freud vê o homem como experiência-limite dos impasses entre a pulsão de vida e de morte.

 

Eis a modernidade vienense: uma modernidade que simultaneamente exalta a individualidade criadora, herdeira da crise de identidade provocada pela emancipação do indivíduo na ordem política e social efetuada na Revolução Francesa, ao mesmo tempo que desvela a sua fragilidade. O eu é sinônimo de desagregação e nervosismo, visão problemática que gerava uma inquietação constante nos intelectuais vienenses. Da mesma forma como a colocação da estética, da ética e do mito em oposição à metafísica e ao empirismo neopositivista.

 

A autora afirma, assim como outros estudiosos, que um dos fundamentos da modernidade é a feminização da cultura. A revolução francesa, marco da modernidade, ao estabelecer a morte do rei, segundo Nietzsche, perpetra filosoficamente a morte de Deus e a morte do pai, criando desta forma uma crise na masculinidade que, desde a Grécia antiga até o século xviii, era politicamente o poder hegemônico. O modelo era o do sexo único, pois a diferença sexual estava acoplada à questão de gênero, definida culturalmente: a mulher era um masculino menor, inferior. A partir do final do século xviii, com o iluminismo, surge o modelo dos dois sexos, mas ainda pensados de forma essencialista, sendo a mulher colocada mais próxima da natureza, destinada à procriação e à vida doméstica. Esta é uma concepção científico-iluminista. No entanto, mais do que a ciência, quem configura esse discurso sobre os sexos é a política. Então, para Foucault, o surgimento das ciências sexuais não tem como meta a repressão do sexo e sim o adestramento dos corpos e a produção de subjetividades afeitas à instauração do capitalismo e da família burguesa. Segundo ele, as ciências sexuais patologizaram o corpo feminino, apresentado como excessivo, nervoso, fora das normas e histérico, ou seja, uma sexualidade que oferece perigo e, dessa forma, cria justificativas para manter a mulher afastada do espaço público.

 

A autora se pergunta se o discurso psicanalítico vem referendar as ciências sexuais da época ou se rompe com as concepções do período. Também se nessa construção teórica há, de alguma forma, uma tentativa de reconstituir e fortalecer a figura do pai. Questão que responderá ao longo do livro, distinguindo momentos da obra freudiana que parecem atender a cada uma dessas opostas posições.

 

Essa feminização da cultura na modernidade será vivida por seus contemporâneos como ameaçadora ou como uma apologia, promovendo questões que vão aparecer em vários romances e escritos. Temos: As memórias de um neuropata, de Schereber, e O sexo e o caráter, de Otto Weininger. No primeiro livro, vê-se o delírio de Schereber de ser o homem que iria renovar a humanidade transformando-se em mulher e sendo fecundado por Deus. Em suas palavras: "... a partir daí inscrevi o culto da feminilidade em minha bandeira". Weininger, que se apoiou muito no conceito da bissexualidade, reconhece do lado da feminilidade a questão da criação e do genial. Esta constatação desperta nele uma misoginia radical que o faz conclamar pela reconstrução da genialidade masculina e acabar se suicidando aos 23 anos de idade, explicitando assim, de forma aguda, o conflito.

 

Vários romances evidenciam a queda do masculino e a emergência do feminino na cultura; entre eles, a autora cita: O homem sem qualidades, de Musil, e A nova Eva e o novo Adão, de D. H. Lawrence.

 

A reação dos homens à feminização da cultura eclode em vários campos da sociedade de então, e Néri exemplifica com várias obras literárias, políticas e filosóficas em que os autores conclamam pela renúncia à mulher e sua patologização. Mas há também aqueles que, antecipando o que aconteceria depois, defendem os direitos iguais para as mulheres e sua inserção no público e na política.

 

A partir de Nietzsche e outros autores contemporâneos, haverá a configuração dos dois sexos como diferença e potencialização criativa. A associação estreita que sempre foi feita entre o feminino e a psicanálise é analisada na tese de Regina Néri, que valoriza isso "que se configura como um acontecimento inédito na história do pensamento: é a primeira vez que um discurso, que vem justamente se opor à racionalidade filosófica, se inaugura sob a égide do feminino, numa dupla perspectiva: 1) enunciado a partir do discurso das mulheres 2) constituído sobre o feminino como interrogação primeira e fundante de seu aparato teórico" (p. 90).

 

Nesse contexto, "Breuer, Charcot e Freud não fazem senão se juntar ao romantismo alemão, que tira a mulher da inexistência, colocando-a como fonte de inspiração e de interrogação" (p. 92).

 

No entanto, "de figura matricial da psicanálise, pouco a pouco o feminino acaba por ser colocado na posição de objeto de um discurso, que visa decifrá-lo ou apontar seu mistério, tornando-se o grande enigma ou a grande verdade" (p. 94).

 

A autora ainda ressalta que a psicanálise é atravessada por um movimento duplo: dá voz ao feminino e à alteridade ao mesmo tempo que procura recolocar e restaurar na cultura o masculino como universal.

 

A histeria será pensada também como um sintoma da repressão cultural da sexualidade feminina ou do recalque da sexualidade infantil, deixando o outro lado da crise: o que vê a histeria como expressão de uma implosão do antigo modelo de feminilidade e explosão de um novo processo de subjetivação. A insatisfação sexual que é o motor dos sintomas histéricos se torna motor de uma atividade mental questionadora da condição da mulher no final do século xviii. A autora cita algumas contribuições das pacientes histéricas de Freud: Cecília e Anna O ajudaram a configurar o fenômeno da transferência erótica; com Emmy, ficou estabelecida a associação livre - a cura através da palavra.

 

A histeria apresenta-se como a figura maior de uma subjetivação que se opera na atualização da pulsão e na alteridade. A crise histérica mostrou um cenário de explosão do erotismo feminino, com novas formas de inscrição subjetiva e erótica do corpo feminino no espaço privado e público. Como exemplos no espaço cultural no século xix, temos a dança e o teatro, representados respectivamente por Isadora Duncan e Sarah Bernhardt. Nas artes plásticas, a afirmação do feminino na cultura influenciou os estilos de várias pintoras e escultoras, como Louise Bourgeois, Lygia Clark, Nikki de Saint-Phalle e Frida Kahlo.

 

Regina Néri observa que, no Projeto para uma psicologia científica, Freud não se refere ao corporal ou ao psíquico. O psiquismo é, antes de tudo, um aparato de satisfação pulsional e não de representação e linguagem. A autora insiste aqui no processo de subjetivação como uma proliferação de experiências singulares, refutando o conceito de falta como ausência de satisfação que vai produzir representação. Entende a constituição do psiquismo como um circuito pulsional de processamento de intensidades, visando à obtenção do prazer que só se dá no encontro com o outro, que deixará marcas eróticas singulares nas experiências de dor e satisfação. A partir do trauma, Freud enuncia a pulsão de morte como uma pulsão sem representação, irredutível, portanto, ao campo da representação e fora do primado do princípio do prazer. A subjetivação é, portanto, uma produção imprevisível, indeterminada (no sentido de produções abertas).

 

Néri vê a pulsão tal como apresentada por Freud, como força, trabalho e ação. Está sempre em jogo uma relação de forças. A compulsão à repetição seria uma tentativa de ligar o excesso, ligação feita no próprio excesso e não na diminuição da excitação. Assim, após os anos 1920, abrem-se novas portas para pensar o feminino, para além do impasse do modelo fálico-edípico.

 

A autora faz um recorte da obra de Freud considerando quais conceituações seguem essa nova subjetividade na qual são privilegiados a intensidade e o aspecto positivo da manifestação histérica e do feminino. Ressalta os textos: O projeto para uma psicologia científica, A pulsão e seus destinos e Além do princípio do prazer. Coloca que, na ordem do representacional e do monismo fálico, Freud está mais do lado da racionalidade das concepções masculinas que promulgam a égide do pai universal.

 

Néri acredita que o conceito de pulsão sexual parcial e polimorfa já é um operador que permite formular a sexualidade humana fora do determinismo anatômico e a diferença sexual, fora do registro da complementaridade. Não é o monismo sexual e sim o conceito de pulsão sexual perversa polimorfa que garante a Freud, nesse momento, a formulação inovadora da sexualidade humana como antinatureza. É o feminino na crise histérica que enuncia esse corpo erógeno perverso polimorfo, revelando também a bissexualidade psíquica ao fazer de seu corpo um teatro da incerteza sobre o sexo: sou homem ou sou mulher?

 

Os anos 1920 marcam duas mudanças na teoria freudiana: a reformulação da primeira teoria do monismo sexual e a abordagem da sexualidade feminina não mais em simetria ao masculino, mas com dinâmica e especificidade próprias. Não se trata mais da predominância do pênis, mas da primazia do falo, que é introduzido como operador da diferença sexual, concebida na existência de um só sexo - o masculino - sustentando a oposição em termos de masculino - castrado. A fase fálica e o complexo de castração abrem uma nova via para pensar a sexualidade feminina na sua especificidade: em face do operador fálico, meninos e meninas vão se situar diferentemente, mas à mulher fica destinado o polo dos castrados, e o feminino é remetido a uma falta.

 

A partir de então, a origem da mulher poderia ser reportada ao tempo pré-edípico. Esta concepção indicaria outro referencial de ordenação da diferença sexual, para aquém da cultura fálico-edípica, transformando-se no enigma obscuro do continente negro que vai ser penetrado pelo olhar-saber fálico-iluminista.

 

Para Regina Néri, a construção fálico-edípica indica, por um lado, o feminino como construção psíquica e, nesse sentido, desvinculada de uma ordem natural; por outro, permanece sustentando a maternidade como destino natural para as mulheres, sendo as outras saídas apresentadas como desvios negativos e soluções patológicas.

 

Néri dá continuidade à análise dos impasses da teoria psicanalítica da sexualidade feminina fazendo uma descrição do percurso sobre o feminino na obra de Lacan: do feminino como excesso, passando a ser representado como falta, vazio, onde o primado do falo vai ser reafirmado e reinterpretado, voltando só nos anos 1970 a reatar com a concepção de excesso. Para ele o conceito de falo está relacionado ao significante da metáfora paterna, que ordenaria a subjetividade e a diferença sexual.

 

Até 1958, a dimensão da ordem fálica prima acerca de suas formulações sobre o feminino, a lógica fálica forclui o feminino.

 

No entender de Regina Néri, a dialética fálica lacaniana serviria mais à fetichização do que à elaboração da castração e da diferença sexual. No que se refere à rede de possibilidades identificatórias e sublimatórias femininas, a ausência de significante da feminilidade irá marcar de maneira contundente os destinos do feminino. Ser um falo misterioso de uma feminilidade inexistente para se manter como objeto fálico da fantasia masculina é para a autora uma repetição do impasse freudiano, em que a mulher teria uma identidade masculina falha.

 

Ela questiona se Lacan teria alcançado o objetivo de abrir novos caminhos que dariam ao feminino o estatuto de uma sexualidade dividida para além da ordem fálica, ou se repetiria Freud de forma mais sofisticada e ambígua sobre os mesmos impasses que a construção fálico-edípica teria colocado à sexualidade feminina.

 

Na proposição "a mulher não existe" se aponta um impasse do feminino. Restaria às mulheres bancarem os homens. Portanto, para Lacan, a sexualidade feminina deixaria de ser uma sexualidade fálica (falha e invejosa), para se tornar uma sexualidade dividida entre ser fálica (falha, fetiche) e/ou inexistente.

 

Nesse sentido, para a autora seria o mesmo impasse da subjetivação - ser subsujeito masculino numa nova versão fálica-falha-fetiche ou ser mãe. Portanto, uma existência possível como sujeito de um inconsciente só ocorreria como homem ou como mãe.

 

Por fim, a pergunta que a autora se coloca é: se a lógica fálica determina a inexistência do sexo feminino, que inexistência é esta que existe tanto?

 

Para Regina Néri, a construção fálico-edípica foi uma tendência de reconstrução da figura paterna e de reafirmação do papel do masculino na cultura, tanto em Freud como em Lacan, na medida em que os dois estiveram marcados por um contexto de feminização da cultura. Dentro do discurso psicanalítico existiu uma tensão paradoxal: dar voz ao feminino-singular e reafirmar o masculino-universal da cultura.

 

A sexualidade feminina nos anos 1960 é parte integrante do movimento cultural de maio de 1968, torna-se um debate fundamental em várias instâncias e em particular na psicanálise. O movimento feminista, junto com as grandes transformações das mentalidades e com o advento da pílula, enceta muitas batalhas em prol do feminino na cultura. Mas, na verdade, segundo a autora, a abertura de caminhos para o feminino já estava acontecendo nas obras literárias de Clarice Lispector e Marguerite Duras, pois entende que elas não realizam uma obra sobre o feminino, e sim que elas inscrevem o feminino como criação e que comparecem na cena cultural na posição de autoras e não mais como enigmas ou musas para serem cantadas em verso e prosa na escrita dos homens.

 

 Elas realizam uma escrita feminina de forma exemplar nos romances da década de 1960: Clarice Lispector com A paixão segundo GH e Marguerite Duras com O deslumbramento de Lol V. Stein. São escritos da paixão, do arrebatamento, que rompem com a significação e com a lógica racional. Marguerite dá voz ao silêncio e diz que escreve de um lugar onde a respiração é rarefeita, no limite do indizível. Para Clarice neste seu romance há um enfrentamento com a coisa, com o real do ser: "[...] Estar vivo é inumano, um sorriso se exala como uma matéria" (p. 248); "[...] é que o inumano é o melhor nosso, é a coisa, a parte coisa da gente" (p. 249).

 

Escritas da voz, esta voz escrita que busca a pura sonoridade do significante, como na lalíngua (conceito lacaniano), a voz escrita parece indicar a passagem do significante para a materialidade da letra.

 

A escrita feminina, segundo autores citados por Regina Néri, "remete a um texto de gozo [...], a uma instância pré-discursiva na qual as palavras, puro som, buscam negar seu estatuto simbólico, o que conduz ao privilégio da voz sobre a escrita e do fonema sobre a letra. Operando com a sonoridade da palavra, margeia um abismo, e assume um risco porque ao fazê-lo convoca um pai que não responde a sua língua ateia" (p. 237).

 

No livro O deslumbramento de Lol V. Stein, a personagem Lol é paradigmática da questão da feminilidade. Montrelay começa a trabalhar a questão do feminino com base na leitura desta obra. Refere-se à feminilidade como uma sombra recalcada pela psicanálise: "Lol é essa parte de nós mesmos que permanece do lado da coisa, na sombra, nunca colocada para fora, inumana, escondendo-se como uma fera. Sem ela o inconsciente não pode existir" (p. 241). Duras revela esse desnudamento tranquilo e a verdade da coisa que Lol materializa diante de Jaques Hold, personagem e narrador do romance.

 

Na busca de sua feminilidade, o homem e a mulher devem inscrever o nome dessa sombra. Montrelay considera que Duras através desse romance quer devolver para os homens um gozo feminino do qual se exilaram.

 

Nos romances Lol de Duras e GH de Clarice Lispector, a inscrição da loucura feminina conduz à criação e não ao asilo como a Nadja de Breton, Madame Edwarda de Bataille e o caso Aimeé de Lacan. A expressão dit'elle está, por assim dizer, colada à pele e à obra de Duras. Impossível dissociar Duras de Lol e Clarice de GH... De comum, as duas obras apresentam a inscrição do feminino como paixão e arrebatamento para além de qualquer verdade ou fundamento.

 

Regina Néri considera Adélia Prado como a Clarice Lispector na poesia, levando em conta que elas têm em comum a irrupção no texto de uma "epifania e de uma verdade desnorteante" (p. 252).

 

A poeta recria o interior de Minas em sua poesia, em sua forma feminina de dizer e de escrever, em uma dicção feminina. Adélia Prado e outras escritoras trazem a público a voz de suas mães, avós, a cultura feminina que ficou na sombra da história, mas que foi transmitida de forma viva de mãe para filha. Muitas de nossas ancestrais escreveram diários, Clarice Lispector descobre que sua mãe tinha vários diários. Esta escrita da intimidade, único recurso de outrora, é bastante presente para as mulheres de todas as épocas e marca presença ainda hoje nas escritoras atuais.

 

Apresentando poemas, romances e outros escritos femininos, Regina Néri se contrapõe a Freud e a Lacan, evidenciando a relação amorosa, de admiração e identificação positiva das filhas com suas mães. Adélia Prado fala de sua mãe na poesia "Fotografia", relatando que, apesar de toda repressão, ela vislumbrava "em seu rosto um desejo de beleza, que uma doutrina dura fez contido. Seria um retrato triste, se não visse em seus olhos um jardim" (p. 253). [...] "Minha mãe cozinhava exatamente: arroz, feijão roxinho, molho de batatinhas. Mas cantava". Marie Bonaparte faz uma associação de sua mãe com a música: "Minha mãe, poética e sonhadora, tem a alma da música".

 

Transmissão de uma cultura da vida como obra de arte, é o que afirma Duras em relação a sua mãe: "[...] eu não tive uma mãe que se interessasse pela arte: ela não ia ao teatro, não amava a pintura, somente a aventura da vida cotidiana, mas sem dúvida ao lado dela, eu nunca encontrei alguém que fizesse de cada dia uma novidade tão violenta" (p. 255).

 

Regina Néri vai fazer destas falas contraponto ao que entende como a relação mãe-filha marcada pela negatividade nas concepções psicanalíticas. Freud pensa a relação mãe-filha marcada pela hostilidade e desprezo da filha quando da descoberta da castração da mãe. Também afirma que nesta relação com a mãe se encontra o germe da paranoia feminina. Lacan entende que a relação da menina com a mãe é uma "devastação", marcada pela impossibilidade de o outro materno oferecer à filha seja um significante da feminilidade, seja um significante fálico.

 

Segundo a autora, para essas escritoras a relação mãe-filha não conduz à indiferenciação mortífera ou à paranoia, mas à criação. Para Néri, não se trata de um retrato idealizado, fetichizado, da "outra mulher" como aquela que detém o falo da feminilidade, objeto de mistério, fascinação e inveja. Ao contrário, é o retrato banal de uma mulher de carne e osso, a mãe pelo olhar de sua filha. Na psicanálise, nem sempre é colocado assim o jeito de admirar uma mulher.

 

Ao ressignificar a presença do feminino na psicanálise e na cultura, Néri conceitua a feminilidade em sua positividade, como excesso e intensidade, que conduz à criação e não à patologia. Entende a intensidade como produtora: o excesso irrompe e faz inscrição. O ato criativo é mais da ordem da inscrição que da escrita.

 

A feminilidade na escrita criativa está presente também nos homens, como afirma Regina Néri, mas, em alguns trechos e capítulos, sua teorização restringe e identifica a feminilidade à mulher.

 

A concepção de sublimação que ela expõe se refere à conceituação do criativo na segunda tópica freudiana, tal como vai ser entendida e explorada por vários autores contemporâneos. A autora entende que Freud deu passagem à nova subjetividade que estava sendo instaurada no século xix ao acompanhar e dar voz ao sintoma histérico. Sintoma entendido como expressão de um movimento que se rebela a uma ordem dada, desenvolvendo uma nova subjetivação e, ao mesmo tempo, sintoma que se submete ao estabelecido e resiste ao novo.

 

Regina Néri, ao ressignificar o feminino na fundação da psicanálise, teria como ambição pensar os destinos da psicanálise hoje. Propõe aos psicanalistas que deixem de lastimar as novas apresentações do mal-estar de seus pacientes que não sentam, não associam, para que possam elencar a radicalidade do sintoma histérico na modernidade, de modo a pensar os acting outs de hoje no que têm a ver com uma economia subjetiva corpórea.

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