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Resumo
Parto da hipótese de que a ausência de obra, conceito usado para situar o lugar destinado à loucura após ter sido transformada em doença mental, expandiu-se para todos os campos da existência na contemporaneidade, movimento análogo ao que ocorre no campo das artes visuais ao longo desse mesmo período em que uma obra de arte pode ser excluída para o campo da não arte, para me perguntar sobre a obra – e, por consequência, a subjetividade – possível em tempos de sua ausência. Apresento, então, em dois artigos subsequentes, e a partir das indicações oferecidas pelos trabalhos das artistas Nazareth Pacheco, Cindy Sherman e Marina Abramovic, o corpo e o feminino como alguns desses lugares de borda nos quais ainda podemos encontrar uma possibilidade de fazer obra, ou seja, de subjetivação.


Palavras-chave
processos de subjetivação; corpo; feminino; arte e psicanálise; perversão; sublimação.


Autor(es)
Alessandra Monachesi Ribeiro
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, doutoranda em Teoria Psicanalítica pela UFRJ e mestre em Psicologia Clínica pela PUC-SP.


Notas

1  Artigo baseado em tese de doutorado em teoria psicanalítica pela ufrj, para a qual a autora con- tou com uma bolsa da capes

2  M. Foucault. História da loucura na Idade Clássica.

3  A. M. Ribeiro. Da perversão à sublimação: algu- mas estratégias das artes visuais para a criação de lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, ip, ufrj, 2010.

4  A reflexão acerca do trabalho da artista Nazareth Pacheco se apoia, essencialmente, em tese de doutorado já mencionada (Ribeiro, 2010), da qual alguns excertos foram publicados (Ribeiro, 2009), ainda que não com a presente formulação.

5  S. Freud. "Fetichismo". Edição standard brasileira das obras psicoló- gicas completas de Sigmund Freud, vol. xxi, p. 151-162. 

6  J.-P. Vernant, A morte nos olhos - figuração do Outro na Grécia An- tiga: Ártemis e Gorgó.

7  S. Freud. "O estranho". Edição standard brasileira das obras psicoló- gicas completas de Sigmund Freud, vol. xvii, p. 235-276.

8  J. Lacan. O Seminário: livro 11 - Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise.

9  N. Pacheco e Silva. Objetos sedutores. Dissertação de mestrado. De- partamento de Artes da Escola de Comunicação e Artes da Universi- dade de São Paulo, São Paulo, 2002.

10 B. Marcadé. "Le devenir-femme de l'art". Féminimasculin - Le sexe de l'art. Catálogo de exposição homônima ocorrida de 24 out. 1995 a 12 fev. 1996 no Centre National d'Art et de Culture Georges Pompidou.

11 S. Freud. "O mal-estar na civilização". Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud, vol. xxi, p. 67-150.

12  A reflexão acerca do trabalho da artista Cindy Sherman se apoia, es- sencialmente, em tese de doutorado já mencionada (Ribeiro, 2010), da qual alguns excertos foram publicados (Ribeiro, 2008a, b, c), ainda que não com a presente formulação.

13  L. Mulvey. "A phantasmagoria of the female body". Cindy Sherman, p. 284-303.

14  Y.-A. Bois; R. E. Krauss. Formless: a user's guide.

15  Y.-A. Bois; R. E. Krauss, op. cit.

16 F. Villemur. "Trouble de genres en vue: Cindy Sherman". In: M. Ca- mus (org.), Création au féminin - vol. 2 : arts visuels, p. 57-67.

17 E. Heartney. "Cindy Sherman: the polemics of play". In: E. Heartney; H. Posner; N. Princenthal; S. Scott. After the revolution: women who transformed contemporary art, p. 168-187.

18 S. Freud. "O estranho". Edição standard brasileira das obras psicoló- gicas completas de Sigmund Freud, vol. xvii, p. 235-276.

 



Referências bibliográficas

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_____. (2010). Da perversão à sublimação: algumas estratégias das artes visuais para a criação de lugares de subjetivação e presença de obra nas bordas do corpo e do feminino. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, ipufrj.

Vernant J.-P. (1991). A morte nos olhos - figuração do Outro na Grécia Antiga: Ártemis e Gorgó. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Villemur F. (2006). Trouble de genres en vue: Cindy Sherman. In: M. Camus (org.). Création au féminin - vol. 2 : arts visuels. Dijon: Editions Universitaires de Dijon, p. 57-67.





Abstract
Abstract The idea of “absence of work” comes from modern humanistic Psychiatry. The author applies it to visual arts, because in them the “work of art” can be excluded from the field of art. In such conditions, what happens to subjectivity? This paper is the first of a two-part series where Monachesi examines works by artists Nazareth Pacheco, Cindy Sherman and Marina Abramovic. For her, the body and the feminine are “places” where it is still possible “to do work”, or, in other words, to become a subject.


Keywords
Keywords subjectivation; body; feminine; Psychoanalysis and art; perversion; sublimation.

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 TEXTO

Os artistas, os lugares e as obras possíveis

ou onde a subjetividade ainda encontra lugar de existir


Artists, Places and possible works
Alessandra Monachesi Ribeiro

Parto da hipótese de que a ausência de obra, esse conceito de Michel Foucault[1] para situar o lugar destinado à loucura após ter sido transformada em doença mental, expandiu-se para todos os campos da existência na contemporaneidade de modo que somos todos colocados nesse lugar da loucura como ausência de obra, argumentação que desenvolvi ao longo da tese de doutorado[2]. Isso quer dizer: não temos mais um lugar para a subjetividade em nossos tempos. Então, será que é possível e como será possível que essa subjetividade ainda crie possibilidades de existência num mundo tão pouco hospitaleiro?

 

Parto também do movimento que ocorre no campo das artes visuais ao longo desse mesmo período em que a loucura se torna ausência de obra, desrazão, doença mental e medicalização das subjetividades para constatar que, até mesmo nesse campo, o movimento de sua desaparição acontece, a partir do momento em que - de forma análoga ao sujeito louco que pode ser extraído para um campo de não subjetividade - também uma obra de arte pode ser excluída para o campo da não arte. Desde então, a arte possível passa a se dar nas bordas e provir desse campo de sua exclusão, o que volta a nos indicar que, talvez também em relação à subjetividade, ela passe a acontecer nas bordas daquilo que foi contornado como não sujeito, ausência de obra: do lugar da loucura.

 

Tento, nesse ponto, e a partir das hipóteses anteriores e das indicações oferecidas pelos trabalhos das artistas que veremos em seguida, apresentar o corpo e o feminino como alguns desses lugares de borda nos quais ainda podemos encontrar uma possibilidade de fazer obra, ou seja, de construir uma subjetividade em nossos tempos tão hostis a todas as condições para que haja um sujeito.

 

Ao voltar minha atenção às artes contemporâneas, me indago a respeito daquilo que os artistas estão a produzir e se tais produções ajudarão à psicanálise ao nos dar quaisquer indicações dos lugares possíveis nos quais a subjetividade encontrará ainda seu espaço. Tomando duas artistas contemporâneas - Nazareth Pacheco e Cindy Sherman - assim como seus percursos artísticos, chego ao que suas obras colocam em discussão: o corpo e o feminino. E, ainda, à maneira como tal conteúdo é apresentado. Isso quer dizer que as estratégias utilizadas pelas artistas para colocar o corpo e o feminino em jogo nas suas obras são tão importantes quanto seus temas propriamente ditos. E tais estratégias nos indicam, certamente, os caminhos através dos quais a subjetivação se faz nas margens, notoriamente um caminho de profanação, de deslocamento de um aprisionamento perverso em direção à sublimação, tema ao qual retornarei em texto subsequente, com a ajuda de uma terceira artista, Marina Abramovic.

 

O corpo e o feminino. Serão eles lugares possíveis para a subjetividade contemporânea? O corpo e o feminino enquanto lugares de fronteira, será que nos indicam que a obra e, consequentemente, a subjetividade são ainda possíveis na medida em que feitas nas bordas? O que os artistas nos mostram acerca de tais temas? E acerca da possibilidade de obra ali incluída? Vamos a elas.

 

O corpo feminino asséptico:
Nazareth Pacheco[3]

O que nos afeta de cara, ao tomarmos contato com a obra de Nazareth Pacheco, é a maneira como ela brilha. As pequenas peças de cristal transparente, por vezes negras ou vermelhas, capturam de modo imediato o olhar do espectador. Os vestidos e colares em cristal chamam a atenção e nos encantam, tanto quanto os ambientes feitos do mesmo material: as cortinas que circundam um espaço, criando-o, as cortinas de um provador, as cortinas frente a um espaço em que está uma rede... As cortinas e as vestimentas femininas brilhantes nos dão vontade de aproximarmo-nos, de tocá-las, experimentá-las e é então que descobrimos que todo esse brilho não existe apenas graças aos cristais transparentes, por vezes negros ou vermelhos, mas também graças às lâminas de barbear que fazem parte dos objetos. Lâminas de barbear, bisturis, lancetas, agulhas, os brilhos metálicos dos materiais frequentemente destinados ao uso cirúrgico fazem contraste com os brilhos dos cristais tão lindos que nos convidam a olhá-los e a aproximarmo-nos. O perigo se desvela em meio a todos esses brilhos e, uma vez notados os objetos perigosos em metal, tornamo-nos prisioneiros de uma armadilha: atraídos e tomados pelos cristais brilhantes, repelidos e chocados pelos materiais perigosos. Pegos em uma cilada, sem podermos nos aproximar e, no entanto, sem podermos desviar o olhar e sair da cena.

 

Repulsa e atração: tal é a polaridade com que a artista parece brincar e nos seduzir para seus objetos tão lindos, tão limpos, tão perfeitos e, ao mesmo tempo, tão inacessíveis. Não me toque, eles parecem dizer. Que perigos jazem na superfície ou na intimidade desses objetos com os quais Nazareth nos presenteia e nos desafia?

 

O olhar, o único sentido que pode ainda se aproximar das obras de Nazareth de uma maneira fora de perigo - mas não realmente em toda a segurança, como veremos adiante - mostra de cara a ironia da aproximação da artista à história da arte propriamente dita, para a qual o olhar sempre foi convocado e, algumas vezes, desprezado, tornando as produções artísticas ligadas de maneira permanente à problemática do olhar e do visual mas, também, aproximação à sua própria história enquanto artista.

 

Vestidos e colares são adornos femininos e é ao corpo e ao desejo feminino que eles apelam. Um corpo que, na obra de Nazareth, aparece enquanto ausente. Um corpo feminino que se desvela sem se deixar aproximar, feito de cristais brilhantes, sedutores e de objetos de metal também sedutores, mas ameaçadores. Desvelamento e engano. Cilada, aprisionamento. O corpo feminino enquanto sedução e perigo. O corpo objeto do olhar e o corpo que faz o olhar cativo.

 

A assepsia das obras de Nazareth Pacheco me parece ser a manobra que ela utiliza para relacionar o desejo, a sedução e o aprisionamento do olhar em relação ao feminino e ao corpo. A perfeição, a pureza, a limpeza dos materiais acrílicos e metálicos dos quais faz uso fazem referência direta à história da arte em que o corpo feminino foi um dos símbolos máximos do Belo na pintura e na escultura. Um corpo feminino tão passivo quanto flexível às necessidades da arte e às suas técnicas de velamento do gesto do artista a fim de que a obra seja o mais transparente possível, de maneira a dar lugar àquilo que representa ao apagar, tanto quanto possa, tudo o que a torne opaca. A obra de arte como um espelho do mundo, tão mais efetiva quanto mais se esconda sua fatura.

 

Aqui, o objetivo da obra de arte e seu tema parecem combinar-se de maneira perfeita, uma vez que o corpo feminino objeto dessa obra, escolhido para ali representar qualquer coisa outra ligada a um ideal, se entrega a essa forma de ser representado velado de tudo aquilo que possa distanciá-lo desse ideal do Belo, inclusive de todos os atributos femininos. O corpo feminino asséptico enquanto objeto das artes visuais: eis ao que as obras de Nazareth Pacheco fazem referência de maneira a colocá-lo em questão.

E, uma vez apresentado o campo em que as obras de Nazareth Pacheco se desenvolvem, como é que ela as torna críticas de tal campo?

 

Apresento a hipótese de que a artista colocará em questão essa assepsia do corpo feminino como objeto do olhar e, consequentemente, como objeto do desejo ao recolocar, em suas obras, todos os aspectos que foram retirados desse corpo a fim de que ele se tornasse objeto da representação artística, inclusive sua carne, seu sangue, sua materialidade. Isso quer dizer que a artista põe em questão o corpo feminino asséptico como objeto idealizado do olhar através dos mecanismos pelos quais o olhar funciona: o apaziguamento, o velamento, a negação. Ou seja, somos reenviados a Freud[4] e ao objeto-fetiche, aquele em que o olhar se fixa, seu último ponto de atração e parada antes que ele depare com a castração, os mecanismos do olhar em oposição à constatação que poderia pôr em questão o corpo feminino enquanto ideal.

 

Trata-se da inversão entre olhar e ser olhado. O voyeur é cativo do objeto-fetiche na medida em que é o mesmo que esconde, evita, detém o olhar um átimo antes da borda, do buraco, da constatação da castração. O objeto é seu triunfo e sua proteção contra o buraco. O que Nazareth Pacheco parece fazer com suas obras é, justamente, aprisionar seu espectador no objeto-fetiche não para desviá-lo do buraco mas, ao contrário, para ali arremessá-lo irremediavelmente.

 

O objeto-fetiche de Nazareth Pacheco atrai o olhar e, antes mesmo que se aperceba, torna-o prisioneiro de um mundo de objetos perigosos que não podem ser tocados, mas que não deixam desviar-se. O olhar prende e só se pode olhar. São objetos que, como a cabeça da Medusa na maneira como a ela se refere Jean-Pierre Vernant[5], comportam traços de insólito e estranheza, misturando o masculino das lâminas de barbear com o feminino das vestimentas, o belo e o feio, o atraente e o repulsivo, colocando-nos no campo terrificante do grotesco.

 

Freud pode nos auxiliar com seu texto "O estranho"[6], no qual também o olhar possui importante papel na definição do que seja o unheimlich causa de horror. O estranho familiar inquieta por seu paradoxo, através do qual recoloca a questão do olhar em sua relação com a castração. Trata-se de algo que se dá a ver quando deveria permanecer oculto, trazendo para a estranheza uma associação com o olhar e com o que se dá a ver, gerando horror e familiaridade. Em Freud, a visão da genitália feminina é o que acorre aos olhos, remetendo à castração e à inquietação causada pela constatação dela. O fetichismo vem fazer frente a tal confrontação.

 

Nas obras de Nazareth Pacheco, essa ambiguidade do que se dá a ver e não é visto também parece presente, de maneira a permitir-me afirmar seus objetos como fetiches. O brilho dos cristais que ofusca os olhos desvia - e aí está seu poder de sedução - do também brilho - metálico e frio - daquilo que fere e mutila. Os objetos cortantes não passam, contudo, despercebidos em meio à trama atraente tecida pelas mãos da artista. São notados - e daí seu poder de aprisionamento. O que se dava a ver foi visto, o olhar acolhido pelas luzes da obra, em busca de repouso, assentou-se sobre facas, pontas, lâminas e se cortou.

Ao discorrer sobre o quadro Os embaixadores, de Hans Holbein, Lacan[7] afirma que o quadro pacifica o olhar. Mas será ele próprio, ao falar sobre a pintura expressionista, quem aventará ainda um algo mais, uma certa satisfação - como na satisfação da pulsão - que também é conferida pelo quadro ao que é pedido pelo olhar. A ideia do olhar que se pacifica naquilo que encontra como obra, o que coloca a pulsão escópica como engodo da castração, parece deixar de lado algo que a produção de Nazareth Pacheco vem constantemente reafirmar: que o olhar que se apazigua é, também, perturbado e aprisionado nesse jogo de sedução com o objeto-fetiche que, por sua vez, não se omite em revelar suas garras, facas, agulhas para realizar seu efeito de sedução / repulsa.

 

Desde o início, Nazareth Pacheco[8] já nos apresenta suas obras aproximando-as de objetos de tortura e aprisionamento. Haverá uma ênfase na qualidade de serem objetos - dependentes, aprisionados, evasivos, aprisionantes, sedutores e afins - bem como em sua função de tortura e aprisionamento, o que cria uma conversa com as ideias por mim apresentadas de objeto-fetiche e de aprisionamento do olhar como pontos de partida para a reflexão sobre seu trabalho.

 

Dos objetos aprisionados autobiográficos para os objetos femininos, ou melhor, objetos usados no corpo da mulher. Espéculos, saca-miomas, DIUs: uma parafernália ainda relativa à incidência da ação médica sobre o corpo - e não apenas o corpo da artista, mas qualquer corpo de mulher - faz emergir das entranhas desse corpo para os espaços de exposição objetos de tratamento alinhados e questionados em sua condição de tortura. Objetos comuns, cotidianos, de uso privado e íntimo, que jazem na escuridão dos mais recônditos buracos do corpo feminino, aparecem, subitamente, iluminados e seriados na sua mais inócua e inocente aparência de objetos de composição. Mas, em sua repetição harmoniosa, há sempre algo que destoa e retorna aquilo que parecia pacificado ao seu aspecto de maior horror: um único espéculo de metal em meio a uma parede inteira de espéculos de acrílico, por exemplo. Nazareth Pacheco parece tentar arrancar dos objetos comuns sua aparente inocência e sua condição apaziguadora. No mesmo movimento em que cria repetições e séries tranquilizantes, perturba aquele que contempla sua obra com um cutucão, um porém, uma dissonância que cria brecha para que a dor e a repulsa voltem a se instaurar.

 

Daí para os objetos sedutores, basta um passo: colares e vestidos com suas contas e pontas, aprisionados em vitrines, inacessíveis ao toque, convidativos, proibitivos, doloridos e irresistíveis. Sua assepsia herdada dos tratamentos e objetos cirúrgicos já não lembra em nada a borracha marcada pela luta com o corpo, trazendo para o campo de uma perfeição quase perversa a tensão que a artista cria entre sedução e repulsa. O objeto sedutor / objeto-fetiche parece conjurar precisamente essa marca do corpo, do humano, dos traços de mulher postos nas obras anteriores que, agora, são limpas e límpidas como se pretendem as ações médicas. Um feminino retirado de suas excrescências como o fetiche retira os sinais da castração. Lâminas, agulhas, anzóis, giletes, cristais, miçangas e a mão da artista envolvida pelo fazer. Uma costura, uma renda, um bordado: a beleza ofusca de tanto brilho que quase engana dos perigos de cortes e furos. Os cortes e furos no corpo da artista - que viraram obra - ameaçam o corpo do espectador, refém do fascínio e da dor antecipada.

 

O que se descortina no olhar aprisionado pela obra de Nazareth Pacheco? A meu ver, que a assepsia é necessária à sedução e que a dor é a condição de transformar pacificação em tormenta, desfazendo o engodo do encantamento limpo ao sujá-lo de sangue e de ferida, recolocando o corpo - agora pulsante - no âmbito da obra.

 

Em suas obras mais recentes, Nazareth faz uso do artifício de mostrar uma exposição de modo que, quando ali entramos, vemos apenas dois pequenos vidros transparentes de perfume com algo vermelho em seus interiores, fechados em caixas de acrílico, ladeados por diversas fotos desses mesmos frascos, além de circunferências acrílicas vermelhas colocadas na parede como se fossem quadros, um espelho frente ao qual encontramos uma cadeira também em acrílico vermelho, que parece muito frágil e pouco confortável devido às pontas acrílicas que são ainda colocadas em seus objetos-mobiliários. Após isso tudo, em uma segunda sala, vemos desenhos muito delicados de apenas pequenos pontos, circunferências em madeira pelo chão, mais fotos e, enfim, duas últimas fotografias nas quais finalmente encontramos o tema da exposição. Trata-se do sangue, o sangue da artista que esteve sempre presente nas feridas e nos cortes supostos enquanto descobríamos os brilhos metálicos de seus objetos sedutores de outrora que é, agora, exposto de forma explícita. O sangue retorna à obra, o corpo ausente pode ser colocado em seu lugar de direito.

 

Se tomarmos em consideração o que escreve Bernard Marcadé[9] para o catálogo da exposição Féminimasculin - Le sexe de l'art, podemos pensar que a assepsia da sedução está posta na história da arte de maneira a conectar o belo, o feminino e o que é olhado. O feminino passivamente se dá a ver pela atividade que lhe está posta fora, no olhar de que é objeto. E é esse feminino olhado que se entrega como engodo, como máscara ou como objeto-fetiche: daí seu apelo de sedução. A sedução feminina dos objetos de Nazareth Pacheco traz para a cena o escancaramento dessa assepsia sedutora, contrapondo-a a todas as excrescências e feridas que ali se presentificam - mesmo que ausentes - pela lembrança dos objetos cortantes e das feridas que provocam nos corpos, fazendo-os sangrar.

 

E como, então, Nazareth Pacheco desmascara esse feminino limpo e sedutor em que se afiguram seus objetos-fetiches? A meu ver, articulando seus objetos à dor que causam no corpo. O corpo, lugar no qual incide diretamente o mandato da ausência de obra sobre a qual escrevi no início desse texto, construindo-se em palco para a subjetividade tornada doença, bem como para as intervenções sobre ela, é também o lugar no qual a artista encena uma rebelião contra esse estabelecimento de um corpo despossuído de si. O corpo ausente se presentifica por meio das obras e, através delas, convoca o corpo do outro a se aproximar sem poder tocar, tornando-o prisioneiro de uma dor presumida e da fascinação do olhar.

 

O corpo como ausente, ao qual se substitui o objeto-fetiche, não é lugar do apaziguamento do olhar na negação da castração mais do que denúncia desse mesmo lugar enquanto farsa, engodo, embuste de supor que ao objeto perdido suceda um substituto que lhe propicie um espetáculo de gozo do qual o sofrimento estaria ausente. O que Nazareth Pacheco nos noticia, com suas obras de contas, cristais, acrílico, facas, giletes, lâminas e agulhas é que a ferida, o rasgo, não se desvencilha tão facilmente do belo, guardando em cada objeto fascinante seus potenciais de dor.

 

Mas o que se mostra, também, com as obras da artista, é a maneira asséptica como tal sedução se dá, trazendo para o campo do belo o limpo, o lindo, o brilhante, o ofuscante e o perfeito. O limpo como necessário ao belo e, consequentemente, à sedução, contrasta com o sujo dos fluidos e excrescências potencialmente presentes nos encontros entre os corpos, lembrando-nos de Freud[10] em seu comentário sobre a assunção pelo homem da postura ereta que deixa de lado odores e visões, mostrando-nos que depende dessa ausência de corporeidade, de substancialidade para que o corpo possa ser propagado como lugar da sedução. Um corpo despossuído de si e de sua corporeidade é a manobra que a sedução faz para surtir efeito. E tal corporeidade só se reencontra na dor, no sangue das mãos da artista cortadas na fatura das obras, naquilo que não se desmente nem se denega. A dor sendo, então, o contraponto necessário à sedução para devolver ao corpo sua condição de presença em ausência e, consequentemente, de marca.

 

O feminino como desvelamento:
Cindy Sherman[11]

Do mesmo modo como Nazareth Pacheco traz questões sobre o corpo feminino enquanto asséptico, Cindy Sherman nos trará questões sobre o feminino enquanto desvelamento.

 

Desde sua primeira série de fotografias em preto e branco, os Untitled Film Stills que começaram a ser feitos no final dos anos 1970, a artista tomará sua própria figura, sempre transformada pela ajuda da maquiagem e pelo uso de próteses, a fim de criar personagens que nos parecem conhecidos, já vistos e perturbadores. Mas, ao contrário daquilo que poderíamos pensar em um primeiro momento, não se trata em sua obra de uma discussão sobre o eu, nem sobre o narcisismo, na medida em que suas fotos não são autorretratos. A utilização de sua própria figura serve, contraditoriamente, a seu apagamento enquanto sujeito e à criação de uma discussão sobre os gêneros, assim como sua desconstrução.

 

Nos Film Stills, trata-se frequentemente de figuras femininas solitárias, capturadas em momentos muito íntimos ou muito frágeis em relação a alguém que não aparece na cena ainda que suposto por sua construção, como se elas tivessem saído das cenas de filmes noirs dos anos 1940 e 1950, ou dos filmes de Alfred Hitchcock. Essas fotos serão vistas enquanto denúncia dos lugares estereotipados ocupados pelas mulheres no contexto cultural e essa interpretação de seu trabalho como denúncia dos lugares das mulheres se tornará praticamente um clichê.

 

Assim, estamos face a trabalhos nos quais encontramos personagens vistos em seus momentos íntimos, fragilizados em relação a alguma outra pessoa que é apenas suposta pela cena enquanto nós mesmos - os terceiros dessa cena - vemos tudo como voyeurs. Eis novamente a posição do espectador como voyeur da obra de arte, assim como da mulher posta em questão.

 

A mudança no percurso da artista começa quando, em Pink Robes, suas mulheres nos olham face a face, retornando o apelo sutil ao espectador voyeur de suas primeiras fotos a juntarem-se à cena em uma inversão chocante, através da qual a mulher vista nos olha agora explicitamente. Dessa maneira, a artista começa a reenviar o olhar pousado sobre as mulheres em seus papéis sociais clichês de volta ao voyeur, que se acreditava confortável e reassegurado em sua posição de espectador frente a uma obra que o perturbará cada vez mais.

 

Com as Fashion Photos, a imagem glamourosa da mulher tornada bicho, destruída, louca. O horror aumenta a cada vez nas imagens que se seguem, e as Fairy Tales e as Disasters Pictures põem a nu as máscaras e próteses utilizadas pela artista na composição de seus personagens. Os monstros das histórias infantis são seguidos por cadáveres humanos, fragmentos de corpos, de carne humana, de sangue, de fluidos corporais, enfim, um corpo nem feminino nem masculino, mas um corpo decomposto.

 

Faz-se necessário parar por um instante, nesse percurso pela obra da artista, a fim de constatar que, se é possível que suas fotos até o momento tragam a discussão sobre o papel das mulheres de maneira a criticá-lo, não é menos possível que elas nos conduzam a lugares insuspeitados no que diz respeito a tal discussão. As críticas feministas, como Mulvey[12], veem a obra de Cindy Sherman pelo viés da tomada de consciência feminista através da denúncia dos lugares assujeitados e dessubjetivados apresentados por suas fotos de maneira crítica, como se todo o percurso da artista até os anos 1990 dissesse respeito ao desvelamento das diversas máscaras impostas às mulheres e ao feminino, levando ao vazio como revelação última, aproximando a verdade da mulher e o feminino da castração... Isso quer dizer que aquilo que elas apresentam enquanto lugar essencialmente feminino, uma vez que todas as máscaras estejam por terra, é o da mulher castrada. Ora, não deixa de ser uma ironia que a análise crítica das feministas proponha ainda a mulher como desvelamento que leva à castração. Como se não fosse nada além disso a verdade sobre o feminino, acentua bem Rosalind Krauss[13], quando mostra que tal tipo de análise mantém a mesma lógica fálica que acredita criticar, na medida em que propõe a verdade última do feminino como o lugar da castração. E podemos ver, seguindo a análise de Krauss, que, se é plausível que haja uma discussão sobre o papel das mulheres e do feminino nas obras de Sherman, não é menos plausível que tal discussão não termine com a constatação da mulher enquanto castrada, senão que ela seja precisamente uma crítica de tal lógica aplicada ao feminino.

 

Retornando ainda ao que propõe Krauss[14], as ideias do véu, do velamento / desvelamento tanto quanto da verdade são ligadas a uma lógica fálica, o que as torna também máscaras, uma farsa a partir da qual nos é proposto desvendar a verdade do feminino quando, nas obras de Sherman, a lógica apresentada é bem outra. O sistema do objeto-fetiche não é nada além de um véu ligado à ideia da mulher enquanto ferida. Trata-se de uma fetichização da mulher - a mesma fetichização do corpo feminino passivo ao olhar e à ação do outro, na forma como a mulher sempre foi tomada como objeto e tema no campo das artes visuais - que tem sua essência no ser castrado, ou seja, uma construção inscrita na lógica fálica, que supõe uma verdade sobre a mulher a ser atingida a partir do desvelamento de suas máscaras, levando à totalização do conhecimento. Haveria algo além?

 

Na série Masks, Cindy Sherman nos mostra que a ideia do desmascaramento levando a uma verdade não é nada além de uma farsa através da qual acreditamos atingir um fim, um alvo, um significado último inexistente. As máscaras cobrem sempre outras máscaras, em um movimento incessante no qual não podemos nem ao menos saber o que está dentro ou fora do quê, misturando o que serve para mascarar o quê, sem nos levar à essência. As fotos da artista nos contam que não há algo como uma essência e que as máscaras não mascaram nada além de outras máscaras. Assim, nada de verdade última, nada de definição verdadeira sobre o feminino.

 

Villemur[15] e Heartney[16] aproximam o trabalho de Cindy Sherman da ideia do simulacro em que as imagens não fazem mais referência ao original que, por sua vez, nunca existiu. Trata-se de representações sem referente, a ideia de origem desconstruída. Podemos encontrar tal aproximação ao simulacro na série Bus Riders do início do percurso da artista ou em History Portraits or Old Masters, a série que se segue aos Disasters, em que Sherman escancara a utilização das próteses, dos manequins e de outros artifícios, mostrando-nos que é do artifício que se trata, cada foto como uma farsa que não dá indicações acerca do quadro original sobre o qual se apoiam os seus. Assim, podemos constatar que a artista faz ao mesmo tempo uma crítica à história da arte, naquilo que diz respeito à ideia de original, através da utilização explícita dos artifícios mostrados ao espectador, e à ideia do feminino referido à lógica fálica através da desconstrução dessa lógica enquanto um recurso às origens que não são nada além de ilusórias.

 

A desaparição do referente nas imagens, a desaparição do sujeito Cindy Sherman nos personagens, a desaparição do verdadeiro nos simulacros, o questionamento da ideia de origem. A crítica da artista sobre o feminino como desvelamento nos leva a uma crítica do feminino referido à lógica fálica preenchida de absolutos, de verdades, de originais. Trata-se assim de uma discussão sobre o fracasso do mundo patriarcal que a aproxima das teorias pós-modernas criadas no momento presente por diversos autores e que também está presente no campo psicanalítico.

 

Em seguida à série Disasters, as fotos de Cindy Sherman mostram de mais a mais a farsa implicada no tema do desmascaramento. History Portraits, Civil War, Sex Pictures, Horror & Surrealist Pictures, Masks, Broken Dolls... abrem-se ao inumano, ao inquietante, ao dejeto, ao terrível, ao abjeto, ao perturbador ou, dito de outra maneira, ao grotesco. Nada se segue ao desmascaramento, o sexual se desvenda vazio, maquínico, os olhos colados aos rostos não são janelas pelas quais se vislumbra a alma, mas um artifício, as bonecas mutiladas mostram o sexual como o horror, a dor, a aniquilação. Aproximamo-nos daquilo que alguns críticos vão descrever como a aparição do informe na obra da artista.

 

O grotesco que, na obra de Cindy Sherman, traz o absurdo, o simulacro, o desvelamento da farsa do desvelamento, o automatismo, o maquínico, o inumano mascarado de humanidade e tudo aquilo que seu desfile de horrores é capaz de criar aproxima o feminino daquilo que Freud[17] designa como estranho. Ao tomar as obras de Cindy Sherman, nos apercebemos de que a maneira pela qual ela coloca em questão os simulacros, a história da arte, o lugar da mulher e a verdade do feminino é através de um percurso que vai da ironia ao grotesco.

 

O unheimlich é o estranho que traz como oposto o familiar, daí o horror e o temor que provoca, já que o que se encontra nele é aquilo que há de mais próximo, familiar, íntimo e secreto. Se, para Freud (1919), aquilo que causa horror remete ao retorno do recalcado e, consequentemente, à castração, o que vimos sugerido a partir dos trabalhos de Cindy Sherman é que o horror advém do desmascaramento da lógica da máscara. Ou seja, encontramos na última máscara não a castração, mas a falência dessa lógica do desvelamento.


A feminilidade marca a diferença e, por isso, pode ser aproximada ao estranho familiar. Ela é a fonte de uma experiência psíquica marcada pelo horror, precisamente à medida que coloca em questão o autocentramento da subjetividade baseado no referencial fálico. Ainda que as obras de Cindy Sherman não nos desloquem de uma origem fálica a uma origem feminina, o que de todo modo nos enviaria ao mesmo registro, sem colocá-lo em questão, elas nos deixam em um campo para além da primeira e sem definições, um domínio aberto em que cada afirmação pode ser posta em questão pela perda do referente. Dessa maneira, ela nos propõe o feminino ligado ao simulacro e levando ao informe que põe em movimento as formas, em vez do feminino cristalizado como desvelamento em direção a uma verdade última. O feminino ligado ao que se desloca e coloca em movimento, como veremos a seguir.

 

Nos trabalhos de Cindy Sherman, o feminino comparece enquanto outro e, pela maneira como ele se materializa em sua obra temos, constantemente, o corpo e sua ausência traduzidos pelo recurso às próteses e manequins como o lugar privilegiado em que esse deslocamento do feminino se dá, ou seja: o corpo como o lugar onde o feminino se revela como estranho, como borda e como outro, como fora. No corpo tem lugar o desvelamento do feminino e da desconstrução mesma dessa lógica do feminino como véu.


Como Nazareth Pacheco nos havia mostrado o corpo feminino privado de seus atributos a fim de se tornar objeto do desejo, agora é Cindy Sherman quem nos apresenta esse feminino concebido como desvelamento da verdade da mulher em relação à castração. Nos dois casos, as artistas nos propõem uma crítica de tais afirmações ao nos apresentarem uma outra via, seja a reinserção do corpo em sua materialidade na obra de Nazareth, seja a ausência de uma verdade última levando ao simulacro e ao informe na obra de Sherman. Substancialização, dessubstancialização. A origem é o corpo, a origem não existe. Duas maneiras de fazer sair o feminino de sua relação com a lógica fálica?

 

Podemos constatar, nas obras das duas artistas, um uso dos mesmos mecanismos utilizados por essa estratégia de assepsia do corpo a fim de desconstruí-lo: tanto Nazareth Pacheco quanto Cindy Sherman apelam aos signos referidos ao corpo e ao feminino para representá-los, ao mesmo tempo, tal qual aparecem em nossos tempos e em nossa cultura e, por um mesmo gesto, dotados de algo dissonante que atormenta a totalidade da obra e faz com que ela não seja apenas a tradução desse corpo ou desse feminino, mas sua colocação em tensão.

 

Desse modo, Cindy Sherman faz uso dos signos do feminino referidos ao fálico para perturbar a evidência dessa associação a partir de seu desvelamento das máscaras, das estratégias artificiais aplicadas a fim de criar o que parece ser a natureza mesma desse feminino. Isso se avizinha à maneira aparentemente apaziguadora pela qual Nazareth Pacheco coloca os objetos infinitamente repetidos e seriados em suas obras até que nos apercebamos que no interior mesmo dessa repetição há sempre a aparição de um elemento perturbador que desmascara a inocência do que foi posto em obra.

 

Nesse ponto posso dizer, a título de hipótese, que os trabalhos dessas artistas que nos levam às bordas do feminino e do corpo como lugares possíveis para a subjetivação o fazem a partir do objeto-fetiche, e fazendo com que tal objeto trabalhe contra sua própria cristalização. O objeto-fetiche posto em movimento pelas artistas coloca em questão o feminino e o corpo como lugares possíveis para que haja um movimento. A possibilidade subjetiva reside nos lugares de borda através da confrontação com suas localizações fora, além e, por consequência, próximas da localização fetichista em relação à ultrapassagem de um limite.

 

O fetichismo suprime os sinais da castração tanto quanto a arte e o olhar suprimem os sinais da materialidade do corpo e do corpo feminino. Quando não há essa confrontação com o lugar fetichista a partir dele mesmo, como o fazem as duas artistas a fim de colocá-lo em movimento e em questão, ou quando tal confrontação atinge o limite do traumático - como veremos na obra de Marina Abramovic - o que pode ocorrer é um recuo a uma dimensão imaginária que distancia as bordas do corpo e do feminino, suprimindo sua materialidade e negando sua ligação.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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