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Resumo
O trabalho expõe a função aferente do sonho, por meio da qual as impressões diurnas que permaneceram em latência são perlaboradas e podem completar o processo de inscrição. Essa função difere da função “deferente” do sonho, bastante conhecida, que é a da expressão do inconsciente recalcado. Embora sejam complementares e simultâneas, as duas funções ocorrem em sentido oposto na tópica psíquica. Para consolidar a ideia proposta, aborda-se a natureza enigmática dos restos diurnos como situações complexas que pedem inscrição, e que merecem ser melhor examinadas pela metapsicologia.


Palavras-chave
Sonhos; restos diurnos; perlaboração



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Abstract
The work exposes the function of afferent dream, through which the impressions that remained in daytime are perlaboradas latency and can complete the enrollment process. This function differs from function "respectful" of the dream, well known, which is the expression of repressed unconscious. Although complementary and simultaneous, the two functions occur in the opposite direction in topical psychic. To consolidate the idea proposal addresses the enigmatic nature of the remains as daytime complex situations that require registration, and which deserve to be better examined by metapsychology.

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 TEXTO

Por uma metapsicologia dos restos diurnos

Toward a metapsychology of the diurnal residues

O sonho aparece na obra de Freud como "a via régia para o inconsciente"[1]. E foi assim que ele veio a ser tratado pela psicanálise: como manifestação ou formação do inconsciente, expressão psíquica de enorme valor para a investigação na clínica psicanalítica. De modo muito sucinto, eu diria que esta abordagem inaugural - e que sempre prevaleceu - privilegiava o aspecto "deferente" dos sonhos, ou seja, sua função expressiva e demonstrativa do inconsciente que, ao lado dos sintomas e da transferência, permitia o acesso ao mundo das representações recalcadas do paciente neurótico. E assim foi pela razão de que se tratava de uma clínica da neurose.

 

A literatura psicanalítica contemporânea, entretanto, tem dado ênfase ao valor que o sonhar, em si mesmo, tem para vida psíquica[2]. Assistimos ao deslocamento de uma parte da preocupação com o sentido do sonho para a abordagem da função do sonhar. O aprofundamento da compreensão psicanalítica das psicopatologias não neuróticas tornou irrefreável esse encaminhamento da pesquisa em torno do sonhar. Os problemas relativos ao processo de sonhar nos pacientes psicóticos e a pobreza dos processos oníricos nos somatizadores introduziram desafios para a teoria dos sonhos que, para serem devidamente enfrentados, exigiram o exame de uma outra dimensão do sonhar, que chamarei aqui de "via aferente" do sonho. Numa palavra, trata-se de sua função recalcadora do sonho, que responde pelo seu papel no processo de inscrição psíquica e, portanto, na constituição das representações mentais. Trata-se de um desdobramento daquilo que Christophe Dejours[3] chamou de perlaboração pelo sonho.

 

O sentido deferente do sonho é bastante conhecido na psicanálise. Todavia, quando se observa a quase ausência de sonhos em pacientes psicossomáticos, há que se indagar a razão de tal falha. Ela não se explica por um excesso de recalcamento, que impediria as representações de se manifestarem no sonho. Ao contrário, o déficit onírico verificado resulta da falha daquele mecanismo. No caso da psicose, a ausência de uma barreira de contato[4] entre inconsciente e consciente introduz uma dificuldade na caracterização do sonho à moda do que se passa na neurose. Portanto, as dimensões deferente e aferente do sonho devem guardar alguma complementaridade. Parece haver simultaneidade entre o processo de inscrição e a expressão onírica de seu objeto, que nos exigirá o exame das percepções emocionalmente significativas na vigília e as vicissitudes de seu processamento psíquico, que vai se dar de acordo com a estrutura em questão. Por fim, o exame da percepção nos conduzirá, certamente, à consideração da natureza dos chamados restos diurnos. Vejamos passo a passo o que busco demonstrar.

 

De acordo com o esquema teórico apresentado por Dejours[5], o destino da percepção da realidade durante a vigília será bastante diferente, conforme a estrutura psíquica em questão. Claro que por "realidade" entende-se aqui não a materialidade dos objetos (que ele chama de "físico-química"), mas sim a natureza do encontro com o outro. Tal realidade - o outro - é o que efetivamente solicita os sujeitos, do ponto de vista da resposta emocional. O encontro com a realidade solicitante, entretanto, contém algo de enigmático, que não se desvenda tal como se dá na percepção de coisas. Daí o recurso a uma noção que, de certo modo, não é estranha ao texto freudiano: trata-se da zona de sensibilidade do inconsciente, que responde por um modo de percepção difuso, lateral, que mobiliza o mundo emocional, mas cujo objeto não se exprime, de partida, pela modalidade discursiva[6]. Ou seja, não se transforma diretamente em representação de palavra, exatamente por tocar de imediato em inscrições inconscientes prévias, que põem em marcha as mais variadas formas de defesa psíquica. O inconsciente recebe o estímulo da realidade diretamente da percepção, e não da representação.

 

É aí que os diferentes modos de processamento da percepção vão se desencadear. De forma muito sucinta, pode-se dizer que, no caso dos não neuróticos, a percepção será atacada diretamente. Por meio do acting out pode-se procurar destruir, na realidade, a própria fonte da percepção. Ou então, podem-se suprimir seus efeitos neutralizando-os graças à somatização. Nesses casos, com a expulsão da excitação, perde-se a oportunidade de dar início ao trabalho de inscrição e de perlaboração. Já o neurótico poderá colocar a percepção em latência e recalcá-la por ocasião do sonho. Vê-se aí, precisamente, a dimensão aferente do sonho, que é a sua própria dimensão funcional. Apenas quando se põe uma percepção da vigília em latência, evitando-se a descarga, é que o sujeito se encontra apto ao trabalho de inscrição dela. Dejours[7] sustenta que isso ocorre durante o processo de sonhar e por meio dele. Assim, se o sonho é um afloramento de representações que emergem por meio de símbolos (dimensão deferente), ele é também ocasião de produção de simbolização (dimensão aferente).

 

Ora, o inconsciente dinâmico ou recalcado, mediante tal processo, vai ganhando sucessivamente novas inscrições e, assim, tornando-se mais denso. A cada novo encontro com solicitações da realidade, ele não será mais o mesmo. As percepções advindas da realidade o encontrarão cada vez mais apto a responder de forma criativa às suas solicitações[8].

 

A parte do inconsciente implicada nos retornos do recalcado é somente a dinâmica, que foi, naturalmente, representada e recalcada. A outra parte seria o inconsciente primário, não representado, sede dos instintos, do qual o inconsciente representado vai se clivando, num processo que se dá de modo mais completo na estrutura neurótica. O sonho desempenha aí um papel central, por meio de sua função recalcadora que, como propus, é a sua dimensão aferente, ou seja, criadora e organizadora do inconsciente representado. Trata-se de uma função conservadora em relação ao aparelho psíquico, visto que tem como resultado manter dentro da tópica os pensamentos decorrentes da percepção que, de outro modo (na patologia não neurótica), seriam expulsos logo a partir de sua recusa pelo pré-consciente, dada a sua natureza inquietante e, por vezes, seu potencial desagregador.

 

Eis, em síntese, o esquema proposto por Dejours[9]:

 

    •  o encontro com a realidade (percepção) forma uma Gestalt que não se exprime discursivamente, mas que desencadeia associações, por analogia, com as representações do sujeito, já inscritas no decorrer se sua história de vida singular;

    •  as associações que daí surgem são postas em latência pelo pré-consciente;

    •  isso leva ao surgimento de excitações (afeto);

    •  desencadeia-se uma luta contra o afeto, no sentido de suportá-lo sem ceder à descarga; isso, no caso do neurótico, pois no não neurótico o afeto se descarrega por meio de acting out;

    •  os pensamentos que suportaram o período de latência são elaborados pelo sonho durante o sono, e assim são recalcados e adquirem, simultaneamente, a condição de representação mental.

 

Depreende-se então que recalcar equivale a representar, e que a função aferente do sonhar seria a de inscrever. A deficiência ou a perturbação do sonhar nas patologias não neuróticas lançou luz sobre a importância dessa dimensão, que passou então a ser considerada lado a lado com a já conhecida dimensão deferente.

 

A possibilidade de manter em latência os pensamentos despertados pela percepção, para posteriormente recalcá-los pela via do sonho, propicia o enriquecimento do inconsciente representado. Disso resulta a organização e a capitalização das experiências e a consequente edificação da historicidade singular de um sujeito. Trata-se de um trabalho que se dá no registro da pulsão de vida, à medida que foi possível sustar a compulsão repetitiva e desorganizadora proveniente da atuação da pulsão de morte. Os destinos patológicos da pulsão de morte relacionam-se ao acting out e à violência, enquanto o seu destino não patológico é exatamente o de "pôr em latência a percepção e os pensamentos que derivam dela quando a prova de realidade não tem um caráter traumático e a excitação pode ser retida momentaneamente em vez de ser imediatamente descarregada"[10]. Trata-se de um processo de perlaboração que se inicia na economia da percepção e se completa no sonhar.

 

Uma vez definida a ideia da via aferente do sonho, é hora de se examinar a natureza da percepção que desencadeia o afeto e os pensamentos que a ela se associam. Ingressamos, portanto, no campo de uma possível metapsicologia dos restos diurnos. Comecemos com as considerações de Freud[11] sobre tais elementos.

 

No capítulo v de "A interpretação dos sonhos", ele afirma que "em todo sonho, é possível encontrar um ponto de contato com as experiências do dia anterior"[12]. A questão que nos toca aqui é a de saber qual a relação orgânica entre o resto diurno e a representação simbólica que emerge no sonho. Às vezes o resto diurno aparece na teoria como um elemento inócuo da experiência de vigília, capturado de modo contingente pelo processo de elaboração onírica apenas por servir de intermediário simbólico para a representação recalcada que, por força própria, busca emergir no sonho durante o sono, quando a vigilância do ego se atenua. Outras vezes, parece ser a própria natureza do resto diurno o agente provocador do sonho. Neste caso, o agente que desencadeia o trabalho de elaboração onírica, em vez de situar-se no campo da representação e, assim, exigir um representante simbólico externo, eleito na realidade percebida, situa-se no próprio campo da percepção. Esse é o caso que nos interessa quando investigamos a dimensão aferente do sonho, pois aqui o resto diurno funciona como agente provocador de todo o processo que vimos esquematizado acima. O resto diurno, então, não é contingente, mas deve reunir em si elementos estéticos capazes de solicitar o trabalho psíquico do sujeito. Em síntese, o resto diurno seria, nesse caso, um traço da realidade impregnado por um sentido de encontro com o outro. De tal encontro provém uma solicitação do sujeito em forma enigmática, que introduz uma perturbação mas não pode receber, de imediato, uma nomeação. Trata-se de uma forma - uma Gestalt - que dispara o trabalho e a defesa, mas cuja natureza é não verbal.

 

Recorro aqui à filosofia das formas simbólicas de Susanne Langer[13] para compreender melhor a natureza do percepto que não cabe numa forma discursiva. O simbolismo verbal tem como propriedade a discursividade, que requer que nossas ideias sejam "enfileiradas" no tempo da linguagem. Mas seus objetos, em si, permanecem simultâneos, "um dentro do outro". Langer afirma que, por causa da exigência inerente à discursividade, "apenas os pensamentos passíveis de um arranjo nessa ordem peculiar podem em geral ser falados; qualquer ideia que não se preste a tal projeção é inefável, incomunicável por meio de palavras"[14]. Ora, isso responde com exatidão à característica fundamental do sonho descrita por Freud, que é a da figurabilidade (e, portanto, não discursividade). Além disso, o sonho comporta um caráter de simultaneidade, solidário à figurabilidade, que faz dele uma Gestalt atemporal - erigida segundo as regras do processo primário - que somente a duras penas será transformada em discurso por meio do relato. Mas aí, diz Freud, já estamos no campo da elaboração secundária.

 

Contudo, o foco para o qual eu gostaria de chamar a atenção ainda é outro, que não o da não discursividade do pensamento do sonho: trata-se de sua ligação solidária com o resto diurno quando este é o encontro com o outro solicitante. Todo um trabalho de elaboração psíquica se desencadeia à margem da consciência. A zona de sensibilidade do inconsciente é que foi tocada pela percepção. O percepto resultante, por sua vez, tem também o caráter de Gestalt irredutível ao discurso. Não vejo melhor conceito para caracterizar tal percepção do que o de significante enigmático de Laplanche[15], por pelo menos duas razões. Em primeiro lugar, por tratar-se de emissão provocativa emanada necessariamente do campo do outro, e, em segundo, por ser enigmática, isto é, por escapar da possibilidade de apreensão consciente imediata - não sujeitar-se à palavra -, ao mesmo tempo que ativa o trabalho de associação psíquica em sentido retrospectivo. Sugiro mesmo que aquilo que Freud chamava de "umbigo do sonho" seja o ponto final da linha associativa regressiva no inconsciente representado, ponto que tange o recalque originário que, para Laplanche, tem base realística material, conquanto situe-se no plano imemorial.

 

Prosseguindo um pouco mais no exame do texto freudiano, a fim de caracterizar a essência do resto diurno, encontramos, em "A interpretação dos sonhos", a seguinte afirmação:

 

[...] o agente instigador de todo sonho encontra-se sobre as experiências sobre as quais ainda não se dormiu (grifo meu). Assim, as relações entre o conteúdo de um sonho e as impressões do passado mais recente [...] não diferem sob nenhum aspecto de suas relações com as impressões que datam de qualquer período mais remoto. Os sonhos podem selecionar seu material de qualquer parte da vida daquele que sonha, contanto que haja apenas uma linha de pensamento ligando a experiência do dia do sonho (as impressões recentes) com as mais antigas[16].

 

Penso que a curiosa expressão "experiências sobre as quais ainda não se dormiu", usada por Freud, significa experiências submetidas à latência, que ainda não foram assimiladas pelo aparelho psíquico na forma de representações, e que aguardam a ocasião do sonho para serem inscritas, mediante a sua acomodação dentro da rede de representações já existente. Ou seja, aguardam em latência, sem serem descarregadas em ato, para serem recalcadas pela ocasião do sonho, quando o processo de perlaboração iniciado com a colocação em latência pode ser finalizado mediante a inscrição psíquica. A partir daí, o inconsciente recalcado adquire mais uma representação que amplia a rede complexa formada pelo critério da identidade temática de traços inscritos[17].

Disso tudo se depreende que o resto diurno não pode ter uma forma m

eramente indiferente[18]. Freud prossegue examinando essa questão quando se pergunta qual a relação existente entre as impressões da véspera com o conteúdo do sonho, produzindo uma verdadeira síntese teórica da natureza do resto diurno:

 

No conteúdo manifesto do sonho, só se fez alusão à impressão indiferente, o que parece confirmar a ideia de que os sonhos têm uma preferência por absorver detalhes destituídos de importância da vida de vigília. Todos os elementos da interpretação, por outro lado, levaram à impressão importante, àquela que justificadamente agitara meus sentimentos. Se o sentido do sonho for julgado, como certamente só pode ser, pelo seu conteúdo latente, conforme revelado pela análise, um fato novo e significativo é inesperadamente trazido à luz. O enigma que consiste em os sonhos se interessarem apenas pelos fragmentos sem valor da vida de vigília parece haver perdido todo o seu significado; nem se pode mais sustentar que a vida de vigília não se processa ulteriormente nos sonhos e que estes são, assim, atividade psíquica desperdiçada com material descabido. O contrário é verdade: nossos pensamentos oníricos são dominados pelo mesmo material que nos ocupou durante o dia e somente nos preocupamos em sonhar com as coisas que nos deram motivo para reflexão durante o dia[19].

 

Aqui Freud parece tomar partido de uma concepção de resto diurno que em nada o caracteriza como indiferente. Ou melhor, sua indiferença pode ser apenas aparente, pois sua forma oculta e simboliza, simultaneamente, o objeto que espelha a representação conflitiva. Laplanche & Pontalis[20] abordam a tensão decorrente da consideração do resto diurno ora como indiferente, ora como importante. Para eles, não haveria contradição entre essas possibilidades, mas tratar-se-ia de duas pontas de um continuum que comporta casos intermediários. Assim, o resto diurno pode ser um elemento insignificante, escolhido no processo onírico em razão de sua ligação associativa com o desejo do sonho. Mas há casos em que sua presença no sonho é motivada por uma preocupação ou por um desejo da véspera.

 

Não podemos escapar de uma definição do resto diurno como um elemento percebido que guarda em si - por meio de sua forma - o potencial de símbolo para o sujeito que com ele toma contato. Seu poder de disparar a excitação que dá início ao trabalho de perlaboração é inequívoco. A ideia de que tal trabalho passa ao largo da consciência, iniciando-se com a colocação do pensamento em latência e finalizando-se com a inscrição pela via do sonho, parece bastante verossímil e funcional para dar conta de todo o processo. Mas isso nos exige um pouco mais no exame da natureza formal do resto diurno. Para tal, não seria suficiente concebê-lo simplesmente como objeto material a ser apreendido pelos órgãos do sentido. Quando se apela à sua forma como elemento mobilizador do inconsciente, há que se ampliar a noção de forma para além dos objetos materiais, em direção a Gestalten mais complexas. Estas seriam constituídas por situações emocionais que produzem efeito sobre a zona de sensibilidade do inconsciente, mediante a solicitação de uma resposta emocional[21].

 

Todos estão sujeitos a estas requisições da realidade percebida. Mas Susanne Langer mostra como a criança possui maior suscetibilidade às impressões e tende a atribuir significados a puras formas visuais e auditivas:

 

A infância é o grande período de sinestesia; sons, cores e temperaturas, formas e sentimentos podem ter determinados caracteres em comum, pelos quais uma vogal pode "ser" de certa cor, um tom pode "ser" grande ou pequeno, baixo ou alto, claro ou escuro, etc. Há forte pendor a ser forma associações entre sensa que não estejam praticamente fixados no mundo, e até a confundir tais impressões fortuitas. Mais do que todas, os sentimentos superativos se apegam a um material assim fragmentário. O medo vive em puras Gestalten, advertência ou amizade emanam de objetos desprovidos de faces e vozes, cabeças ou mãos; pois todos eles têm "expressão" para a criança, embora não tenham - como supõem frequentemente os adultos - forma antropormórfica[22].

 

Meros objetos inanimados podem apresentar aspectos de "dignidade, indiferença ou ameaça"[23], diz a autora.

 

A mente - não apenas da criança - é sensível às formas expressivas, sejam de objetos, sejam de situações complexas. Deste modo, ela pode captar analogias que, consideradas apenas intelectual e racionalmente, seriam absurdas. Mas é exatamente essa profusão de associações, que não passa pela crítica consciente, que ativa a faculdade de transformação simbólica. A maneira elementar da simbolização passa pela projeção. Diz Langer: "Projetar sentimentos em objetos externos é a primeira maneira de simbolizar e, destarte, de conceber os referidos sentimentos"[24].

 

Tudo isto se aplica ao resto diurno, com o acréscimo de que sua natureza formal interfere na sua eleição, por um sujeito, para alvo de projeção simbolizante. As formas dos objetos e das situações complexas não são inócuas. Algo deve haver que possibilite sua ligação com representações dos sujeitos, mas esse algo nem sempre se explica por uma potência universalmente perceptível da forma. Tal como na simbolização presente no sonho, a lógica que preside a associação encontra-se na singularidade dos sujeitos.

  

Para finalizar, farei um brevíssimo relato de um sonho de um paciente em análise. Na noite anterior à sessão, ele sonhou que olhava para um pasto onde ocorria uma corrida entre uma égua prenhe e um cachorro velho, de porte elegante. Subitamente um potrinho, que surge na cena - como se estivesse participando também da corrida - cai e é atacado por uma cobra. O sonhador se apavora ao ver que o potrinho vai ser picado e morrer. Mas eis que é ele, o sonhador que observava a cena, que é atacado pela cobra. Trata-se de uma cena de susto e horror, que o faz despertar.

 

Ao investigar os acontecimentos da véspera, ele conta ter recebido o telefonema de um amigo que lhe conta que nascera o filho de um outro amigo comum. E termina a ligação dizendo, em tom de brincadeira: "agora só falta você". O paciente prossegue a sessão dizendo que poucos dias antes pensara em ligar para o amigo cujo filho acabava de nascer. Mas não o fez para não incomodar. Afinal, o amigo estava casado, a mulher estava grávida, e não haveria tempo para conversarem ou se encontrarem como antigamente. Continua a falar, lamentando que todos os amigos do grupo antigo, que sempre havia sido muito unido, estavam casados e já tinham filhos. Menos ele, que se dizia doente mental e incapaz de conseguir um relacionamento estável com uma mulher. Nos feriados, não recebia mais convite para viajar com os amigos - que viajavam com as respectivas famílias - e ficava sozinho em casa.

 

Não cabe aqui fazer uma análise exaustiva do sonho, nem é o caso de nos desviarmos para a análise do paciente. O que parece claro é que o resto diurno do sonho contém todos os aspectos que levantei acima. O telefonema punha em evidência o núcleo melancólico do paciente: sua solidão e sua incapacidade de ser como os outros. E terminava com um detalhe pavoroso: "agora só falta você", frase indutiva que vem a ser um traço da realidade/alteridade solicitante. Convocava-o para aquilo do que ele se sentia incapaz. O casal parental formado pela égua prenhe e pelo cachorro velho, extensivo aos casais de amigos, apostava uma corrida/coito, da qual o potrinho se excluía mediante a castração/morte com o golpe da cobra. Numa linha associativa regressiva, a situação atual atinge a situação edípica.

 

Haveria muito mais a interpretar, é óbvio. Mas eu gostaria apenas de tomar este sonho, a meu ver exemplar, para figurar o que aqui vimos discutindo. Trata-se de um sonho desencadeado por um acontecimento provocador de um afeto doloroso, que luta por inscrever-se na rede complexa de representações. O caminho que vai da percepção à representação não é dado, nem automático. É complicado por toda sorte de mecanismos defensivos, inclusive pode ser obstado pela recusa e pela rejeição, como sabemos à exaustão. Para ser levado a termo precisa coincidir com o processo de perlaboração que, como se vê no sonho de meu paciente, tem início na latência, passa pela produção do sonho e continua na sessão analítica que lhe dá continência e continuidade.


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