voltar à primeira páginaResumo Não há dúvida de que neste século a mulher protagonizou mudanças importantes no cenário sócio-político ocidental, cuja extensão nem sempre é fácil dimensionar. O acesso ao controle da procriação, por exemplo, revolucionou os registros da sexualidade, do casamento e da família. Por outro lado, há grandes divergências entre os psicanalistas quanto ao alcance dessas transformações na constituição subjetiva do feminino.
A II Jornada Temática – Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura, realizada em maio de2007 pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, reuniu trabalhos com o propósito de debater e refletir sobre o teor dessas mudanças, utilizando e questionando o instrumental teórico da psicanálise. No intuito de prosseguir as discussões ali suscitadas, pedimos a alguns colegas que respondessem à seguinte questão:
A progressiva conquista de espaço público trouxe uma infinidade de ganhos para a mulher, mas exigiu-lhe mudanças em sua posição subjetiva, criando novos impasses e conflitos na construção de sua sexualidade, já marcada pelo difícil desligamento da figura materna e pela conquista do amor paterno. Até que ponto devemos concordar com André Green, o qual, em seu artigo “Agressão, feminilidade, paranóia, realidade” [1], afirma que “Embora o acesso conquistado pelas mulheres a atividades anteriormente restritas a homens tenha atenuado as diferenças entre os sexos no âmbito social, num nível mais amplo tal diminuição revela-se como superficial. É preciso levar em conta o que Freud disse acerca do ‘repúdio à feminilidade’ presente em ambos os sexos”.
Nos textos que se seguem, temos quatro elaborações a respeito desse tema. Autor(es) Malvine Zalcberg é psicanalista e doutora em Psicologia (PUC/RJ). Tales A. M. Ab´Saber é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, professor do curso de Psicopatologia e Saúde Pública da Faculdade de Saúde Pública (USP). É autor de O sonhar restaurado – formas do sonhar em Bion, Winnicott e Freud (Prêmio Jabuti 2006). Silvia Leonor Alonso é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena o grupo de trabalho e pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. Notas 1 On Private Madness. Londres, Rebus Press, 1996. 2 A.Green (1972), Sobre a loucura pessoal. Rio de Janeiro, Imago, 1988, p. 110. 3 S. Freud (1905), "Three essays on the theory of sexuality". London, Hogarth Press, Standard Edition, Vol. vii, 1953. 4 S. Freud, (1925), "Some physical consequences of the anatomical distinction between the sexes". London, Hogarth Press, Standard Edition, Vol. xix, 1961. 5 S. Freud, (1931), "Female sexuality". London, Hogarth Press, Standard Edition, Vol.xxi, 1961, p. 225. 6 M. Zalcberg, A relação mãe e filha. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2003, p. 15. 7 J. Lacan, (1972-1973), Mais, ainda. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, p. 99. 8 J. Lacan, op. cit., p. 101. 9 M. Torres, Buenos Aires, Enlaces, n.12, 2007, p. 42. 10 J. Lacan, (1962-1963), A angústia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2007. 11 M. Zalcberg, Amor paixão feminina. Rio de Janeiro, Campus/Elsevier, 2007. 12 Z. Bauman, L´amour, élément liquide. Paris, Editions du Rouergue, 2004. voltar à primeira página
| | DEBATEUma lente de aumento sobre o feminino no século XXIMalvine Zalcberg Tales A. M. Ab´Saber Silvia Leonor Alonso
Não há dúvida de que neste século a mulher protagonizou mudanças importantes no cenário sócio-político ocidental, cuja extensão nem sempre é fácil dimensionar. O acesso ao controle da procriação, por exemplo, revolucionou os registros da sexualidade, do casamento e da família. Por outro lado, há grandes divergências entre os psicanalistas quanto ao alcance dessas transformações na constituição subjetiva do feminino.
A II Jornada Temática – Interlocuções sobre o feminino na clínica, na teoria, na cultura, realizada em maio de 2007 pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, reuniu trabalhos com o propósito de debater e refl etir sobre o teor dessas mudanças, utilizando e questionando o instrumental teórico da psicanálise. No intuito de prosseguir as discussões ali suscitadas, pedimos a alguns colegas que respondessem à seguinte questão:
A progressiva conquista de espaço público trouxe uma infi nidade de ganhos para a mulher, mas exigiu-lhe mudanças em sua posição subjetiva, criando novos impasses e confl itos na construção de sua sexualidade, já marcada pelo difícil desligamento da fi gura materna e pela conquista do amor paterno. Até que ponto devemos concordar com André Green, o qual, em seu artigo “Agressão, feminilidade, paranóia, realidade” [1], afirma que “Embora o acesso conquistado pelas mulheres a atividades anteriormente restritas a homens tenha atenuado as diferenças entre os sexos no âmbito social, num nível mais amplo tal diminuição revela-se como superfi cial. É preciso levar em conta o que Freud disse acerca do ‘repúdio à feminilidade’ presente em ambos os sexos”.
Nos textos que se seguem, temos quatro elaborações a respeito desse tema.
MALVINE ZALCBERG "Que antes renuncie a isso, portanto, quem não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época." [Jacques Lacan. Discurso de Roma]
Essa frase de Lacan é absolutamente atual. A psicanálise se propõe não só como um tratamento do um por um, mas também como um tratamento do mal-estar na civilização, tal como deve ser interpretado em cada época.
As importantes conquistas sociais alcançadas pelas mulheres em nossos tempos abriram-lhes novas possibilidades de realizações pessoais e profissionais, mas não produziram uma verdadeira modificação no psiquismo feminino. O que é ressaltado por André Green em seu livro Sobre a loucura pessoal: "A abertura, para as mulheres, das atividades sociais que costumavam ser reservadas aos homens levou a uma atenuação, em seus aspectos sociais, da diferença entre os sexos. Não obstante, desejamos realçar que uma tal atenuação, até certo ponto, é superficial" [2].
Propormo-nos a discutir essa questão é reconhecer sermos atravessados pelo importante e sempre atual tema da diferença entre os sexos, diferença que Freud pretendeu inicialmente ignorar postulando uma igualdade no desenvolvimento psíquico do menino e da menina [3].
Confrontar-se com a constituição diferenciada dos sexos fez Freud rever sua primeira teoria do Édipo e postular a importância da figura materna no destino da filha [4] aspecto até então desconsiderado. Essa descoberta o leva a postular que a questão feminina advém da profunda ligação de uma filha com sua mãe da qual decorre a dificuldade de separar-se da mãe [5]. Freud antecipava o que Lacan desenvolveu: que, ao entrar no complexo de Édipo a implicar a separação com o Outro materno primordial pela intromissão da figura simbólica do pai, menino e menina são iguais. Não o serão depois. O processo edípico da menina deixa um resto na condição de separação de uma filha com sua mãe, como ressalto no meu livro A relação mãe e filha [6]. Este resto que tem relação com o gozo feminino da mãe é pelo qual a filha tem receio de ser absorvida e acabar se dissolvendo na escuridão da órbita materna.
Isto porque a metáfora paterna, conceito pelo qual Lacan redefine o Édipo freudiano, mostra-se não totalmente operante no caso da menina. Só em parte. A identificação viril, que é a marca deixada em ambos os sexos da passagem pelo processo edípico, dá a uma filha a condição de sujeito, isto é, liberta da alienação no campo do Outro dos primeiros tempos, mas não lhe dá a condição de mulher. Não há significante específico do sexo feminino como o há - o falo - no caso do homem. Cabe a cada mulher constituir-se uma feminilidade num processo de invenção. Onde Freud postulou um "menos" na mulher, Lacan formulou um "não-todo", num movimento na psicanálise que leva da insuficiência à incompletude. O "não-todo" na castração, na lógica fálica e no Édipo no caso da mulher a torna mais próxima do real e de uma certa "loucura". É nesta via da não inscrição completa na lógica fálica que Lacan postula um gozo específico da mulher, suplementar, como o chama; um gozo que ela tem, além daquele que compartilha com o homem, o gozo fálico [7]. Deste gozo elas nada dizem - nem uma palavra, mesmo que se lhes peça de joelhos, sustenta Lacan [8]. A idéia de que as mulheres têm um gozo que não se limita às descontinuidades do gozo fálico acena com um acesso a qualquer coisa de oceânico, se podemos utilizar o termo ao qual Freud recorre para falar da aspiração religiosa.
A diferença entre os gozos do homem e da mulher se faz sentir pelo fato de que o gozo do homem tem "começo e fim". O homem encontra um limite no gozo fálico; afinal, ele goza de uma parte do próprio corpo, não propriamente da mulher. Já a mulher não encontra em seu corpo um limite para o seu gozo. Não há órgão para identificá-lo. É esse sentido do não localizável de seu gozo que dá à mulher a idéia de seu gozo ser infinito quando ela o experimenta. A mulher pode ser ameaçada de por esse gozo ser invadida se ela não encontra uma forma de enodá-lo. Essa experiência de ilimitado é à qual a mulher pode ficar sujeita sem recursos, mais além de toda "relação sexual". Não poderíamos ler junto com Lacan a "recusa do feminino" isolado por Freud, como a recusa das mulheres de dizer algo sobre esta experiência do ilimitado à qual são abandonadas?
Não podemos deixar de constatar o quanto o ideal de independência da mulher em relação ao homem - descartar os homens é cada vez mais possível para a mulher em nossos dias - tornou-se um imperativo superegóico que obriga a mulher a se sentir ou dizer "liberada". A clínica, contudo, nos mostra que angústia, inibição, sintoma estão à espreita, sob um modo bem feminino. É porque ao pretender se passar de toda mediação do homem, uma mulher pode não só estar abrindo mão de aspectos de sua feminilidade como também estar sujeita a ser invadida pelo ilimitado de seu gozo. Não podemos deixar de notar uma certa inquietude quanto às mulheres modernas.
A legitimação do gozo sexual e da busca desenfreada por objetos de gozo que prevalece em nossos tempos afeta tanto as mulheres quanto os homens, mas são as mulheres que mais se ressentem do curto-circuito que afeta o laço social com o Outro. Em nossos tempos, tempo de festa permanente, se trata de que nunca chegue o momento de "the party is over", porque o sujeito, entregue à festa perpétua, procura obturar todo vazio, toda falta [9]. Assim, o ser falante, profundamente separado do Outro, pretende, contudo, não separar-se do objeto. E o mercado lhe oferece o que quer que seja para sua adição ao objeto ser ininterrupta. Mas esta "ânsia" generalizada, esta ansiedade, é a outra face de uma tristeza cada vez mais agravada. Números crescentes de casos de anorexia, bulimia, toxicomania, alcoolismo são testemunhos da existência de sujeitos orientados por uma força que os empurra ao gozo numa forma que prescinde do Outro, no qual se goza a sós e em que não há espaço para o desejo. É um aspecto particularmente enfatizado por Lacan em seu seminário sobre a Angústia: que o gozo deve ceder espaço para o desejo [10]. O amor tem essa importante função, a de favorecer a substituição do gozo pelo desejo, motivo pelo qual o amor possibilita o encontro entre os sexos, de outra forma, condenados ao exílio em seus gozos próprios, como sustento em meu livro Amor paixão feminina [11].
Se é o amor que possibilita o encontro entre os sexos e o amor está em crise, a questão do laço social com o Outro se apresenta como nossa questão do momento. Principalmente quando, como sustenta Zygmunt Bauman, os amores hoje se "liquefazem" em prol de relações flexíveis, de vínculos temporários e de redes afetivas que só fazem mudar.
É a função subjetiva do amor segundo os sexos que nos cabe questionar. Se as mulheres se revelam as grandes artífices de Eros, o princípio que une os sexos pelo amor é que, pela mediação do homem, elas encontram uma forma de enodamento com a lógica fálica e com o gozo que as podem ultrapassar. Motivo pelo qual elas fazem do amor, uma causa. Se a via da vontade de gozar é deixada livre, sem limite de alguma natureza, ela revela a face de pulsão de morte. Por essa via se manifesta o excesso na clínica feminina constatada em nossos tempos.
TALES A. M. AB'SABER
Como todos sabemos,de fato, a posição da mulher na vida social ocidental se viu alterada e transformada enormemente nos últimos cem anos, e - mais ou menos como o próprio boom tecnológico do último estágio do capitalismo de consumo e da espetacularização das mediações sociais, de fetichização generalizada -, nos últimos cinqüenta anos, a partir da década de60 do século passado, as transformações envolvendo o trabalho da sexualidade, da produção econômica e da casa foram maiores, mais rápidas e mais intensas do que provavelmente o foram durante todo o período da modernidade anterior, desde o momento original em que a dinâmica do capitalismo industrial libertou em massa as mulheres da classe trabalhadora para o trabalho.
A situação real da experiência do feminino no mundo de hoje é plural, e conhece, na vida social, bem como nas possibilidades e tensões psíquicas, uma série de determinantes e contradições próprias. Do meu lado, acredito que o consultório psicanalítico não é apenas um dispositivo poderoso de atenção e cuidado ao mundo vivo e complexo da realidade psíquica, mas é também um ótimo posto de observação das dimensões, experiências e contradições do mundo externo que nossos pacientes habitam, do mundo em que vivem e que os habita mesmo como objeto, campo de representações e dinâmica ideológica em busca de esclarecimento, quero dizer, para mim, em busca de trabalho analítico. Do mesmo modo que interessa ao bebê humano as condições gerais do ambiente original que o sustenta, para a vida psíquica do homem adulto importa vitalmente a ordem simbólica de sua cultura; se, por exemplo, habitamos um espaço virtual de eros e civilização, como pensou o filósofo, ou se, ao contrário, estamos no campo de uma patologia da civilização, como pensou um certo analista.
Desde o ponto de vista deste laboratório investigativo e especulativo também de caráter social que é a clínica psicanalítica, tenho observado a presença de alguns fenômenos fortes envolvendo o posicionamento do feminino em nosso mundo e nossa cidade, hoje. Crise nas condições de maternagem de mulheres e mães que não dispõem mais de uma comunidade imaginária que as sustente e que as ajude no trabalho radical de receber, conceber e investir libidinalmente um bebê humano; mulheres, jovens ou maduras, que não podem contar com a parceria produtiva de um homem, dada a impotência social do campo do masculino, paralisado no tempo da crise do emprego, dos salários e das profissões; mulheres que necessitam, sozinhas, equilibrar a problemática equação entre ser mãe, trabalhar e amar, com homens que, em um sistema geral de neuroses narcísicas e impotência social, se recusam ao comprometimento com tais mundos humanos, e apontam com sua depressão para o anacronismo problemático de tais projetos. Sabemos, e qualquer clínica social nos dá amplo acesso a esse problema, que no mundo da pobreza brasileira é comum a família constituída só de mãe e filhos, com a ausência sistemática, estranha e negativamente fantasmática da figura paterna, enquanto os homens não sentem comprometimento e nem têm condições materiais mínimas para a reprodução do modelo da família triangular burguesa, que aliás, nesta esfera social sempre foi um ideal muito frágil. Por fim, entre as jovens de classes média e alta verificamos a dúvida trabalhosa sobre a contradição entre a realidade plural do desejo sexual humano, que elas assumem, e o modelo monogâmico tradicional - questão enunciada por essas moças que porta uma esperança dialética utópica - com algumas delas chegando a conceber regras racionais para a constituição de relações amorosas abertas, todavia de muito difícil sustentação emocional e ideológica, e, também e ainda, temos jovens muito inteligentes que, dada toda a radicalidade extrema da ordem social falhada brasileira, e o mal-estar geral do capitalismo contemporâneo visto desde nossa periferia, confirmam a impossibilidade de reproduzir o modelo da família nuclear burguesa pensando muito seriamente em não ter filhos.
Estes circuitos de problemas de vários portes que o mundo contemporâneo traz à vida das mulheres, que posicionam de modo novo os três grandes campos da subjetivação humana, a maternidade e a ordem da casa, o sexual e sua angústia e o trabalho social e sua política, convivem em tensão produtiva com velhas imagens próprias de fantasmáticas femininas tradicionalmente pensadas como histéricas, acrescidas dos novos avanços de leitura e teorização psicanalítica sobre as falhas simbólicas arcaicas, no plano da narcisização primária, abertas ao desamparo e à dependência humana primordial. Evidentemente, nessa região de produtividade psíquica, a ordem edípica - positiva ou falhada - dessas mulheres tem importância capital.
Assim continuamos observando fantasias de sedução traumática generalizadas frente ao masculino, ou de onipotência ideal e salvadora projetada no homem, que repararia e instabilidade egóica, por vezes fundada sobre fissuras muito mais profundas na estrutura do ego, que aportam um fundo de ansiedade psicóticas à forma histérica turbulenta do desejo e do valor do outro para estas mulheres. Ou, ainda, dúvidas constantes sobre o valor erótico e auto-erótico, e de integridade do self, no campo da imagem do corpo, dúvidas estas evidentemente pautadas pela pulsação política e ideológica sobre o assunto que vem do todo, os discursos sobre o corpo, a imagem e o valor da sexualidade feminina existentes na cultura, que têm orientação ideológica muito interessada.
Este último problema, que importa profundamente, por exemplo, na implosão psicótica e somática frente à invasão da imagem alucinatória que vem do todo na experiência anoréxica, já demonstra em sua própria dinâmica o que acredito ser a questão psicanalítica por excelência de nosso tempo: há uma condição contemporânea de empobrecimento egóico generalizado, ou mesmo do sujeito do inconsciente, frente à massa de representações sociais, ou de condições materiais concretas e históricas adversas, que o invadem a ponto de colocar mesmo em risco as velhas estruturas pulsionais e formas de defesa, e a ponto de pressionar a formulação de novas equações simbólicas, não descritas pela psicanálise original, bem como uma nova ordem de problemas que o campo de metáforas original da disciplina, para a sua experiência do inconsciente, também desconhecia.
Se, no passado, a posição da mulher e do feminino na cultura moderna vitoriana, ainda não plenamente realizada no campo da universalidade dos direitos, foi uma das forças que pressionou e ajudou na emergência histórica da própria psicanálise como dispositivo necessário de ser pensado para poder pensar o humano, e esta força dialética do sintoma histórico encontrou em Freud o seu elaborador, no presente a positividade das mulheres em todos os campos da cultura e a revelação simultânea da crise de não sustentação desses próprios campos talvez exija uma nova ordem de trabalho e concepção da disciplina psicanalítica.
Desse modo, diferentemente de André Green, creio que as condições históricas concretas modificam a posição do sujeito do inconsciente, que talvez não deva mais ser concebido como constituído em uma estrutura simbólica de caráter universal, pré-fixada historicamente. Assim a pílula anticoncepcional, o microondas e a industrialização dos alimentos, o direito ao trabalho e a profissão feminina, a crise econômica e simbólica da forma casamento e do trabalho da maternidade, a fusão generalizada de fetichismo da mercadoria com a imagem sexual do feminino são dados históricos fortes que devem implicar mais profundamente o valor das equações simbólicas primitivas descritas pela psicanálise original. A dimensão dialética da psicanálise, que deve checar o pólo singular e subjetivo do sujeito com as formas e texturas simbólicas gerais de seu tempo, se torna assim, para mim, o dado maior para a orientação do trabalho analítico, e sua busca elaborativa, neste nosso tempo de novas Capitus, Chihiros, Madonnas e Marcias Denser.
CHRISTIAN INGO LENZ DUNKER
A idéia deque as mulheres conquistaram acesso a atividades sociais antes restritas pode ser matizada em três sentidos. No sentido sociológico, ela remete mais a transformações que organizam um projeto de eqüidade, ainda em realização, do que uma realidade universal. Basta constatar o caráter regional da afirmação, se o escopo de consideração for a África, a Ásia, as populações de baixa renda, ou as sociedades ocidentais mais conservadoras, para verificar a relatividade dessa constatação. Sem mencionar as profundas diferenças salariais e todo o espectro problemático de questões em torno dos direitos humanos e da inclusão de minorias. Recentemente discuti uma pesquisa que isolou o seguinte problema: em inúmeras empresas, verificou-se a crescente presença de mulheres em cargos executivos, no entanto, não se conseguia explicar por que estas mulheres recusavam-se a progredir ainda mais na carreira. Recusavam cargos mais elevados e a mera "possibilidade de acesso" a tais cargos exercia um efeito disruptivo e curiosamente desalentador para tais mulheres. Um bom exemplo de como a emergência da mulher, como categoria política, não implica, necessariamente, identidade de funcionamento. Eqüidade não se confunde com igualdade, assim como o direito subjetivo distingue-se do direito objetivo. Logo o repúdio à feminilidade não deveria sobrepor-se à exclusão social da mulher. Aliás, nesse contexto, observa-se o fenômeno inverso, ou seja, a feminilização geral da cultura, em seu modo ideológico, a serviço de técnicas de exclusão e opressão social. O discurso da flexibilização das relações de trabalho, da estetização da política, da proteção da criança, da evitação do risco, muitas vezes assume a forma progressista para justificar práticas ainda mais autoritárias e ainda menos eqüitativas.
Isso nos leva à segunda perspectiva, na qual o progresso social do narcisismo das pequenas diferenças funciona como repúdio calculado do narcisismo das "grandes diferenças". Aqui Green parece caminhar ao lado de Lacan no posicionamento da questão, ou seja, distinguindo a diferença proveniente do antagonismo entre a pulsão erótica e a destrutiva (o sexual e o Real), da diferença proveniente da antinomia entre identificações femininas e masculinas (a inscrição fálica e a inscrição não-toda fálica). Ou seja, ambos percebem um problema na junção entre a teoria freudiana da bissexualidade e a tese da premissa universal do falo. Esta dualidade trabalha longitudinalmente nas propostas de Green. Por exemplo: a paranóia masculina é uma luta em duas frentes: contra a feminilidade e contra a hostilidade. Paranóia e histeria afinizam-se na vacilação da identificação feminina, ressexualizando relações sociais como forma de redestinar a agressividade, suturando a diferença entre os sexos pela uniformidade do sentimento amoroso ou odioso. Esse dualismo real-sexual, feminino-masculino, encontraria sua solução de irreversibilidade e irredutibilidade na anatomia: homens não podem ter filhos, mulheres não podem inseminar (114). Daí que seja tão importante para Green a retomada da diferença entre realidade interna e realidade externa, com este importante adendo de que a realidade externa é, sobretudo, social.
O repúdio à feminilidade, pensado no contexto dos laços sociais, terá uma solução parcialmente homóloga em Lacan. Penso aqui na afirmação de que o progresso das relações conjugais tende a instituir uma homo-sexualidade. Homo refere-se aqui não à escolha de objeto do mesmo sexo, mas à unificação neutralizadora da sexualidade. Homo, portanto, no sentido de ser humano, como categoria universal com exclusão da diferença sexual. É uma condensação das formulações freudianas sobre a mais generalizada degradação (Erniedrigung) do objeto na vida amorosa. Esta homo-sexualização implica uma espécie de hipertrofia da confiança na universalidade do falo. Uma única lei que incidiria de forma eqüitativa (na economia do desejo - erótico-agressiva) e igualitária (na economia do gozo - masculino-feminino). Ora, é esta exclusão da bissexualidade, como forma não complementar da relação entre os sexos, que retorna de modo deformado na paranóia. Retorno agressivo na persecutoriedade, pela unificação amorosa-odiosa, e retorno identificatório, pela unificação da feminilidade em Uma mulher.
A noção de homo-sexualização encontra vários sucedâneos na teoria social. Ela não se verifica apenas nas relações conjugais, mas no processo mais extenso de regulamentação e administração da vida, na perda da experiência e da pessoalidade nos laços sociais. Poderíamos assim associar o repúdio da feminilidade, como processo social, à paranóia sistêmica cujo melhor exemplo é a vida nas instituições ou ainda a vida presidida pelo que chamo de lógica do condomínio, caracterizada pela razão cínico-burocrática, pela proliferação de regras e regulamentos, pela falsa paridade entre eqüidade e igualdade.
Esta forma específica de bio-poder parece ter uma incidência particular na mulher, no que diz respeito à paranóia sistêmica. Uso o termo para distingui-lo da paranóia clínica (kraepleriana) e da paranóia como posição (Klein). A paranóia sistêmica aproxima-se do que Lacan chamou de paranóias do superego, cuja principal característica é sua curabilidade. De fato sua cura aparentemente depende de certos "atos" capazes de articular pulsões agressivas (insuficientemente socializadas) e formações de ideal (capazes de gerar uma desidentificação). Mas "articular" não quer dizer aqui unificar, mas separar simbolicamente (síntese disjuntiva) a diferença entre o sexual e o real, da diferença entre masculinidade e feminilidade. Saliente-se o fato de que Lacan isolou duas formas dessa paranóia: a forma autopunitiva e a forma reivindicatória. Ele demonstrou clinicamente seu funcionamento em dois casos de mulheres (Aimée e o Caso da Esposa Enfurecida). Das inúmeras diferenças entre esses dois tipos clínicos destaco uma que aparece na tese de Green acerca das relações entre paranóia e histeria, a saber: a ressexualização das relações sociais em relação com a agressivização de si. Na paranóia de auto-punição, o ato tem a finalidade de punir a si, mas através do outro (masoquismo-sadismo). Aimée agride a atriz, pois esta é uma forma Ideal de si, que é sentida como já concluída. Aimée separa-se dessa identificação através do ato. Na paranóia de reivindicação, ao contrário, o ato tem a finalidade de punir ao outro, mas através de si (sadismo-masoquismo). A esposa enfurecida atira contra o marido que expoliava seu dinheiro e quando ela é presa isso age como prova concluída de que o marido é covarde, preguiçoso, egoísta, falso e, sobretudo, mau. A esposa enfurecida mantém a identificação ao marido, mas separa-se da culpa intra-agressiva pela perda de sua própria filha (ela atira em seu pescoço, mesmo lugar da doença letal da filha).
Ambas realizam uma ressexualização de laços sociais (com a atriz e com o marido, neste contexto sócio de um empreendimento imobiliário). Ambas são hipermorais em seus atos. Ambas atacam a unificação entre o sexual-agressivo e o identificatório. Contudo, há uma diferença interessante acerca da conotação que a idéia de laço social traz em cada caso. Lacan argumenta que na paranóia de auto-punição o sujeito, via de regra, sai-se de modo eficaz no contexto social-profissional e apresenta disfuncionamentos, lentificações e errâncias no contexto materno-sexual. Na paranóia de reinvindicação dá-se o contrário. O sujeito apresenta adequação e adaptação ao contexto materno-sexual e sérias dificuldades de inscrição na cena social-profissional.
Relativizadas em formas da paranóia sistêmica, esses dois tipos clínicos talvez nos ajudem a pensar por que a freqüente dificuldade das mulheres em conciliar trabalho e vida familiar ou, inversamente, mas não de forma excludente, laço social e experiência erótica, deriva não apenas de injunções sociológicas (geralmente formuladas de modo abstrato), mas também da resistência salutar, ou de uma tentativa de cura possível, para a primazia da formalização no laço social de nossa época.
SILVIA LEONOR ALONSO
Grandes são as mudanças que o século xx e o início do xxi implicaram para o lugar social da mulher. A mulher do século xix tinha o seu espaço de atuação reduzido ao lar, onde, nos cuidados da casa e na educação dos filhos, exercia o seu reinado. O espaço público, o poder político e econômico eram reservados aos homens.
Essa realidade certamente mudou, as mulheres foram ocupando os espaços do trabalho e das decisões, conseguindo lugares de fala, autonomia para suas vidas e independência econômica. As mudanças no exercício da sexualidade foram muito grandes e o acesso aos anticoncepcionais fez um corte entre a vida sexual e a procriação. Mais recentemente, as técnicas de reprodução assistida introduziram mudanças significativas na relação da mulher com o desejo de ter um filho.
Sabemos que a subjetividade se constitui num determinado momento histórico, totalmente atravessada pela história e imersa no mal-estar civilizatório. Os novos lugares sociais e as novas tecnologias introduziram mudanças nos discursos sobre as mulheres e modificaram o imaginário social sobre o feminino. O erotismo foi incluído neste imaginário. A inclusão da sensualidade, da sedução e do prazer abriu para as mulheres a possibilidade de desfrutar da sexualidade e do corpo. A atividade e a agressividade foram tendo lugar na educação das meninas e no mundo do trabalho passaram a ser condições não só permitidas mas também exigidas para as mulheres.
Os novos lugares, quer sejam lugares sociais ocupados ou lugares incluídos no imaginário, abriram para as mulheres novos caminhos identificatórios e novos destinos para a pulsionalidade. Abriu-se o leque de gratificações para o narcisismo e reformularam-se os ideais.
No novo momento da história, os aprisionamentos que trazem sofrimento para as mulheres são outros. Na clínica, escutamos as adolescentes pressionadas pelo mandato de gozar que se lhes impõe superegoicamente, solicitadas que estão a experimentá-lo todo, sem postergação, sem poder desperdiçar qualquer experiência que acene com a possibilidade de prazer. Condição na qual fica difícil sustentar um espaço para reconhecer o próprio desejo. Escutamos as mulheres mais novas, e também as que não são tão jovens, sofrendo com a exigência de ter um corpo perfeito colocada permanentemente pelo discurso midiático. Corpo fetichizado, capturado no ideal narcisista da pura imagem, que pressiona a todos - principalmente as mulheres - e produz sintomas.
Perante a maternidade, escutamos as mulheres sentirem-se, de um lado, tendo logrado liberdade maior para exercitar o seu desejo de ter filho que se configurou mais claramente como escolha, na medida em que não é o único caminho possível. Liberdade vigiada, no entanto, já que as próprias condições de vida e de trabalho vão tornando cada vez mais difícil para as jovens abrirem um espaço possível para serem mães. As escutamos queixarem-se até o cansaço da tpm ou da depressão na menopausa, termos que lhes foram oferecidos para expressar, numa total condensação, as dificuldades para processar algumas passagens.
As mudanças nos vínculos, nas organizações familiares, nos discursos sobre a sexualidade introduziram mudanças na subjetividade, fazendo surgir novas formas de as neuroses se apresentarem na clínica, e também novas formas de vivenciar os momentos de passagem: adolescência, gravidez, menopausa. As formas em que se apresentam as histéricas se transformaram, a presença cada vez mais freqüente das obsessões nas mulheres é tema entre os analistas, os distúrbios alimentares que viraram epidemias têm mobilizado esforços grandes de entendimento sobre as teorias e as formas de trabalho etc.
Quer isto dizer que tudo mudou? Certamente não.
A sexualidade, para a Psicanálise, constitui-se num complexo de articulações entre as moçõesdesejantes e os mandatos que provêm do mal-estar civilizatório que se combinam e se ressignificam. A identidade de gênero e a sexualidade se entrecruzam, construindo um complexo sistema sexo-gênero, mas certamente a identidade de gênero não recobre toda a identidade sexual e esta por sua vez não abrange todo o sexual.
As categorias de homens e mulheres são definidas a partir do sexo biológico, do corpo com o qual se nasce e que é lido desde a cultura, a qual ordena os corpos por meio de uma bipartição, incluindo-os numa das duas categorias: homens ou mulheres. Por sua vez, essa mesma cultura fornece as atribuições de gênero com as quais a criança se identifica, passando a pertencer a uma das categorias e construindo sua identidade de gênero.
A identidade sexual se constitui no processo de sexuação que, sabemos, é complexo, sujeito a vicissitudes de percurso que são específicas para cada um dos sexos, com complicações nem maiores nem menores, mas certamente diferentes para ambos. Todos conhecemos e certamente não vou repetir aqui as especificidades que Freud estudou nesses processos.
Mas, além disso, a sexualidade na psicanálise não se reduz ao ordenamento do masculino/feminino. A diferenciação dos sexos é tardia e antes desta o perverso polimorfo ocupa a cena. No que se refere à constituição psíquica e ao surgimento da sexualidade, as coisas não mudaram. A forma de constituição do sexual continua sendo traumática, implantada pelo adulto que erogeniza e limitada pela cultura, responsável por limitar o gozo do adulto que poderia aprisionar o corpo da criança. A situação assimétrica, tanto sexual quanto simbólica, entre o adulto e a criança, se mantém como tal e, portanto, o Édipo continua sendo o eixo ordenador da construção da alteridade e da relação amorosa com o outro, além de origem do desejo, na medida em que neste retorna aquilo que começou com a sexualidade do adulto. Ainda que devamos diferenciar o Édipo, hoje, das formas de subjetividade a partir das quais foi inicialmente pensado. Mudou o que é da ordem da subjetividade, mantém-se o que é a forma em que o psíquico e a sexualidade se constituem.Assim como as vicissitudes específicas para cada um dos sexos no processo de sexuação.
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