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Resumo
O presente artigo traz uma articulação entre o conceito winnicottiano de espaço potencial e fragmentos de experiência clínica num grupo com crianças. Analisa a função do grupo em constituir um espaço no qual tem papel de destaque o brincar. Este é considerado como capacidade que se desenvolve sob condições favoráveis do ambiente relacional, num espaço de relaxamento, confiança, criação e compartilhamento.


Palavras-chave
grupo terapêutico; psicanálise com crianças; Winnicott; espaço transicional.


Autor(es)
Michele Araújo Santos


Notas
1    Esta é uma versão ligeiramente modificada do texto que apresentei à equipe do cppl, por ocasião da conclusão do curso de formação em psicoterapia na mesma instituição, em fevereiro de 2007. Meus sinceros agradecimentos a toda a equipe, em especial a Ana Elizabeth Cavalcanti, Juliana Cáu e Maria Helena Barros, minhas principais interlocutoras quando da escrita deste trabalho.
2    D. W. Winnicott. O brincar e a realidade, p. 76.
3    D. W. Winnicott, op. cit., p. 76
4    Às crianças foram atribuídos nomes fictícios, de forma a garantir-lhes o anonimato.
5    M. Santos, “A constituição do mundo psíquico na concepção winnicottiana: uma contribuição à clínica das psicoses”.
6    M. Santos, op. cit., p. 3.
7    D. W. Winnicott, op. cit., p. 97.
8    D. W. Winnicott, Da pediatria à psicanálise, p. 327.
9    D. W. Winnicott, Da pediatria…, p. 325.
10    D. W. Winnicott, O brincar…, p. 80.
11    D. W. Winnicott, O brincar…, p. 83.
12    D. W. Winnicott, O brincar…, p. 95.
13    D. W. Winnicott, O brincar…, p. 75.
14    A. Prado, Poesia reunida, p. 199.
15    A imagem do jogo de frescobol foi inspirada na leitura do texto “Tênis x Frescobol”, no livro O retorno e terno de Rubem Alves (2000).
16    D. W. Winnicott, O brincar…, p. 93.


Referências bibliográficas
Prado A. (1991). Poesia reunida. São Paulo: Siciliano.
Santos M. A. (1999). A constituição do mundo psíquico na concepção winnicottiana: uma contribuição à clínica das psicoses”, Psicologia: Reflexão e Crítica, v.12, nº. 3, Porto Alegre. Disponível em:.
Winnicott D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.
_____. (2000). Da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Imago.




Abstract
This paper presents a connection between Winnicott’s concept of an intermediate zone and some extracts from a clinical experience with a group of children. The activities of the group provide a space for playing, considered as a capacity that develops in a social environment and favors relaxation, trustworthiness, creation and sharing.


Keywords
therapeutical group; child psychoanalysis; Winnicott; transitional area.

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 TEXTO

Grupo terapêutico com crianças e a configuração do espaço potencial

Therapy groups with children and configuration of potential space
Michele Araújo Santos

O presente artigo é fruto de indagações nascidas de minha experiência como aluna de formação e, mais precisamente, como co-terapeuta num grupo com crianças no cppl – Centro de Pesquisa em Psicanálise e Linguagem – instituição que há 25 anos trabalha com crianças portadoras de transtornos graves de desenvolvimento, no Recife.

Nos grupos terapêuticos conduzidos nessa instituição, o brincar assume um lugar privilegiado, constituindo-se como modalidade terapêutica por excelência, sendo uma atividade que partilha com situações cotidianas elementos comuns, referentes ao contexto cultural – no cenário terapêutico se brinca de boneca, esconde-esconde etc. – mas que também possui componentes singulares, devido a características das crianças e dos terapeutas. As crianças, em geral, se encontram com a capacidade de brincar prejudicada em diversos graus e assim necessitam da mediação dos adultos para que o espaço lúdico se configure; os terapeutas, por sua vez, possuem uma escuta diferenciada das situações do grupo, norteada por concepções psicanalíticas.

A partir desse contexto, surgiu a pergunta: por que afinal o brincar tem lugar de destaque na análise de crianças? Quais os seus efeitos terapêuticos? Mais especificamente, qual a perspectiva que fundamenta a utilização do brincar como atividade terapêutica, nessa instituição?

Essas indagações me levaram a encontrar a teoria winnicottiana, em particular a noção de espaço potencial e suas articulações com o conceito de criatividade e a constituição do self, que pretendo desenvolver aqui. Tais temas estão ilustrados por fragmentos clínicos. As questões sobre o papel que o grupo terapêutico exerce no desenvolvimento da capacidade de brincar e as implicações desta para o psiquismo também serão tratadas, dentro da mesma linha teórica, entrelaçando-se ao relato de observações de uma criança acompanhada nesse grupo.


Uma breve apresentação de nosso grupo


O grupo do qual participei, durante seis meses, na condição de co-terapeuta – e em parceria com outras duas terapeutas –, era formado por quatro crianças, dois meninos e duas meninas, de idades variando entre 7 e 10 anos. Surpreendentes, como qualquer criança; no entanto, ao contrário de outras, passavam por sérias dificuldades no caminhar em direção ao pleno desenvolvimento de si mesmas. Nas sessões semanais, brincávamos com elas, de modo livre e espontâneo. Seja você mesma, foi uma das recomendações que recebi antes de ingressar no grupo, tarefa aparentemente simples, mas que requer uma boa dose de esforço e desprendimento de alguns ideais. O que me provocou certo espanto, logo nos primeiros contatos com as crianças, foi perceber que todas elas traziam algum comprometimento mais ou menos acentuado em sua capacidade para estabelecer, desenvolver e partilhar brincadeiras. Àquela época, eu tinha o brincar como uma atividade própria a todas as crianças, mas aos poucos aprendi, com Winnicott, que o brincar é uma capacidade que se desenvolve sob certas condições favoráveis do ambiente relacional do bebê, num espaço próprio, de relaxamento, confiança, criação e compartilhamento.


Winnicott e a noção de espaço potencial


Pode-se dizer que o conceito de espaço potencial – ou espaço transicional – de Winnicott é uma de suas mais originais e ricas contribuições à teoria psicanalítica. Designa uma zona intermediária da experiência humana, um espaço entre a realidade dos objetos percebidos como externos ao sujeito (realidade objetiva, compartilhada) e o mundo interno, da realidade psíquica do sujeito. Está presente no brincar das crianças, no bom humor dos adultos e em todas as atividades humanas, desde que se tire proveito da dimensão lúdica da vida. Caracteriza-se por ser uma experiência na qual se suspende a pergunta: Fui eu quem criei esse objeto ou ele existe fora de mim? Assim, é preciso aceitar o paradoxo, expresso por Winnicott: “Essa área do brincar não é a realidade psíquica interna. Está fora do indivíduo, mas não é o mundo externo”.

A criança que brinca de faz-de-conta, por exemplo, está usufruindo desse espaço intermediário quando usa elementos da realidade externa para encenar temas de interesse referente ao mundo interno, isto é, “traz para dentro dessa área de brincadeira objetos ou fenômenos oriundos da realidade externa, usando-os a serviço de alguma amostra derivada da realidade interna ou pessoal”.

Lembro-me de Cecília, que passiva e benevolentemente deixava que os colegas lhe tomassem os brinquedos, sem protestar ou se impor. Nas sessões, divertia-se desenhando e inventando, com as terapeutas e colegas, estórias de princesas e bruxas, personagens que apareciam repetidamente em suas brincadeiras. Quase sempre Cecília optava por ser a princesa da estória.

De forma a entendermos a importância do construto winnicottiano, é preciso nos remeter ao lugar que os fenômenos transicionais ocupam no desenvolvimento emocional primitivo. Segundo Santos, a teoria winnicottiana propõe que a criança transita, na relação com a mãe, de  um estado de fusão e dependência absoluta até um estado de autonomia, em que a mãe é percebida como objeto externo.
 
O objeto transicional sinaliza a mudança de um estado para  outro, assume o lugar de primeira possessão não-eu, algo que já não faz parte da criança, mas também não é ainda absolutamente externo a ela.

Os fenômenos e objetos transicionais ocupam um lugar intermediário entre o mundo subjetivamente concebido e aquele objetivamente percebido. Num primeiro tempo, de dependência absoluta, o bebê experiencia a si mesmo de maneira indiferenciada do ambiente, ou seja, ele e o ambiente (representado pelos objetos do mundo físico, sensações, corpo e cuidados maternos) são vividos como uma unidade e a realidade não é apreciada de maneira objetiva, como algo destacado e externo ao bebê, mas é subjetivamente concebida como invenção sua. Os cuidados maternos, quando suficientes e adequados às exigências do bebê, o protegem de uma apresentação precoce ao mundo enquanto externo e incrementam o sentimento de onipotência deste, quando ele cria exatamente aquilo que está ali para ser encontrado; isto é, a mãe adequadamente identificada com as necessidades do bebê oferece o objeto de satisfação que será concebido pela criança como invenção sua. Ainda conforme Santos, o meio ambiente, quando cumpre sua função de adaptação ativa às necessidades infantis, promove um espaço de isolamento imperturbado, permitindo assim que o bebê possa desenvolver uma vida de fantasia, e posteriormente processos de pensamento. O bebê, protegido de intrusões, nesse meio ambiente acolhedor, pode se entregar à experiência espontânea.

“Se tudo correr bem, o meio ambiente é descoberto, sem que haja uma perda do sentido de self”.Quando tudo vai bem, ou seja, quando temos uma mãe suficientemente boa que pode identificar-se de maneira benigna e adaptar-se ao bebê, evitando um contato precoce e traumático com a realidade externa, este pode experimentar um sentimento de continuidade do self. Pode então desenvolver a capacidade de brincar, através da utilização do espaço e objetos transicionais, principalmente se existe uma mãe que oferece sua própria ludicidade para a criação desse espaço relacional. Quando as coisas não vão bem, isto é, se surgem falhas na adaptação materna (dificuldades em intuir as necessidades de seu filho e responder adequadamente a elas), e o bebê experimenta longos períodos de privação ou intrusão ambiental, ocorre uma perda no sentimento de continuar a ser; isso obriga o bebê a reagir às intrusões, defendendo-se delas de diversas maneiras. Em linhas gerais, de acordo com Winnicott, tais defesas contra as intrusões levariam à constituição de dois tipos de pessoas adoecidas: aquelas para quem a realidade confunde-se com um fenômeno subjetivo (psicose) e aquelas tão fortemente ancoradas no mundo objetivo que perdem o contato com o mundo subjetivo; ou seja, perde-se a possibilidade de comunicação entre o mundo interno e externo, psique e ambiente, que é dada pelo espaço intermediário.

Com o tempo, a adaptação ativa da mãe gradualmente diminui, à medida que aumenta a capacidade do bebê de tolerar frustrações. A frustração se faz necessária num dado momento do desenvolvimento para que os objetos ganhem estatuto de realidade, uma vez que, segundo Winnicott, a adaptação perfeita está próxima da magia, e um objeto mágico é alucinatório, não real.

De onde surge a necessidade, na teoria winnicottiana, de um construto que represente um terceiro campo de experiência, entre o subjetivo e o objetivo? O autor pressupõe que o contato com a realidade é sempre traumático, implicando a perda da ilusão de onipotência, e necessita ocorrer de forma gradual e de acordo com as possibilidades de apreensão do mundo pelo bebê. Pressupõe ainda que vivemos em permanente tensão, a nos questionar sobre a natureza dos fenômenos, se subjetiva ou objetiva. Assim, entre essas duas dimensões, ele insere uma terceira, de repouso do teste de realidade: o espaço potencial. Entre a realidade subjetivamente concebida e a realidade compartilhada (objetiva) se interpõe um espaço de experimentação e repouso, em que o bebê faz uso de objetos transicionais. De acordo com Winnicott,

o objeto transicional não é um objeto interno (um conceito mental), ele é uma posse. No entanto (para o bebê) ele tampouco é um objeto externo. […] O objeto transicional não está nunca sob um controle mágico como o objeto interno, nem se encontra fora do controle como a mãe real.

Brincar: lugar de criatividade e descoberta do eu

É no brincar, e somente no brincar, que o indivíduo, criança ou adulto, pode ser criativo e utilizar sua personalidade integral: e é somente sendo criativo que o indivíduo descobre o eu (self).

[Winnicott]

O ato criativo, para acontecer, necessita de um ambiente de relaxamento, confiança, para que o sujeito possa expressar-se livremente; a soma dessas experiências forma a base, o sentimento do eu, isto é, o indivíduo sente-se ele próprio quando executa um gesto criativo. É num ambiente relacional, em que o indivíduo recebe de volta a comunicação espontânea feita ao outro (terapeuta, por exemplo), que ele “pode reunir-se e existir como unidade […] como expressão do eu sou, eu estou vivo, eu sou eu mesmo. Nesse posicionamento tudo é criativo”.

Criatividade, aqui, não significa necessariamente a criação artística bem-sucedida, mas uma forma de abordar a realidade em que toda atitude ganha um colorido próprio da vida imaginativa; sob essa ótica, qualquer atividade pode ganhar as cores do agir criativo. O espaço transicional funciona assim como uma espécie de ponte, de elo entre o mundo subjetivo e objetivo, proporcionando um sentimento de autenticidade na existência e de um viver criativo, fértil. Sem a possibilidade de viver o espaço potencial, de ilusão, o indivíduo não poderia estabelecer contato entre a psique e o ambiente nem experienciar o si-mesmo (self).

Pretendo agora ilustrar, a partir de recortes clínicos, a forma como o grupo terapêutico oferece a possibilidade de construção de um espaço intermediário, onde o brincar criativo possa se instalar. O relato que se segue expõe três momentos distintos da participação de um garoto no grupo, nos quais se percebe um movimento que vai do não se arriscar a brincar, passando por um brincar tímido, até uma atividade solta e espontânea.

Nas sessões com o grupo de crianças, algumas brincadeiras de faz-de-conta se constituem como as preferidas: salão de beleza, restaurante, consultório médico e outras. Cecília, Roberta e Eduardo se engajam com prazer nas brincadeiras, mas Victor sempre parece apresentar algum desconforto.
Numa certa tarde de brincadeiras, Roberta, como uma mãe malvada, passou o ferro quente na barriga de sua bebê, Naná (boneca que costuma levar com freqüência ao grupo). Nós, terapeutas, pedimos com urgência a presença de um médico para cuidar das queimaduras da criança e sugerimos que Victor fosse o doutor, mas ele recusou, aborrecido, dizendo que não queria brincar disso. Preferiu buscar no armário o jogo da “Pizza Maluca” e pôs-se a jogar sozinho. Nesse jogo, os participantes lançam dados e movem suas peças num tabuleiro. No trajeto, adquirem ingredientes para montar suas pizzas. Vence o jogo quem terminar a montagem primeiro. Depois de algum tempo, Cecília resolve brincar de restaurante e atrai os outros colegas para a mesa em que Victor está. Uma das terapeutas se dirige a ele e pergunta se nesse restaurante são servidas pizzas. Irritado, o garoto grita: – Isso não é uma brincadeira, é um jogo!

Pode-se perceber que, nesse encontro, foram feitos alguns convites a Victor para ingressar num espaço lúdico, mais livre, mas todos foram recusados. A simples aproximação das crianças com o “restaurante” foi um convite para que Victor transformasse seu jogo tão cheio de regras num brincar mais solto e criativo, apelo que se somou ao pedido mais explícito feito por uma das terapeutas, para que servisse pizzas no restaurante. Lembro-me aqui de Winnicott, quando diz que “o brincar é sempre passível de tornar-se assustador. Os jogos e sua organização devem ser encarados como parte de uma tentativa de prevenir o aspecto assustador do brincar.”

O brincar, com a liberdade que oferece, em termos de deixar fluir a energia pulsional, parecia assustador para Victor, e precisava ser controlado. Jogar, então, era mais seguro. As regras fixas do jogo serviam de contenção à vida pulsional, assim como o “cessa da brincadeira” é uma forma de garantir às crianças que as lutas de espada no faz-de-conta não vão machucar de verdade.

Ao longo das sessões, tornou-se mais comum que Victor aceitasse timidamente – meio sem jeito e sem vontade – o chamado para brincar, chegando a divertir-se, até que, num dado momento, quebrava a dimensão da ilusão, trazendo o juízo da realidade.

Uma das terapeutas trazia sua filhinha para o Doutor Mendonça, nome que demos a Victor na brincadeira: o bebê estava vomitando e fazendo muito cocô mole. Victor divertia-se com todas essas sujeiras que os bebês fazem, mas num certo instante, comentou: – Isso não é um bebê, é só uma boneca, e bonecas não fazem cocô! A terapeuta então replicou: – Bonecas, não, mas a minha filhinha faz, sim!

Aqui, o menino fez a pergunta que não podia ser feita, quando se quer manter a dimensão transicional viva: esse objeto é interno ou externo? Seus olhos saíram de um “estado de poesia”, perderam o poder de metaforizar, de transfigurar os artefatos da realidade em objetos “entre”, a meio caminho entre o dentro e o fora. Ele olhou para uma boneca e só pôde ver uma boneca. A terapeuta quis trazê-lo de volta ao espaço intermediário quando tentou emprestar sua capacidade de brincar e o convidou a olhar além, a voltar para o ambiente lúdico, onde as perguntas sobre a realidade subjetiva ou objetiva das coisas são suspensas. Adélia Prado, em seu poema “Paixão”, fala desse estado de poesia:

De vez em quando Deus me tira a poesia.
Olho pedra, vejo pedra mesmo.
O mundo, cheio de departamentos, não é a bola
            bonita caminhando solta no espaço.

Em outra sessão, o garoto consegue sentir-se mais à vontade para brincar, principalmente quando conta com a mediação das terapeutas.

Victor manipula bolas coloridas de um jogo de encaixe e uma das terapeutas, sabendo de seu interesse pelo personagem Harry Potter, aproveita para falar sobre bruxos e suas poções mágicas, cujas receitas são secretas. – Os bruxos não dão as receitas de suas poções, são segredos que guardam a sete chaves, diz a terapeuta, ao que ele completa: – Segredos muito íntimos.

Cecília resolve sentar noutra mesa para brincar de salão de beleza. A terapeuta diz que ficar perto da casa de bruxarias é meio assustador; ela vai então com Cecília para a outra mesa e eu me aproximo de Victor. Pergunto quais as poções que ele tem, mas não tenho resposta. Peço uma poção para deixar os cabelos mais longos e bonitos. Ele me dá a poção dizendo que devo tomar na medida certa, apenas três gotinhas. Curiosa, pergunto: – E se eu tomar mais dessas? Será que viro um lobisomem? Ele gosta da idéia, e diz que sim.

Chegam Cecília e a terapeuta para pedir loção capilar, e a menina põe a mão no jogo de bolas. A terapeuta alerta: – Cuidado, são as substâncias mágicas! Se a senhora toca em alguma, vira sapo! E a brincadeira vira essa, a menina a tocar nas poções perigosas e a se transformar em sapo, além de surgirem dragões e serpentes dos frascos. Victor diz que existe um antídoto (a bola azul) para voltar ao normal e dá a Cecília. Ela toma o conteúdo do frasco e “Ufa!”, dizemos todos, “Tudo voltou ao normal”.

Nessa sessão, ele consegue embarcar na brincadeira, ancorando-se na história de Harry Potter, de que tanto gosta, e na capacidade de brincar dos colegas e terapeutas, que compartilham com ele porções de suas vidas imaginativas. Aqui ele já consegue dar melhor vazão à espontaneidade, e pode contribuir com o enriquecimento da brincadeira, ao trazer a medida de três gotinhas da poção, e o antídoto contra feitiços, conteúdos que são prontamente incorporados pelo grupo e transformados em coisas novas a partir da contribuição de todos, num movimento contínuo. Victor pode, nessa sessão, expressar alguns dos seus “segredos muito íntimos”, e talvez aqui resida um dos sentidos da expressão: sua própria vida imaginativa, que fica em segredo, oculta, na maior parte do tempo, mas que ele pode, dessa vez, colocar em contato com elementos da realidade externa e compartilhar com os outros. Que alívio poder desprender-se da aridez do real e adentrar o terreno fértil do faz-de-conta!
A imagem que me vem à mente quando penso numa forma de nomear esse momento do brincar em grupo é a de um jogo de frescobol – com a ressalva que aqui cabem mais de dois participantes – em que cada jogador reconhece o gesto do outro, acolhe-o e o devolve, já transformado por sua própria ação. Se a bola cair, o jogo termina. Deixar a bola cair, no grupo, é deixar se romper o espaço potencial, de criatividade, espontaneidade e comunicação entre seus membros. A psicoterapia define-se, para Winnicott, como a superposição de duas áreas do brincar: a do terapeuta e do paciente; quando um dos dois não é capaz de brincar, algo deve ser feito antes que qualquer trabalho se inicie. O que vemos nos grupos terapêuticos é um verdadeiro partilhar da capacidade criativa, um brincar tecido a várias mãos.

Este autor entende que o brincar em si mesmo traz efeitos terapêuticos, na medida em que a criança expressa o que possui de mais singular, e pode existir como um sujeito criativo, autêntico e espontâneo. Nesse sentido, a psicoterapia não demanda muita interpretação, pois a atividade lúdica em si tem um efeito autocurativo. Como acontecia com Roberta, nesse grupo, de encenar com sua filhinha Naná, na fantasia, o que lhe ocorria na relação com sua mãe real; a relação muitas vezes difícil e áspera entre as duas.

A teoria winnicottiana sempre frisou que o indivíduo não existe sem o ambiente ao seu redor, materializado nas condições físicas e relacionais (qualidade, freqüência, afetividade dos cuidados e contatos humanos). Dessa forma, é o ambiente que constrói, junto com a criança, a dimensão do brincar criativo, da vitalidade no existir, do sentimento de si-mesmo. Quando por algum motivo o ambiente original falha na configuração desse espaço, é o ambiente terapêutico que muitas vezes assume essa tarefa. Os relatos clínicos anteriores exemplificam essa função do grupo de psicoterapia.
O procedimento terapêutico, dentro dessa abordagem, consiste em:

[…] propiciar oportunidade para a experiência amorfa e para os impulsos criativos, motores e sensórios, que constituem a matéria-prima do brincar. É com base no brincar que se constrói a totalidade da existência experiencial do homem […] Experimentamos a vida na área dos fenômenos transicionais, no excitante entrelaçamento da subjetividade e da observação objetiva, e numa área intermediária entre a realidade interna do indivíduo e a realidade compartilhada do mundo externo aos indivíduos.

O grupo de psicoterapia tem então essa função da mãe-ambiente, que empresta sua própria vida imaginativa para a construção de um espaço onde a vida, de fato, aconteça.

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