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Resumo
Desde Freud até o presente, a busca de uma atitude do analista que propicie uma abertura maior para seu inconsciente e através deste para o inconsciente do analisando tem sido nosso grande desafio. Nesse texto tento expor ao leitor como compreendo e como parece se manifestar essa atitude em minha experiência clínica – falando o que me vem à cabeça.


Palavras-chave
Freud; Bion; Matte-Blanco; inconsciente; infinito; bi-lógica.


Autor(es)
Ignácio Gerber


Notas
1    D. Schiller, The little zen companion, p. 32.
2    Lao-Tsu, Tao Te King – poema 1.
3    L. C. Figueiredo, “A questão do sentido, a intersubjetividade e as teorias das relações de objeto”, p. 79-88.
4    I. Matte-Blanco, Thinking, feeling and being, p. 85.


Referências bibliográficas
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Schiller D. (1994). The little zen companion. New York: Workman publishing.




Abstract
Since Freud, analysts have searched for attitudes which may favor contact with their own unconscious, as well as with the unconscious of other people. This has been a great challenge to our practice. In the present paper, the author exposes how he tries to cope with it in his clinical practice.


Keywords
Matte-Blanco; unconscious; infinite; bi-logic.

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 TEXTO

O jogo do inconsciente

falando o que me vem à cabeça


The game of the unconscious
saying what comes to my mind
Ignácio Gerber

A gloriosa manhã em minha janela me satisfaz mais do que a metafísica dos livros.
[Walt Whitman]

Um problema matemático só estará resolvido quando você for capaz de explicá-lo ao primeiro homem que encontrar na rua.
[D. Hilbert (1900)]

Às vezes me ocorre chamar o processo ou o encontro psicanalítico de Jogo do inconsciente…

Para falar desse jogo e como eu o imagino, parece-me importante que eu me exponha ao leitor em minha atividade clínica; eu diria melhor, em minha atitude clínica, pois penso que muito além das conjecturas teóricas, é a atitude do analista que funda a clínica psicanalítica, com a proposta freudiana das atitudes indissociáveis de atenção flutuante – associação livre. E quando falo em atitude psicanalítica estou falando de ética psicanalítica; como se fosse um outro nó borromeano, entrelaçam-se nessa ética as atitudes diante de si, diante do outro, diante do mundo; o eu, o tu, o nós. Atitudes que extrapolam o setting do consultório, pois o psicanalista carrega o setting consigo, em si mesmo, onde quer que ele esteja; se quisermos imaginar como é um analista em sua clínica, basta observá-lo no seu dia-a-dia. Por mais que um analista procure se disciplinar em seu consultório, isto será apenas uma aproximação à atitude de atenção levitante proposta por Freud; na prática da psicanálise, do jogo do inconsciente, a condição essencial é ser. Psicanálise se pratica sendo o que se é.

É muito importante diferenciar o ser do analista do fazer do analista. É evidente que o fazer psicanalítico do analista no consultório se diferencia do seu fazer fora dele em qualquer atividade cotidiana, inclusive psicanalítica. O que estou propondo pensar é que o ser psicanalítico do analista em sua impermanente fluência é de algum modo o mesmo. Molhamos os pés em diferentes águas, mas o rio que flui é o mesmo – citação de Heráclito contra a corrente.

Ao postular o sistema inconsciente como nossa mais verdadeira e profunda realidade psíquica, Freud “inventa” a psicanálise, sua teoria, sua prática, seu método. Uma teoria acerca do nosso funcionamento psíquico e que se desdobra em várias conjecturas histórico-biológico-genéticas, tais como o complexo de Édipo, a sexualidade infantil, a mitologia das pulsões etc. etc. Ao mesmo tempo, Freud propõe uma praxis, um método que nos permita alguma via de acesso ao nosso próprio inconsciente e através dele também possibilite alguma comunicação com o inconsciente alheio. Esse método baseia-se na atitude psicanalítica por ele nomeada atenção flutuante ou atenção livremente suspensa por parte do analista e o convite ao analisando para que associe livremente. Na verdade, atenção flutuante e associação livre são indissociáveis e concernem tanto ao analista quanto ao analisando. Ora, para que o analista possa flutuar livremente (a imponderável leveza do ser) por sobre a fala emocionalmente viva de seu analisando, é preciso que possa se desapegar de seus preconceitos e expectativas pessoais. Mas além, desapegar-se de sua racionalidade consciente; acompanhar a fala do outro sem qualquer seletividade, colocando-se numa posição outra em relação a si mesmo, algo entre o pessoal e o impessoal, entre o consciente e o inconsciente. Uma posição terceira onde ele transite sincronicamente entre os papéis de protagonista e observador. Penso que esta é uma atitude ética de respeito à relação humana que acontece e se transmuta no aqui-agora com nosso analisando. A relação transcende o eu e o outro, e nos movimenta; o verbo deve prevalecer sobre os substantivos adjetivados.

Bion recriou a proposta freudiana ao propor a atitude sem memória, sem desejo, sem compreensão racional, como atitude desejável para o analista vir-a-ser O, ou buscar o O, a essência emocional mutante do momento vivido, um lampejo de verdade cósmica. Essa atitude de desapego do ego consciente, desapego daquilo que pensamos conhecer de nós mesmos, nos remete às milenares sabedorias orientais e às várias tradições contemplativas orientais e ocidentais que delas derivaram. Por um lado, Bion citava muitas vezes San Juan de la Cruz e Meister Eckhart. Veja-se esse fragmento de Meister Eckhart, não citado, mas muito possivelmente conhecido por Bion: “Para descobrir o cerne é preciso quebrar a casca. Para desnudar a Natureza é preciso destruir seus símbolos e quanto mais você se arriscar mais perto da essência você chegará. Chegando ao uno que contém todas as coisas, é lá que sua alma deve estar” [no O?, pergunto eu]. Por outro lado, a expressão “sem memória, sem desejo” é praticamente textual no Tao-Te-King de Lao-Tsé. Sempre achei que o Tao-Te-King é o mais bioniano dos livros, apesar de precedê-lo em 2600 anos. O Tao-Te-King não é apenas uma leitura: é uma prática transformativa, um modo de ser. Provavelmente ele é a decantação de um conhecimento multimilenar e Lao-Tsé talvez um personagem lendário ressituado na história. São 81 poemas e o primeiro se inicia pela conhecidíssima frase: “O Tao colocado em palavras já não é o Tao”. Colocando em palavras bionianas, as evoluções de O já não são o O. Outro poema nos fala do Tao como o escuro e informe, o que nos remete ao Paraíso Perdido de John Milton tantas vezes citado por Bion. Ainda no poema 1, lemos : “Sem desejo captamos o Tao. Com desejos captamos suas manifestações”. Em termos bionianos, somente sem memória e desejo poderemos almejar o O. Não é por acaso que Bion trilha esses caminhos; afinal ele nasceu na Índia, ainda colônia inglesa, e se abeberou de sua cultura primordial através de sua ayah – babá indiana – até seus oito anos de idade. O próprio signo O pode significar o zero e a totalidade: a circunferência sem início e sem fim, como disse Heráclito. Se torcermos a circunferência O ao longo de seu diâmetro, produziremos a curva lemniscata, o símbolo do infinito, e lembramos que Bion propôs repensarmos a antinomia consciente-inconsciente como finito-infinito. Volto a dizer, a atitude que nos propicia essa imersão no infinito, esse tornar-se O ou Tao, é o desapego do ego para mergulhar na totalidade. Como alguém que tira a roupa e mergulha no mar.

Voltando às relações entre teoria e método psicanalíticos, a transferência e a resistência situam-se num campo que inclui e transcende teoria e método. Já é quase consenso hoje em dia que transferência e resistência não são apenas a reação emocional e idiossincrática de um analisando diante de um analista neutro mas, pelo contrário, elas decorrem da relação com um analista vivo que participa e determina em boa parte o processo – elas concernem a ambos: a transferência acontece entre analista e analisando. Penso que a atitude analítica mais propícia à neutralidade é a própria naturalidade desapegada e discreta do analista, com cintilações de ser e não ser, uma resposta possível à pergunta crucial; “ser ou não ser?”. Essa resposta, ser e não ser, contraria o axioma do terceiro excluído da lógica clássica, porque contém uma afirmação – ser – e sua negação – não ser – mas admite um terceiro incluído – ou seja, um terceiro termo que se iguala (ou mesmo contém) a ambos. O que é contraditório e inaceitável pela nossa lógica consciente (clássica, aristotélica) se reconcilia na lógica emocional inconsciente, uma lógica onde a infinitude de sentidos conduz à generalização de todas as relações – cadeias significantes para Lacan ou penumbra de associações para Bion, ou ainda conjuntos infinitos para Matte-Blanco – tudo se relaciona com tudo. Segundo Matte-Blanco, cujas idéias nos ajudam a tentar compreender o inconsciente freudiano, a lógica inconsciente funcionaria num contexto multidimensional: espaços psíquicos de quatro, cinco ou mais dimensões. Como vemos, a Psicanálise percorre atualmente caminhos semelhantes aos trilhados pela física quântica contemporânea; intuímos ou inteligimos níveis de realidade que não conseguimos imaginar, escapam à nossa visualização sensorial possível. Como exemplos, nos é impossível visualizar imaginativamente um espaço com quatro ou mais dimensões ou então pensar conscientemente a lógica inconsciente. Me ocorre sempre a piada do português que precisava viajar à Alemanha a negócios e não falava uma palavra de alemão. Procura um primo que já lá estivera e este lhe diz: “Não há qualquer problema. Tu falas o português bem devagarzito e vão te compreender muito bem”. Meio descrente, ele parte e ao chegar a Berlim toma um táxi no aeroporto e diz, bem devagar: “Bo-a-tar-de”. O motorista responde: “Bo-a-tar-de”. Surpreendido, ele continua: “Por-fa-vor-ho-tel-Pa-la-ce”. O motorista: “Pois-não”. Animado, resolve puxar um papo: “Eu-sou-por-tu-guês”. E o outro: “Eu-tam-baim!”. Ao que nosso herói explode: “Então por que raios estamos a falar alemão?”. Do mesmo modo, tentamos falar o “alemão” inalcançável do inconsciente com nosso limitado português consciente. No anexo final falarei com mais detalhes das idéias de Matte-Blanco.

Vivemos, como seres humanos e psicanalistas, um permanente dilema: como nos comunicar com o inconsciente, falando nosso português ou qualquer outro idioma consciente de maneira tal que possamos nos compreender. Em outras palavras, como nos comunicar com nosso inconsciente e com o inconsciente alheio através do nosso, sem saber sequer uma palavra de sua língua. Mesmo porque sua linguagem provavelmente nem concebe a noção de palavra tal como nós a compreendemos. Tentamos desconstruir nosso idioma consciente habitual, português, por exemplo, conferindo-lhe um ritmo mais pausado, mais poético, meditativo, permeado de silêncios, na tentativa de nos comunicarmos com esse conterrâneo de fala estranha. A disrupção fundamental provocada por Freud e que o coloca ao lado de Copérnico, Darwin, Einstein, Gödel, Heisenberg e tantos outros é exatamente essa: somos constituídos por dois modos de ser radicalmente diferentes e cujos códigos de linguagem são irreconciliáveis entre si.

Não se trata apenas de decifrarmos o inconsciente, mas também d’isto nos decifrar. De­ci­fração e devoração mútua entre dois diferentes códigos de linguagem cujas regras, mais além do incompreensível, são impensáveis entre si. Por um lado um modo de ser que reconhecemos habitualmente em nós e que fala a linguagem do consciente. Como pensa esse modo de ser? Da maneira que, conscientemente, imaginamos ser a única possível: a lógica clássica, aristotélica, analítica, onde vigora o princípio da não-contradição. Matte-Blanco denominou-o modo de ser heterogêneo divisor: heterogêneo porque diferencia objetos e divisor porque os individualiza. É a dimensão do Tu e Eu. Por outro lado, ou melhor dizendo, em outra dimensão, está o modo de ser que “pensa” a “língua” do inconsciente. Então como descrevê-lo em nossa linguagem consciente? Deparamos, assim, exatamente com a dificuldade que estamos tentando expressar: a tentativa de falar das características impensáveis da lógica inconsciente conforme as interpretamos mediante nossa lógica consciente. O que podemos quase afirmar é que sua característica fundamental é a ausência do princípio de não-contradição. O inconsciente é essencialmente contraditório e como conseqüência na sua lógica não existe ordenação de tempo ou espaço, não há distinção entre o antes e o depois, entre o dentro e o fora. Lógica que busca elementos comuns, generaliza, forma conjuntos, classes cada vez mais amplas na busca de uma totalidade cujo limite é o zero e o infinito – O, como diria Bion. Um exemplo: A mulher amada exprime cada uma e a totalidade das mulheres: a mãe, a irmã, a filha, a amiga, a deusa, todas as mulheres do mundo. As relações transcendem os objetos particulares em direção a uma transferência totalizante com toda penumbra de associações – expressão de Bion – que este objeto desperte em nós; cadeias significantes para Lacan ou conjuntos infinitos para Matte-Blanco, que denominou esse modo de ser de homogêneo indivisível. É a dimensão do Nós.

Por admitir a contradição, a lógica inconsciente eleva ao infinito as relações possíveis entre seus objetos; a lógica consciente reduz as relações possíveis a um número finito de relações não contraditórias. É importante frisar que a polarização aparentemente dualística em dois modos de ser ideais é apenas uma formalização matemática que nos ajuda a pensar o que se configura como um contínuo multi-dimensional cuja lógica é uma bi-lógica. Diferentes proporções de duas lógicas irreconciliáveis num determinado nível de realidade, mas cujo sentido emerge numa outra dimensionalidade do ser. Contraponto dialógico de razão e emoção através das regras contraditórias da arte infinita. Os modos de ser propostos por Matte-Blanco não devem ser pensados como essências reificadas do ser humano, mas como um campo mutante de essencialidades lógicas – numa simplificação dualista para fins didáticos, uma bi-lógica que determina todo nosso engendramento do sentido das coisas.

Estamos num concerto. Ouvimos a música de tantas maneiras diferentes, permitindo-nos transitar pelo contínuo infinito de nossos modos de ser. Assim, podemos situar-nos historicamente enquanto ouvimos: é uma sonata da fase madura de Beethoven; podemos analisar teoricamente a estrutura da composição; avaliar e comparar a interpretação do solista ou da orquestra; nos ligarmos à sonoridade do Stradivarius, na postura do pianista, naquela linda morena na segunda estante das violas, no gesto do maestro. Ou, embalados pela música podemos devanear planos futuros ou repensar emoções passadas, e também, por que não, dormir, sonhar… Ou mesmo preparar comentários brilhantes para esgrimir no intervalo. E podemos, de repente, ser totalmente tomados, esquecermos tudo que já sabemos e sermos a Música. Desaparecem todas as mediações e a música é tão nossa quanto do compositor, do intérprete, da humanidade.

Quem ouve em nós uma missa barroca a oito vozes? Essa polifonia onde oito diferentes linhas melódicas se interpenetram dentro de regras harmônicas que resultam numa apreensão totalizante, esteticamente prazerosa a nossos sentidos? Certamente não é apenas a escuta consciente, limitada por uma seletividade narrativa. É uma outra escuta com infinitas possibilidades simultâneas. O exercício de escuta e a experiência acumulada enriquecem essa apreensão e nos permitem transitar com mais facilidade entre a apreensão do conjunto das vozes e cada voz em particular. De certa maneira editamos a música ao nosso gosto; podemos fixar a atenção, fazer realçar em nós a linha dos baixos ou fugazes duetos de sopranos e contraltos. Reelaboramos em nós a dinâmica criando fortes e pianos ad libitum. Nossa escuta é um instrumento musical onde a obra se completa. Já na música contemporânea somos convidados a abandonar os padrões harmônicos reasseguradores e corrermos o risco do novo, do desconhecido: a entrega a essa estranha beleza que às vezes parece nos agredir. Quando transitamos dessa audição polifônica abrangente para uma audição linear concentrada, através de um esforço de atenção, estamos transitando entre nossos dois modos de ser, do inconsciente para o consciente, ou vice-versa. Reitero: dois modos de ser como representação dualista simplificada de um contínuo com infinitos modos de ser. Nossa escuta psicanalítica transita entre cintilações de polifonia e melodia.

Do texto indispensável (mimeo): “Funda­men­tos de um novo pensar musical”, de H.J. Koellreutter, grande músico e pensador planetário, tão brasileiro quanto europeu, transcrevemos as seguintes definições:

A – Prefixo grego denominado Alfa privativo. Dá idéia de transcendência, privando o conceito de seu valor absoluto. Não é contrário nem conforme; o alfa-privativo incorpora a um determinado conceito outro de maior abrangência. Ex. Atonal, Amétrico, Arracional.

Arracional (alfa-privativo) – Que não é contrário nem conforme ao racional; que transcende o racional. Incorpora as formas do pensamento tradicional (racional e irracional) em um pensar integrador.

Atonalidade (a = alfa-privativo) – Princípio de estruturação musical que transcende o da tonalidade, ou seja, que integra o princípio tonal em uma ordem sintática mais ampla.

Aconsciente [paráfrase minha] – Que não é contrário nem conforme ao consciente. Transcende o consciente. A lógica aconsciente integra a lógica consciente em uma ordem sintática mais ampla.

Retomando a contribuição de Freud à história do conhecimento pela postulação do inconsciente como um outro nível de realidade, talvez o termo que melhor explicite a intenção freudiana seja A-consciente, onde o prefixo A, alfa-privativo, conota um sentido de além, de transcendência. Ou seja, não um prefixo In que conote negação no mesmo nível de realidade mas o prefixo A apontando para além do nível de realidade consciente. Um aconsciente onde o que é contraditório para a lógica aristotélica consciente vive uma conciliação abrangente através da característica fundamental do inconsciente freudiano: a ausência do princípio de não-contradição. Este é o ponto de partida da obra inovadora de Ignacio Matte-Blanco: a busca das leis estruturantes dessa outra lógica, contraditória e paradoxal, que ele denominou lógica simétrica e que, associada à nossa lógica habitual consciente, nos engendra como seres bi-lógicos ou bi-modais: diferentes níveis de realidade ou modos de ser.

O racional e o irracional são fatores do pensar tradicional consciente. O inconsciente é arracional, transcende. Isto nos ajuda a pensar a insistência de Bion em torno do Novo, do Desconhecido. O novo, o desconhecido, o futuro são essencialmente arracionais e nossa única esperança de comunicação com eles é o in (a) consciente arracional. O resto é Passado, domínio do consciente racional-irracional. Do infinito fluxo de possibilidades aconscientes criamos uma singela linha narrativa consciente. Como num misterioso milagre, ambos os códigos convivem em nós e sua harmonização pode propiciar o estado de espírito conhecido como ser feliz. Nosso desafio como psicanalistas na atualidade é nos permitirmos pensar contraditoriamente. Deixar-nos envolver, fascinar, perder, ganhar, por essa outra lógica alógica. Arriscarmo-nos a perder a Razão confiando no in (a) consciente. Ele sempre estará lá expandindo e propiciando sentidos mais generosos e abrangentes aos nossos “pequenos” dramas cotidianos.

O que eu falo a meus parceiros no jogo do inconsciente? Respondo provocativamente: “Falo o que me vem à cabeça…”

Talvez algum colega se indigne imaginando algum vale-tudo ou análise selvagem. Não é bem isso e vou tentar fundamentar minha atitude, pois o que falo decorre dessa atitude. Em primeiro lugar, reparem que eu disse “Falo o que me vem à cabeça”, e não “Falo tudo que me vem à cabeça”. A idéia básica é dizer o que vai me ocorrendo por associação-livre na interação com meu analisando antes mesmo que a minha censura consciente recorte e retoque essas mensagens já inevitavelmente “re-conscientizadas” do meu inconsciente, e através deste as mensagens inconscientes de meu parceiro. Quando disse que falo o que me vem a cabeça, o fiz de forma propositadamente incisiva e genérica para enfatizar a idéia, mas na verdade, esse “dizer tudo” ser-me-ia impossível na realidade prática por duas razões principais: a primeira é que o nosso processo de atenção consciente é muito lento para acompanhar nossa avalanche habitual de “pensamentos inconscientes”, o que torna indispensável aplicar-se um recorte reducionista a essa trama infinita de sentidos inconscientes para reduzi-la a uma fala narrativa linear e finita, embora possivelmente poética. A segunda razão é que não existem dois analisandos ou parceiros iguais, e o mesmo parceiro muda continuamente ao longo do processo-jogo; afinal, é isso exatamente o que esperamos que suceda numa análise. Então, à medida que meu parceiro vai introjetando as regras fluentes e particulares do jogo psicanalítico, mais livre vou me sentindo para me entregar à atenção-flutuante-associação-livre, fundamento básico do jogo. Falei em regras particulares porque cada dupla engendra suas próprias regras particulares apoiadas em regras mais gerais, que são o assim chamado método psicanalítico. O analisando capta meu jeito de funcionar, de jogar, de ser, mesmo porque procuro deixar isso o mais claro possível. A partir de um acolhimento sincero, nosso parceiro pode ir participando do jogo, jogando à sua maneira, arriscando suas próprias interpretações, tímidas de início e aos poucos mais confiantes e até ousadas. Já dizia Freud que a resposta do analisando que o deixava mais convencido de suas próprias interpretações era: “Sabe que eu nunca pensei nisso, isso nunca me ocorreu?”. A interpretação que me parece ideal, acrescento, é quando é o meu parceiro quem diz algo que me faz pensar: “Puxa, eu nunca tinha pensado nisso!”. Imerso no jogo, tento entregar o problema ao inconsciente, após terem se esgotado as alternativas oferecidas pelo consciente racional, para o qual as contradições são quase insuportáveis. Então, enquanto coleciono fatos dispersos e seus desdobramentos no tempo, tento esvaziar a cabeça de pensamentos e deixar que nosso inconsciente, nosso outro modo de ser, perlabore a questão com sua infinita capacidade de tolerar contradições, percorrendo infinitos caminhos simultâneos dos quais algum se revele em nossa consciência como algo novo e criativo: um fato selecionado, algo que nunca tínhamos pensado antes, mesmo porque incorpora um outro código lógico, uma trama impensável que abre possibilidades novas que podem exigir mudanças catastróficas, rupturas de campo, quebras de preconceitos e pressupostos longamente estabelecidos, uma abertura do leque de possibilidades. Não se trata de abdicar à racionalidade indispensável, mas tão-somente procurar reequilibrar algumas polaridades primordiais: razão – emoção, erudição – intuição, consciente – inconsciente.

A expressão “fato selecionado” foi criada pelo grande filósofo e matemático Henri Poincaré, como uma expansão dos métodos tradicionais dedutivos e indutivos da matemática. Nesses métodos o raciocínio pode ser explicitado em forma narrativa – isto decorre daquilo, por exemplo. Com Poincaré, ganha respeitabilidade científica a captação intuitiva de uma configuração totalizante que empresta sentido a uma série de fatos aparentemente dispersos: um insight, um fato selecionado. Bion se utilizou da expressão para se referir à captação intuitiva do sentido abrangente das falas de um analisando, mais além de um raciocínio dedutivo ou indutivo usual consciente, de certa forma desligando-o para permitir uma captação inconsciente totalizante.

Claro que surge a questão ética: o analisando pode tolerar, está emocionalmente preparado para ouvir o que me vem à cabeça? A atitude psicanalítica praticamente se confunde com sua ética. Se pensarmos uma certa ética como produto datado de uma certa cultura numa certa época e circunstância, como uma tentativa solidária de harmonizar as relações humanas em determinada contingência histórica, podemos observar que seu congelamento temporal acaba transformando essa ética viva num código de leis restritivas e dogmáticas: um código moral cristalizado. A moral é uma ética congelada. Já a ética é impermanente – ela se constitui a cada nova experiência, o que nos remete a uma proposição de Bion: “Aprender com a experiência emocional” de cada momento vivido e com o que este nos ensinar. Para aprender com ela, é preciso nos defrontarmos e aceitarmos a verdade mutante do momento fugaz – a verdade do puro presente – pois a verdade propicia o crescimento e a mentira nos deteriora. A busca dessa verdade é um dos princípios básicos da ética psicanalítica, mas é preciso não esquecer que “verdade sem compaixão é crueldade”. Penso que a diferença fundamental entre ética e moral – e provavelmente o que as caracteriza – é que a moral nos dispensa, ou mesmo impede de pensar; outros já pensaram por nós e limitamo-nos então a aceitar confortavelmente uma regra convencionada no passado – ainda que no nosso passado – e muito possivelmente já caduca. Já a ética nos obriga a pensar, e esse pensar pode desvelar realidades incômodas e conflituosas que provocam sofrimento psíquico. Um exemplo real que me foi contado na época por um engenheiro que participou da execução da obra: durante os anos plúmbeos da ditadura militar, o governo contratou obras de manutenção naquele prédio enorme, pesado e então sinistro, do ministério da guerra. Entre outras coisas, pintaram o saguão de entrada e os bancos que se perfilavam ao longo das paredes internas. Naquela noite, o oficial de dia, encarregado da rotina do “quartel”, transmitiu as ordens regulamentares à nova guarda que entrava e entre essas a de não permitir que ninguém sentasse nos bancos – evidentemente por razões éticas contingentes, para evitar que se estragasse a pintura ou mesmo a roupa dos sentantes. O fato é que a ordem foi sendo retransmitida a cada mudança de guarda e por anos e anos os bancos deixaram de exercer sua função precípua: acolher visitantes cansados, ou seja, a ética virou moral; o motivo ético caducou no dia seguinte, mas a restrição moral permaneceu, tão absurda quanto o clima de desconfiança e terror que a produziu.

A atitude psicanalítica praticamente se confunde com sua ética. Existe então uma “censura consciente” necessária, um crivo de compaixão que me faz pensar, ainda que o menos possível, antes de falar, porém percebo que cada vez mais compartilho com meu parceiro as imagens que vão me ocorrendo antes mesmo que eu possa compreendê-las, e com isso correr o risco de saturá-las, e à medida que meu parceiro entra no jogo, tantas vezes me surpreendo ao ouvi-lo interpretar-se, ele mesmo, a partir da imagem que eu lhe comuniquei. E eu: “Uau, então era isso que aquela imagem estava tentando me dizer!”. Por outro lado, é muito comum eu começar a falar visando simplesmente apontar alguma dessas imagens inacabadas que me ocorrem e quase inadvertidamente eu ser conduzido por minha própria fala em direção a coisas, possíveis interpretações, que eu nem tinha cogitado quando abri a boca. Tantas vezes sou surpreendido pelo que acabo de me ouvir falar: “Quem está falando?”. Talvez isso tenha a ver com a tirada espirituosa de Bion antes de uma palestra: “Estou curioso para saber o que vou falar hoje!”. Confesso que me apropriei da blague – é exatamente assim que me sinto antes de falar, seja numa palestra ou numa sessão. Embora diferente, essa vivência tem algo de parecido com a sensação que às vezes sinto ao tocar no cello uma peça que eu domine bem, Bach por exemplo. Olho meus dedos correndo sobre as cordas em tempos impensáveis, me ouço tocando e me pergunto: “quem está tocando?”.

Tenho procurado observar como se dá a entrada de novos parceiros no jogo do inconsciente. Alguns parceiros, pertencentes a um grupo limitado que eu chamaria área psi ou público interno, já nos chegam com uma adesão prévia à psicanálise, um desejo de estar de acordo com ela e seu representante privilegiado, seu analista, que torna mais imediata a entrada no jogo do inconsciente, embora esse desejo possa também estimular a formação de um conluio de “falsos-selves” psicanalíticos. Com os “outros” é indispensável que possamos propiciar, preparar e aguardar o momento em que estejam prontos e dispostos a entrar no jogo. Com nossa colaboração, nossos parceiros no jogo captam aos poucos as sutilezas de suas impermanentes regras tácitas. A finalidade última do jogo, seu goal, é intuir o sentido do encontro emocional dos parceiros no campo transferencial transconsciente – é lá que o jogo se desenrola. Para tentar chegar lá utilizamos nosso precário instrumental linguageiro mesmo sabendo que as palavras nos levam apenas até o portal desse campo impenetrável para elas. E é no encontro da dupla nesse campo inefável que se dá a experiência mutativa através de rupturas em nosso campo consciente racional individualista. A proposta de Strachey sobre interpretação transferencial mutativa, tão inovadora em 1934, hoje amplia infinitamente suas possibilidades com os desenvolvimentos contemporâneos da teoria da complexidade: no campo do pensamento complexo tudo é transferência. Ou seja, toda e qualquer experiência emocional vivida na relação analista-analisando (ou qualquer relação emocional humana) é potencialmente mutativa, pois tudo entre eles se dá no campo da transferência. Quando Pedro e Paulo falam sobre qualquer coisa, estão falando inconscientemente de Pedro e Paulo.

Penso que é fundamental que nossos analisandos, mormente os jovens, se sintam participantes do jogo, que sejam informados de suas regras mutantes, e se sintam autorizados, co-autores do que se cria entre nós. A partir daí, as próprias resistências podem ocupar seu devido lugar na estratégia do jogo, mas sabemos que em muitos casos elas podem impedir totalmente o próprio início do jogo; cada dupla tem sua própria temporalidade. Parece-me que um grande medo dos jovens é perder a capacidade de brincar, mas o inconsciente só brinca, e portanto o jogo do inconsciente é para ser brincado continuamente numa adolescência atemporal que jamais termina: a eterna busca da verdade. Isso porque a finalidade do jogo é justamente a busca da verdade – não a verdade “revelada” ou “canonizada”, mas a verdade sempre nova, descoberta na emoção da pura presença. Isto parece-me um bom resumo em uma única linha das concepções criativas de Bion. Verdade como algo que faz sentido no contexto. Cito um fragmento de Luis Claudio Figueiredo: “A nós interessa a atividade de fazer sentido, deixando de lado a suposição de significados depositados em alguma parte, sedimentados, disponíveis e decifráveis. A ênfase é no processo de ir fazendo sentido, um processo eminentemente criativo. Quando o sentido se cristaliza ou é recebido ou tomado de forma cristalizada, o processo se interrompe e a criatividade se estiola”. A busca dessa verdade essencial é tão importante para a sobrevivência psíquica (e portanto física) que poderíamos imaginar uma pré-concepção de verdade no ser humano, pré-concepção pensada no sentido bioniano como uma expectativa filogenética inata. Penso até que existam duas pré-concepções primordiais: a pré-concepção de verdade e a pré-concepção de humanidade. A pré-concepção de humanidade é a expectativa inata do ser humano de ser acolhido no seio da humanidade, de ser aceito como parte integrante da colméia humana para nela construir sua singularidade: o social e o individual – social-ismo e narcisismo nos termos bionianos – se mesclando como opostos complementares. A humanidade é nosso sonho compartilhado.

Penso que a maior contribuição das idéias de Matte-Blanco à minha atividade terapêutica, quer com meus parceiros, quer comigo mesmo, é a possibilidade que se abre de eu sentir o meu inconsciente. De certa maneira estou sugerindo a vivência de sentirmos nosso inconsciente como um modo de ser saudável em si mesmo e não apenas quando ele “dói” em conseqüência de um desequilíbrio, uma desproporção com nosso outro modo de ser consciente. Como produto dessa percepção intuitiva de mim mesmo eu passo a confiar cada vez mais no Inconsciente. Entregando-me à atitude ética psicanalítica descrita acima, deixo que os estímulos, inevitavelmente mediados pelo modo de ser consciente, transitem o mais livremente possível pela matriz infinita, matriz primordial do inconsciente; minimizo a memória e as tentadoras conexões racionais e aguardo com paciência bioniana que meu modo de ser inconsciente me encaminhe algo à cabeça: “aquilo que me vem à cabeça”. Me entrego a esse exercício prático vivido no limiar do risco, e minha vivência prática tem me convencido de que posso confiar em “nosso” inconsciente. Confiar no inconsciente produz conseqüências em nosso modo de pensar o Mundo, o Cosmos que nos inclui. Certamente a idade e a experiência de vida – quando nos dispomos a aprender das experiências emocionais vividas – são fatores importantes nesse processo que poderíamos chamar de sabedoria. Digo muitas vezes que após certa idade a sabedoria é quase uma obrigação, mas a generosidade que a acompanha é sempre uma nova conquista. Esta qualidade particular de sabedoria que tento descrever nos permite abrir mão – ao menos muito mais que em tempos anteriores de nossa vida – do nome das coisas, de classificações reducionistas, de avaliações comparativas, e assim relativizarmos o bem, o mal, o certo, o errado. Como conseqüência, podemos acreditar que tudo que lemos, estudamos, pensamos, sentimos, vivemos, recebe uma outra catalogação no nosso sistema inconsciente, e se aceitarmos essa outra ordem lógica abrangente e multidimensional, esse nosso outro modo de ser, o inconsciente nos devolverá o que esperamos. Tudo que li e estudei está lá: para citar algumas luminares no campo psicanalítico: Freud, Ferenczi, Klein, Lacan, Winnicott, Kohut, Bion, etc. ad infinitum. Deixo ao inconsciente ∞ a tarefa de fundi-los e articulá-los; ele, isto, é muito mais sensível à nossa realidade compartilhada com o outro, o Outro, o Tao, o Cosmos. De passagem, penso que a frase lapidar de Lacan, o inconsciente é estruturado como uma linguagem, poderia ser mal interpretada se tomarmos como modelo de linguagem a nossa linguagem consciente. Como Freud e Matte-Blanco, entre outros, deixaram muito claro, trata-se de uma outra linguagem, uma outra lógica, uma a-linguagem que transcende nossa capacidade sensorial de acessá-la. Isto não escapou a Lacan, que, segundo relato de J. Alain-Miller, se interessou no fim da vida pelo trabalho pioneiro do grande matemático brasileiro Newton da Costa sobre lógicas para-consistentes ou – com alguma perda do rigor matemático, mas um ganho de compreensão intuitiva – lógicas contraditórias. Provavelmente o mesmo tipo de lógica que predomina no que chamamos o protomental, que nos é inacessível através apenas da razão mas passível de acesso através das emoções afetivas ou, em uma palavra, do amor.

A expressão “o que me vem à cabeça”, essa modalidade de livre associação, ganha então um outro status epistemológico: o que me vem é a cristalização mutante de tudo que aprendi na vida e que se permite transformar ao contato com o outro. Essa transferência mutativa se dá no encontro dos inconscientes de analista e analisando num campo momentaneamente comum aos dois. Uma volta às origens comuns, um arriscado mergulho no proto-mental através de uma interpretação intuitiva ética-estética que propicie uma transformação terapêutica mutativa. O que era só meu já não é mais, já se impregnou da experiência emocional vivida com o outro e eu mesmo já sou outro. Ou seja, a psicanálise é um processo contínuo de desapego do ego. Abrir mão de certezas e incertezas e simplesmente ser; e confiar que isso é o melhor que podemos fazer em nosso complexo ofício quântico. Nesse campo psíquico caótico, uma função de onda probabilística se particulariza, se concretiza na partícula fugaz do momento emocional vivido; mas simultaneamente permanece onda – “contrária sunt complementa”, como definiu o físico Niels Bohr, retomando Heráclito: a luz é simultaneamente onda e partícula. A partir das revelações da teoria do caos o termo caótico perdeu sua conotação original de desorganização absoluta e ganhou um novo sentido de organização que abrange a ordem e a desordem. Como metaforizou Bion, sonhamos perenemente no sono e na vigília, mas assim como as estrelas são invisibilizadas pela luz do sol, o sonho de vigília é, em princípio, invisível, mas ninguém duvida da permanência das estrelas durante o dia, como partes indiscutíveis de nosso mundo interno: nós podemos senti-las lá. Talvez algo semelhante com o modo de ser inconsciente: podemos senti-lo lá. E aqui. Isso. O que temos a perder? Nossos grilhões: o ego e sua racionalidade arrogante. Basta nos entregarmos às contradições e aos sonhos, e para os ainda céticos, lembro Einstein que dormia com o problema e acordava com a solução sonhada.

Venho desenvolvendo as idéias contidas nesse texto há alguns anos, ao longo dos quais tive oportunidade de apresentá-las e discuti-las com colegas em diferentes contextos, e a partir dessas trocas vou remontando-o continuamente. Recentemente encontrei um exemplo expressivo do que eu descrevo como falar o que (me) vem à cabeça numa fala de César Botella na Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo em que ele conta como Sara Botella, diante de um garoto incomunicável, pensa repentinamente – “sonha” – a palavra lobo, sem saber por que mas sem se impedir de pronunciá-la: lobo!. E de repente os inconscientes dela e do garoto se encontram no terceiro analítico (Ogden) e a comunicação se abre. E é em Ogden que encontro ressonâncias entre o que ele denomina “talking as dreaming” – falar como sonhar – e o que eu chamo “falar o que vem à cabeça”. Mas essas relações serão tema de outro ensaio.

Uma pequena introdução às idéias
de Ignacio Matte-Blanco

Adaptação do texto “Utopias pragmáticas e resistências previsíveis” de Ignacio Gerber, in A educação transdisciplinar iii.

O Inconsciente Emocional – um outro nível
de realidade


Citamos Matte-Blanco: “No infinito está o esquizofrênico e o inconsciente da matemática mas também a poesia”.

E é na anti-linguagem do esquizofrênico, na transcendência da linguagem poética, na matemática contraditória do infinito, nos sonhos e devaneios, que Matte-Blanco vai buscar as leis estruturantes desse código misterioso e esquivo, a lógica do Inconsciente. O Inconsciente da primeira tópica, o primeiro modelo de aparelho psíquico proposto por Freud e do qual ele jamais abriu mão totalmente: dois topos, dois territórios, o consciente e o inconsciente. Um Inconsciente substantivo, com I maiúsculo; não um inconsciente adjetivo, como apenas uma qualidade mas como uma instância e, mais além, como um modo de ser do ser humano. Diferentemente do nosso modo de ser consciente ao qual temos acesso direto através de sua lógica não contraditória que nos é habitual, esse outro modo de ser inconsciente se atém a uma lógica própria, radicalmente diversa e inapreensível diretamente. O homem trágico dividido entre dois modos de ser irredutíveis que, numa analogia química, não se combinam mas podem se misturar em proporções variáveis e mutantes. Partindo de seus efeitos apreensíveis, ou seja, as características do Inconsciente conforme descritas por Freud no seu livro A interpretação dos sonhos, e valendo-se de um instrumental teórico que abrange a lógica simbólica, a psicanálise e a matemática, Matte-Blanco deduz as leis estruturantes da lógica inconsciente, leis que determinam as características fenomênicas descritas por Freud como sua conseqüência lógica.

Como se diferenciam esses dois modos de ser a partir de suas lógicas constituintes? Nosso modo de ser consciente se atém à lógica clássica, aristotélica, bivalente. Uma lógica racional, não contraditória e finita que individualiza, relaciona e ordena seus objetos (as coisas). Por isso Matte-Blanco denominou-o modo de ser divisor. Já a lógica inconsciente não obedece à lei de não contradição, fundamento da lógica científica. Isto lhe permite liberdades impensáveis para nosso raciocínio usual, tais como deslocamentos, condensações, atemporalidades, ausência de negação, contradições absurdas, pensamentos impensáveis, a linguagem imagética dos sonhos.

Outro princípio fundante dessa lógica estranha é que ela generaliza todo e qualquer objeto individual. Ela associa e eventualmente equaciona um objeto a todos os conjuntos ou classes que podem contê-lo. Como exemplo, um determinado colega seria generalizado em classes cada vez mais gerais, do tipo: classe dos psicanalistas, dos terapeutas, dos brasileiros, dos americanos, dos homens, dos animais… dos seres cósmicos… Ou seja, esse indivíduo é generalizado pelas associações livres que cintilam nessa rede de conjuntos infinitos; redes inumeráveis de inumeráveis cadeias significantes. Tudo a que o objeto individual se ligar por contigüidades metonímicas ou semelhanças metafóricas. Matte-Blanco denominou o modo de ser que se atém a esta a-lógica inconsciente de modo de ser indivisível. É o território do infinito, do ilimitado, do inefável, onde tudo tem a ver com tudo. Lugar de absoluta contemplação da própria infinitude, da totalidade indivisível.

Sua lógica não pode existir a não ser associada ou contida de alguma maneira pela lógica clássica do nosso outro modo de ser, pois ela por si só eliminaria qualquer relação lógica possível e por isso ela nos é inapreensível, im­pensável. Podemos tão-somente captá-la através de suas interferências na nossa lógica habitual consciente: sonhos, atos falhos, expressividades emocionais. É importante frisar que estas lógicas, a rigor, não podem existir isoladamente; só podem ser pensadas como uma oposição complementar, algo como o Yin-Yang, o que nos remete a uma tradição de pensamento que passa por Lao-Tsu, por Heráclito e Niels Bohr. Elas constituem um campo de possibilidades probabilísticas envolvendo proporções relativas, misturas aleatórias dessas duas lógicas que se repelem e se atraem numa simultaneidade paradoxal. Ou seja, em estado puro elas são pólos teóricos virtuais de um campo complexo. Na nossa vivência, aparecem sempre misturadas em proporções variáveis, tecendo uma bi-lógica anaclítica. Indo mais adiante, Matte-Blanco praticamente equaciona inconsciente com emoção e consciente com razão (sempre pensados como pólos virtuais de um campo contínuo). Ou seja, as emoções obedecem a uma lógica emocional e, como tal, contraditória, potencialmente infinita e irredutível à outra lógica racional, não contraditória e finita do sistema consciente. Num ensaio anterior aventei a alternativa do nome Aconsciente, onde o prefixo in, que denota negação num mesmo nível de realidade, é substituído por a, do prefixo grego alfa privativo que conota um sentido de além de, de transcendência para um outro nível de realidade, uma outra dimensão lógica. Se aceitarmos como hipótese de trabalho que as estruturas bi-lógicas são onipresentes mas apresentam-se com diferentes condições de equilíbrio harmônico, a proposta freudiana: “Onde estava o id estará o ego” se transmuta exatamente na busca de um equilíbrio harmônico e vital entre nossos dois modos de ser.

Podemos pensar o modelo de aparelho psíquico proposto por Matte-Blanco a partir de Freud como um contínuo multidimensional com diferentes proporções do modo de ser consciente,  racional, divisor e do modo de ser inconsciente, emocional indivisível. Dentro desse contínuo existirá uma faixa ou configuração de “normalidade”, ou senso comum, ou neurose média estatística, ou como queira se chamar, que preserva um certo equilíbrio entre a luta racionalizada pela vida e as experiências emocionais vitais, nossos conhecidos princípios de realidade e prazer. Vemos que esse modelo problematiza a relação razão-emoção e privilegia a experiência emocional como a verdadeira natureza do ser humano. Talvez os vínculos racionais se cristalizem por um processo de automatização dos vínculos emocionais (algo como energia móvel em energia ligada, para usar expressão de Freud). Por exemplo: uma conta certa 2 + 2 = 4  produz uma experiência emocional de paz, de verdade. Já uma conta errada 2 + 2 = 5 produz “automaticamente” uma sensação de inquietude, de mentira.
 
No seu texto póstumo “Abriss der Psychoanalyse”, referência final obrigatória para as dúvidas que as idéias de Freud ainda suscitam, ele diz:

Após longas hesitações e vacilações decidimos assumir a existência de apenas dois instintos (trieb) básicos. Eros e o instinto destrutivo. […] A meta do primeiro é estabelecer unidades maiores e preservá-las assim – em resumo, unir; a meta do segundo é, pelo contrário, desfazer conexões e assim destruir coisas. (destruir o sentido das coisas?)

Por outro lado já vimos que o modo de ser inconsciente indivisível multiplica exponencialmente os vínculos possíveis de sentido em direção ao infinito. Já o modo de ser consciente desfaz todos os vínculos que não atendam às necessidades pragmáticas do momento; ele seleciona um recorte que esteja dentro de suas limitadas capacidades de percepção, pois só consegue pensar seguindo uma única linha narrativa, de modo a evitar contradições. Enfim, o ego consciente como o mecanismo de defesa primordial coloca limites apreensíveis às infinitas possibilidades do Inconsciente, cortando vínculos para manter a vida. Como disse Matte-Blanco, se nosso consciente fosse capaz de captar as infinitas mensagens simultâneas do nosso inconsciente, este não seria inconsciente. Ora, pois!
Parecerá estranho relacionar o sistema inconsciente com Eros, pulsão de ligação e o sistema consciente (o ego consciente) com Thanatos, pulsão de desligamento? Lembremos que Eros está ligado à sobrevivência da espécie e poderíamos pensar no amor indivisível do Inconsciente (coletivo como propôs Jung?) como amor ao próximo, à humanidade, um social-ismo (como Bion chamou esta pertinência a humanidade) que vai se articular com o narcisismo para moldar o amor imperfeito como o conhecemos, produto de uma bi-lógica: o código lógico da individualidade e o código trans-lógico da humanidade numa relação de oposição-complementar. Como disse Heráclito: Viver de morte, e morrer de vida. Vida e Morte: a harmonia radical do Cosmos que nos contém.

A hipótese da constituição bi-lógica do conjunto mente-corpo do ser humano, dois modos de ser com diferentes códigos lógicos, leva a pensar em dois sistemas perceptivos. Um deles programado para a captação, atenção, apreensão de relações racionais e outro para relações emocionais. Reitero seu funcionamento complementar, o jogo do recalcamento freudiano passando pela desproporção harmônica ou mesmo pela cisão entre razão e emoção (em termos freudianos, representação e afeto), entre os nossos dois modos de ser. É importante reiterar que os dois modos de ser do ser humano só podem ser compreendidos como permanentemente associados, não existindo separadamente a não ser como pólos virtuais didáticos de um campo mutante de configurações racionais-emocionais, um contínuo com diferentes proporções de ambos – um modelo simultaneamente monista e dualista.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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