voltar ao sumárioResumo Resenha de "Arte e Psicanálise" - Tania Rivera. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, 74 p. Autor(es) Edson Luiz André de Sousa é psicanalista, analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA), Professor do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e do PPG Psicologia Social e Institucional do Instituto de Psicologia da UFRGS. Professor do PPG Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. Notas 1. A. Breton, Les Vases Communicants, Paris, Gallimard, 1955, p. 33. 2. A. Breton, Catálogo Centre Georges Pompidou, Paris, Museu National d’Art Moderne, 1991, p.16. 3. J. Lacan, L’Éthique de la Psychanalyse – Le Séminaire livre VII, Paris, Seuil, 1986. 4. J. Loisy, (org.) La beauté, Paris, Flammarion, 2000, p. 16. 5. M. Duchamp, “O ato criador” in Battcock, Gregory, A Nova Arte, São Paulo, Perspectiva, 1975, p. 73. 6. T. Rivera, Arte e Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000, p. 41. 7. M.-L. Bernadac, Louise Bourgeois. Paris, Flammarion, 1995, p. 9. 8. M.-L. Bernadac, op. cit., p. 135. Abstract By Edson L. A. de Souza – review of Tania Riviera, "Arte e Psicanálise"
Professor Rivera traces here a brief history of the relationships between art and Psychoanalysis, indicating points of convergence and of dissonance. Some psychoanalytic concepts that opened up a fruitful dialogue with the arts are then examined; from here, she turns her attention to particular movements and works that, during the last century, have contributed to enhance this dialogue with our discipline. voltar ao sumário
| | LEITURAVasos comunicantes: sintonia e dissonâncias entre arte e psicanáliseCommunicating vessels: symptom and dissonances between art and Psychoanalysis
Edson Luiz André de Sousa
Este livro traz um breve panorama histórico das relações entre arte e psicanálise. Indica inúmeros pontos de confluência entre os dois campos mas também suas dissonâncias. Apresenta alguns conceitos psicanalíticos que abriram uma rica interface de diálogos mostrando de forma sintética algumas obras e movimentos artísticos do século XX que enriqueceram este debate.
“Freud, ele mesmo, é o primeiro a testemunhar de uma liberdade de espírito bastante excepcional, à qual só podemos render homenagem” ANDRÉ BRETON [1]
André Breton é uma espécie de dobradiça abrindo o livro de Tania Rivera. Espelhos em pedaços é o título do primeiro capítulo e vai nos mostrando as reverberações dos reflexos que os encontros e desencontros em torno da arte e psicanálise vão produzindo em um século de contágio mútuo. Contaminações que turvam as lentes, produzem zonas de ruídos, ampliam territórios de sombras, nos lançam enigmas que permitem, paradoxalmente, que possamos ver melhor. Pois que outra visão seria possível senão pelo foco de uma imagem turva e que ameaça se perder? No seu texto de 1928, O Surrealismo e a pintura, Breton dizia que considerava cada pintura como uma janela e cuja primeira preocupação era saber para onde ela dava e o que mais lhe interessava eram aquelas janelas que abriam para algo de perder de vista. [2] É esse o horizonte que vai nos interessar, aquele que nos desequilibra e nos convida a ver aquela imagem-limite que se revela no quase instante de seu desaparecimento. Como lembra Jacques Lacan no Seminário sobre a ética da psicanálise, “a função do belo é precisamente a de nos indicar o lugar da relação do homem com sua própria morte, e de nos indicá- lo somente num resplandecimento.” [3] A beleza, portanto, é constituída por essa natureza fugidia como evoca Jean de Loisy no magnífico catálogo da exposição O Belo realizada em Avignon na França em 2000. [4]
“A beleza será convulsiva ou não será”. Frase emblemática de Breton e que marcou época pois indicava uma outra atitude diante das formas do ideal quebrando definitivamente uma perspectiva do belo como harmonia. Essa afirmação é provocativa, pois desfaz a idéia do belo como um campo de pouso sereno onde poderíamos nos deleitar com formas ideais que apaziguam os espíritos inquietos. A psicanálise vai introduzir um outro olhar sobre o belo: arrebatador, ameaçador e por vezes até mesmo obscuro. O belo é uma das faces da verdade e portanto sempre surpreendente. A arte busca sempre novas imagens que possam nos despertar e permitir novamente pensar o mundo que vivemos. Em uma época em que o discurso da ciência ocupa todos os espaços firmando-se como paradigma único das formas de viver numa ânsia conquistadora sem precedentes nosso desafio é criar zonas de pausa para que possamos voltar a ver.
Tania Rivera, em seu belo ensaio, seguindo, portanto, a lição do pai do surrealismo, traz muitas perturbações ao leitor, pois desenha inúmeros pontos de sintonia e dissonâncias entre os dois campos. As dissonâncias foram resultado de um excessivo furor interpretativo por parte da psicanálise e sobretudo dos psicanalistas que tentavam buscar um lugar ao sol. É suficiente um breve percurso pela história deste diálogo, como nos apresenta a autora, para percebermos estes impasses. Menciona , por exemplo, a reação do famoso historiador da arte Meyer Schapiro criticando o clássico ensaio de Freud sobre Leonardo da Vinci. O mais importante, contudo, não parece ser buscar a harmonia entre discursos e práticas que, na verdade, respondem a contextos muitos distintos. Tania Rivera nos mostra a riqueza dos atritos e dos desencontros que nos ajudam a compreender um pouco mais sobre o que move os processos de criação.
São vários os caminhos de leitura que podemos fazer: história de alguns psicanalistas e suas obras, história de conceitos que abriram o campo desta discussão, história de obras de arte que marcaram presença no cenário do século XX e que nos abrem um outro olhar sobre o ato criador. Em relação à história do diálogo entre arte e psicanálise vemos o quanto o dadaísmo e surrealismo andaram, por muito tempo, lado a lado com a produção psicanalítica. A influência sempre foi recíproca, mesmo considerando as críticas e questionamentos de um em relação ao outro. André Breton era freqüentador assíduo dos textos de Freud. Jacques Lacan, por sua vez, registra em vários de seus textos o valor que encontrava na teoria da paranóia crítica proposta por Salvador Dali. Vemos claramente no famoso texto A Psicose paranóia e suas relações com a personalidade de Lacan esta influência.
Um ponto fundamental que seria preciso sublinhar e que parece ser o nó desta discussão gira em torno do conceito de ato, seja o de criação ou o interpretativo. Poderíamos dizer que o ato introduz uma espécie de fenda irreparável entre aquele que cria e sua obra. Por mais que tentemos “explicar”, “justificar” um pelo outro, há sempre algo que escapa pelo simples fato de que na dimensão do ato já temos de incluir o outro e os efeitos que a obra produz nos leitores, espectadores, analisantes. Há, portanto, uma espécie de parceria em toda criação que faz com que Marcel Duchamp tenha proposto que “são os espectadores que fazem o quadro”. Ora, percebemos aí que um mergulho na “subjetividade” de um criador, nos interstícios de sua história, nas artimanhas de seus desejos, nos impasses de suas hesitações, são insuficientes para dar conta de uma obra. Tania Rivera é muito precisa neste ponto apontando até mesmo certos exageros de Freud e de muitos de seus discípulos. Contudo, mesmo que Freud tenha demostrado claramente sua antipatia e desinteresse pela arte moderna, sua obra (a psicanálise) não guarda essa distância. Insisto: não podemos confundir autor e obra. A obra tem vida própria e está além das idiossincrasias , humores e preconceitos eventuais de seus autores. Se a opinião de Freud em relação à arte foi um tanto conservadora, o mesmo não podemos dizer de seus textos. Mesmo que Freud não tolerasse muito os expressionistas, me arriscaria a dizer que a forma de seus textos se aproxima muito do espírito deste movimento. Tania Rivera indica, de forma convincente, que finalmente precisamos fazer falar as obras e ouvir um pouco menos os sujeitos que as colocaram em cena. Poderíamos, então, nos perguntar: a obra fala? O que ela diz? Tais questões abrem o debate em torno da interpretação pois, em última instância, toda obra não deixa de ser uma pergunta dirigida ao mundo. Poderíamos afirmar, neste ponto, que interpretar não é trazer o sentido que falta, mas desequilibrar sentidos congelados. Como dizia Maurice Blanchot ao se referir à função da poesia, esta tinha como missão sacudir a poeira das palavras.
Tania Rivera descreve com uma riqueza de detalhes históricos os primeiros passos entre arte e psicanálise. Mostranos, por exemplo, o quanto os artistas no início do século XX foram buscar novos parâmetros formais nas produções da arte africana, da arte naïf e mesmo nas manifestações pictóricas dos loucos internados. Os dois campos partilhavam de uma aposta na espontaneidade e no valor do inconsciente. Menciona o importante trabalho do crítico de arte e psiquiatra alemão Hans Prinzhorn, que em 1922 publicou o livro Atividade plástica de doentes mentais. Tanto a psicanálise como a arte buscavam uma expressão que pudesse tocar a natureza que está no interior, para lembrar a máxima de Paul Cézanne. A autora nos traz dados históricos relevantes que nos permitem perceber as dissonâncias entre intenção e expressão. Entre o pensar/desejar e o fazer há um mundo. O inconsciente vai ser o responsável por introduzir esse abismo. Freud já tinha insistido em uma idéia que todos nós sabemos: pensamos em uma coisa mas fazemos outra. Os artistas e psicanalistas se debruçam sobre este espaço que se cria entre intenção e expressão. Umas das melhores definições desta questão é de Marcel Duchamp, quando se refere no seu texto “O ato criador” ao valor artístico de uma obra. Ele propõe o termo de coeficiente artístico, dizendo que se trata de uma relação aritmética entre o que permanece inexpresso embora intencionado, e o que é expresso não intencionalmente”. [5] O ato, portanto, abre brechas no discurso, fendas na imagem, interstícios no tempo compacto da vida automatizada e assim instaura algo de utopia: novos lugares. O espelho em pedaços, paradigma de um movimento como o cubismo que vem mostrar a marca da provisoriedade e da transitoriedade inaugurando um outro estilo de produção.
Tania Rivera não esquece de trazer em seu ensaio inúmeros nós cegos nesta história entre arte e psicanálise. Freud, como sabemos, não reagia com entusiasmo ao que via da arte moderna. E embora muitos artistas confessassem o entusiasmo ao ler Freud, como Max Ernst e Salvador Dali, não faltaram também os que alfinetaram Freud, como o próprio Breton, em seus Vasos Comunicantes de 1932. Há uma outra dobradiça importante no livro e que diz respeito aos aportes do psicanalista Jacques Lacan. Ele introduz outras perspectivas de leitura, inéditas principalmente nas articulações em torno do conceito de sublimação. No seminário de 1960, A ética da psicanálise, Lacan vai propor pensar a sublimação como o movimento que eleva um objeto à dignidade da coisa. Tania Rivera lembra com muita precisão que “A coisa é um conceito que Lacan pinça em alguns poucos escritos de Freud, e com boa dose de influência de Heidegger, eleva à condição de ponto central da teoria analítica”. [6]
Dois artistas, em especial, servem de referência para o encaminhamento da conclusão do livro e deixam o leitor com sede de novas imagens. A autora faz referências a inúmeros trabalhos de Marcel Duchamp e Louise Bourgeois. Bourgeois, embora tenha sido quase contemporânea de Duchamp, só nas últimas duas décadas tem sido aclamada nos meios artísticos oficiais, sobretudo depois da grande retrospectiva no início dos anos 1980 no Museu de Arte Moderna de Nova York (Moma). Louise Bourgeois é uma artista americana de origem francesa e que de forma corajosa desvela em sua obra temas cruciais de nossos tempos, como o lugar da feminilidade, do corpo diante do traumatismo, do sexual diante da vida e da morte. Para quem talvez não se lembre, é dela a gigantesca aranha que podemos ver permanente em uma das extremidades do Museu de Arte Moderna de São Paulo. Sua vida é revelada de forma tão transparente, que nos causa grande surpresa. Tania Rivera explora com delicadeza alguns detalhes de sua história, sempre tendo o cuidado de não jogar tais informações numa camisa de força de entendimento psicanalítico. Falar dessa história é fundamental, pois Bourgeois faz uso dela como material plástico para suas obras, como pedra, ferro, vidro e a tinta que usa em suas esculturas. No filme dirigido por Camille Guichard, de 1993, ela chega a afirmar que “a arte é a experiência, ou a re-experiência do traumatismo”. Sua obra nos produz um efeito tóxico, como lembra Freud em seu Mal Estar na Civilização, ao dizer que a “fruição da beleza dispõe de uma qualidade de sentimento, tenuamente intoxicante”. Aqui, artista e espectador compartilham essa contaminação dos sentidos. Bourgeois chega a afirmar o seguinte: “Eu sou do gênero toxicômano, e a única maneira para mim, de renunciar a uma droga, é me lançar a uma outra que seja menos perigosa”. [7] A arte cumpre aqui para ela essa função. A leitura do livro Arte e psicanálise me evocou uma imagem que me surpreendeu muito. Lembrei-me da primeira vez que vi um trabalho de Louise Borgeois. Estava visitando a exposição Documenta de Kassel na Alemanha, em 1992, e senti um cheiro forte de madeira que vinha do canto de uma sala. Vejo um grande tonel de madeira e venho saber depois se tratar de um reservatório de água desses utilizados em alguns prédios em Nova York. Bourgeois diz também que tal forma lembra muito seu primeiro atelier, que tinha tal formato. Esse trabalho ela intitulou Líquidos Preciosos. Ao penetrar na casa-tonel vemos muitos elementos: uma cama de ferro com água derramada no estrado, quatro colunas de ferro repletas de vidros recipientes, duas esferas em madeira cobertas por um grande sobretudo masculino, e dentro desse sobretudo uma roupa de criança onde está bordado Merci/ mercy. Trabalho que nos inunda pela referência aos líquidos. A artista diz pensar em todos líquidos do corpo: o sangue, a urina, o leite, o esperma, as lágrimas, tudo o que verte do corpo pelos choques emocionais como o amor, o medo, o prazer, o sofrimento. Diz a artista: “Para mim, a escultura é o corpo. Meu corpo, é minha escultura. O vidro se torna uma metáfora dos músculos. Ele representa a sutileza das emoções, a mecânica orgânica e também sua instabilidade. Quando os músculos do corpo relaxam e sua tensão diminui, um líquido se expande. As emoções intensas tornam-se um líquido material, um líquido precioso.” [8]
A potência do diálogo entre psicanálise e arte continua viva em inúmeras publicações recentes de autores como Fredric Jameson, Rosalind Krauss, Georges Didi-Huberman, Hal Foster, René Passeron, entre muitos outros. Tania Rivera está muito atenta a essa história, e a escolha de Louise Bourgeois para concluir o livro é também preciosa. A autora enfrentou um grande desafio que foi o de evocar inúmeras imagens sem ter nenhuma reprodução de obra impressa no livro. O leitor inquieto vai precisar fazer este percurso e quem sabe encontrará no caminho ainda outras e outras, e outras imagens. Esse livro surge como uma referência fundamental que fazia falta para arejar esse campo de discussão que durante muito tempo não conseguia se desvencilhar de Van Goghs, e Picassos.
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