voltar ao sumárioResumo Resenha de "O Perigo de curar-se" - Beatriz Mecozzi. São Paulo, FAPESP/Via Lettera, 2003, 164 p. Autor(es) Sérgio Telles Telles é psicanalista do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e escritor. Abstract By Sergio Telles – review of Beatriz Meccozi, "O perigo de curar-se"
The concept of “therapeutic negative reaction” covers a broad range of phenomena associated with failure in the analytic process and ultimately based on the invincible force of the compulsion to repeat. This book reviews the literature on the subject and illustrates it with some clinical fragments. voltar ao sumário
| | LEITURAOs impasses da reação terapêutica negativaDead ands in the negative therapeutic reaction
Sérgio Telles Telles
A reação terapêutica negativa – descoberta clínica feita por Freud em 1919 – é um fenômeno de difícil manejo e avaliação. Difícil manejo por mostrar ao analista os limites de sua atuação, à medida que ali vê todo seu empenho ser tragado pelo gozo mortífero do paciente que insiste e persiste na compulsão à repetição. Difícil avaliação por levantar questões de complicado equacionamento: a paralisia de uma análise e seu subseqüente rompimento devese à compulsão à repetição resistencial do paciente, que se manifestaria com todo e qualquer analista ou a reação terapêutica negativa se instala, cresce e produz efeitos em função das características específicas de uma determinada dupla de analista e analisando?
A reação terapêutica negativa é o espinhoso tema escolhido por Beatriz Mecozzi. Sobre sua escolha, ela se pergunta: “Por que escrever sobre isso? É legítimo que os leitores se perguntem por que me arrisco a publicar um texto que exala o paradoxo de expor as barreiras que não consegui ultrapassar. (...) Autocrítica pública precoce de uma escritora tardia? Autobiografia desnecessária, uma confidência escandalosamente reveladora de restos transferenciais não analisados em mão dupla? Quem sabe tudo isso e mais uma ponta de exibicionismo excêntrico, para aqueles que consideram a escrita psicanalítica um estilo a mais na impostura pós-moderna” (p.16).
Não é essa a impressão que o texto de Beatriz Mecozzi produz no leitor. Ele vai se deparar com um bem urdido trabalho de elaboração conceitual, no qual a autora minuciosamente vasculha textos freudianos e pós-freudianos à procura de elementos que a ajudem na compreensão dos casos de Vitta, Vlixem, o fotógrafo flanêur e Molly – casos truncados, nos quais a análise foi subitamente interrompida, deixando a analista apenas com um vislumbre de inóspitos e hostis mundos internos que rejeitaram sua presença.
Como diz Purificación Barcia Gomes na apresentação do livro, “essa atitude revela coragem, pois é raro, na literatura psicanalítica, depararmo-nos com autores que se disponham a mostrar os bastidores de seu trabalho e seus eventuais insucessos”. (p.11).
Beatriz Mecozzi revê com cuidado os trabalhos freudianos sobre o sentimento de culpa inconsciente, a necessidade de punição, o masoquismo, os lucros secundários, a viscosidade da libido, a onipotência narcísica, as resistências, as oposições entre Eros e Tânatos, a pulsão de morte até se deter extensivamente nas considerações em torno da pulsão em termos de força (ponto de vista econômico) e de representação (sentido).
Diz ela: “Sabemos que a metapsicologia freudiana foi construída na sua totalidade, de maneira que seu objeto, o inconsciente, seja explorado como ´sentido encarnado, significação materializada, viva´ (Castoriadis, 1978:48) e, por isso, a psicanálise rompe com a ciência psicológica e psicopatológica da era positivista. (...) Não por acaso, a psicanálise, um saber que trata do sentido e da força que lhe dá pulso, (...) encontra problemas em sua teorização, diante dos moldes conceituais clássicos da ciência e da filosofia, colocando-se à margem do saber formal”(p. 92).
Por essa via, aborda a palpitante questão epistemológica da psicanálise, passando por Ricoeur e apoiando-se em Monzani, que propõe uma epistemologia própria para o campo psicanalítico, “uma vez que toda a problemática que atravessa as leituras de Freud esbarra na busca de conciliação entre o discurso do sentido e o discurso energético” (p. 101).
Sem desconhecer a importância fundamental da força (fator econômico, energético) na constituição da resistência, da reação terapêutica negativa, nem a crise do conceito de representação na contemporaneidade, Beatriz Mecozzi termina por reconhecer a primazia da representação em todo suceder psíquico: “É bom lembrar que, para nós, psicanalistas, o único campo abordável é o da representação. O psíquico é representação (Bleichmar, 1986:133) (p.132)”.
Esse mesmo eixo (força e sentido) é usado por Beatriz Mecozzi para articular o arsenal da metapsicologia freudiana ao importante aporte da escola francesa, que amplia uma visão excessivamente centrada na pulsão e suas fontes internas e se abre para a decisiva importância do Outro na constituição do sujeito. Um dos autores dessa vertente é Aulagnier, que fala – baseada em Lacan – no “Eu antecipado no discurso materno (...) um Eu historicizado que inscreve a criança, desde o começo, em uma ordem temporal e simbólica” (p.26). Outro é Laplanche, que é convocado para falar da importância do desejo e da fantasia dos pais na constituição do psiquismo de seus filhos, ao lhes fornecerem as “metáboles” ou “significantes enigmáticos” (p.119).
Mecozzi segue Piera Aulagnier ao teorizar a relação entre a representação e a força, propondo uma equivalência entre a primeira e o processo de metabolização característico da atividade orgânica: “Nesse sentido, a metabolização é homogeneização de um elemento heterogêneo ao sistema, que o metaboliza e representa. No caso do trabalho psíquico, o elemento heterogêneo absorvido e metabolizado não é um corpo físico, é elemento libidinal de informação veiculado pela experiência do vivido, pelo encontro da psique com o mundo. Assim, (...) a atividade de representação constitui-se pelo conjunto de três metabolizações: o originário, o primário e o secundário” (p.136).
Para Aulagnier, toda representação é representação de objeto e a atividade de representação é co-extensiva ao investimento libidinal com seu circuito prazer-desprazer. A atividade representacional gera prazer sempre que consegue abarcar seu objeto, ou seja, sempre que aproxima representação e objeto. Haverá desprazer sempre que esse movimento fracasse, quando houver impedimento para a aproximação entre representação e objeto. A capacidade de representar vai depender da qualidade das relações primitivas de objeto. Se com ele é estabelecida uma relação amorosa e prazerosa, há um desejo de ingestão e incorporação, ou seja, a representação se realiza a contento. Se a relação é desprazerosa, regida pelo ódio, há uma rejeição e desejo de aniquilação, e a atividade representacional não se realiza a contento. No registro do originário, mediante a instância psicografante, a persistência da necessidade ou o déficit do exercício da função materna são vividos como auto-engendrados, daí que – no originário – o desprazer seja equivalente ao desejo de auto-destruição. Seria essa a primeira manifestação e representação da pulsão de morte, diferente do desejo de um retorno a um estado anterior a qualquer representação – ao Nirvana, ao silêncio da pulsão.
Diz Mecozzi: “Tudo acontece como se ‘ter de representar’ fosse corolário do ´ter de desejar´(Aulagnier, 1975:45) e, com isso, o sono, de um antes ininteligível para o pensamento e em cujo curso tudo era silêncio, é perturbado. Aulagnier é perspicaz ao observar que o ódio radical, originário, é contra toda atividade psíquica de representação” (p.141).
Isso leva a autora a afirmar que a reação terapêutica negativa se deve ao fato de que a análise, onde a função representacional é exercida com toda a intensidade (por meio da interpretação, da construção, da simbolização) passa a ser uma ameaça insuportável para aqueles que estão fixados em ou fundidos com primitivos objetos.
Beatriz Mecozzi cita ainda as elaborações de Betty Joseph, Stein, Pontalis e Leclaire que, apesar de distantes dos referencias teóricos de Aulagnier, chegam a conclusões semelhantes ao observar que os analisandos que respondem ao trabalho analítico com uma reação terapêutica negativa repetem na transferência o “apego desesperado a objetos primários marcados pela violência, falta de afetividade e compreensão”, dos quais não conseguem realizar o luto que lhes propiciaria uma separação adequada. (p. 59). Esse objeto primário materno, objeto da mais extremada ambivalência, vai despertar desde o ódio assassino, revelado na tragédia de Orestes por Ésquilo, até as fantasias sexuais incestuosas mais proibidas, como no caso de Du Roc, descrito por Leclaire: “Os muros que Du Roc ergue diante de sua mulher, sua ejaculação, sua análise, são, na verdade, representações da barreira nunca erguida contra sua mãe invasora, ativa, assim como foi seu desejo por ela” (p. 73).
Ou seja, a reação terapêutica negativa se instala quando o analisando, reatualizando essas relações primitivas na transferência, teme que a proximidade com o analista o faça reviver o ódio assassino ou a relação incestuosa fusional, simultaneamente desejada e temida. São situações insuportáveis que levam ao rompimento da análise.
Vitta, dissociada, narcisista, procura uma imobilidade que a afaste do sofrimento entrevisto quando fala de sua mãe depressiva e do pai inacessível. O fotógrafo flâneur, em meio à obnubilação causada pela drogadição e alcoolismo, inopinadamente aparece no consultório num horário que não é o seu, dizendo querer apenas ver se a analista está ali; sua atuação invasiva provoca uma forte reação contratransferencial na analista, que vive um estado de estranhamento e despersonalização, talvez uma forma que o paciente use para comunicar-lhe como se sente quando fora do efeito da droga, uma criança presa a objetos inanimados e mortos que ele recupera em suas fotografias de natureza morta, os stills. Vlixem, um moderno Ulisses incapaz de se lançar nos mares da viagem analítica, já que está aprisionado na teia da mãe viúva e enredado na lembrança melancólica de um pai idealizado. Molly, que em sua afetada inapetência fingia nada desejar, pois o desejo a confrontaria com a falta, vivida como catastrófica.
Diz Beatriz Mecozzi: “Nesses casos fracassados de minha clínica (...) a aliança entre nós se partiu nos momentos em que a ação de Eros estava a todo vapor e algumas mudanças fundamentais eram iminentes. No entanto, não puderam aceitar minhas intervenções, nem conseguiram representar os afetos que pulsavam na transferência, porque tudo o que eu pudesse fazer ou dizer ameaçava seu equilíbrio instável, cujo controle buscavam manter a qualquer custo, por meio de suas denegações onipotentes assentadas num fundo de medo de que sua realidade psíquica veiculasse algum desastre, lançando ao caos”.
O livro de Beatriz Mecozzi faz pensar sobre questões clínicas e teóricas que nos envolvem a todos os praticantes da psicanálise.
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