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Resumo
Resenha de Oscar M. Miguelez, Narcisismos, São Paulo, Escuta, 2007,153 p.


Palavras-chave
narcisismo, metapsicologia, mal, luto, melancolia, auto-erotismo


Autor(es)
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
é membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do Curso de Psicanálise desse Departamento. Publicou Violência (Casa do Psicólogo), Vertentes da psicanálise (Pearson), Mais além do sonhar (livro de crônicas), Quem é você? (livro de contos infantis).



Notas

1 J. Derrida e Elisabeth Roudinesco, De que amanhã, Rio de Janeiro, Zahar.


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 LEITURA

Entre o amor de si e a alteridade: um conflito interminável

Between self love and the other: an unending conflict
Maria Laurinda Ribeiro de Souza


Resenha de Oscar M. Miguelez, Narcisismos, São Paulo, Escuta, 2007,153 p.

"Em princípio, todo analista ‘sabe' o que é o narcisismo e consegue ‘entender' o que o outro está querendo dizer". Com esta afirmação, Oscar Miguelez introduz o campo de ambigüidades e de supostas certezas a respeito do tema de sua pesquisa. A polissemia conceitual, o lugar ocupado em cada teoria e a abrangência de seu emprego não só na psicanálise, mas também na linguagem coloquial e nas análises da cultura, justifica, a seu ver, o emprego do termo no plural. "Parece-me fecundo, diz ele, pensar o narcisismo como algo que tem muitas faces, múltiplos semblantes" (p.15)

Ao longo do livro identificam-se três vertentes de construção: a abordagem clínica, a metapsicologia e as ramificações na cultura. Uma preocupação historicizante e discriminadora da diversidade e complexidade dos conceitos está visivelmente presente em todos os capítulos. Outra característica que chama a atenção é a forma de apresentação dos textos: embora haja um fio que encadeia os temas trabalhados, cada capítulo pode ser lido como uma pesquisa temática independente. Isso faz dele uma diversificada e interessante fonte de consulta para futuros pesquisadores.

Com a apresentação de um caso clínico "A escolha de Sofia"; o autor inicia o capítulo 1 detendo-se na articulação metapsicológica entre luto, melancolia e narcisismo. Uma escuta delicada e atenta daquilo que poderia ressoar como insuportável vai acompanhando os dilemas e conflitos de uma mãe - Sofia - frente à doença incurável de sua filha.

A morte de um filho, diz Miguelez, talvez seja um dos lutos mais difíceis de processar, mas é também o que torna mais visível o lugar ocupado pelo narcisismo. E prossegue: quando Freud comparou o luto à melancolia, encontrou no narcisismo a forma de operar a diferença entre ambos. No texto de 1914, "Introdução ao narcisismo", ao denominar a criança como "sua majestade o bebê", colocou em relevo o deslocamento do narcisismo dos pais para o investimento idealizado dos filhos; uma renúncia do próprio narcisismo que se extravasa para o objeto. Sua perda, põe em evidência a outra face dessa idealização: o desamparo. Trama-se, assim, no momento do luto, uma articulação entre narcisismo, falo e castração. Na melancolia, por outro lado, a perda é evitada sendo substituída pela identificação narcisista com o objeto. Surge, então, uma pergunta: "O narcisismo que se faz presente como ‘opção pela vida' no luto, é da mesma natureza que aquele presente na melancolia?" (p.22). Essa pergunta estará como pano de fundo para todas as manifestações clínicas e metapsicológicas descritas ao longo do livro; o emprego do conceito no plural denotará uma insistência na singularidade de cada fenômeno analisado.

Depois de um tempo, Sofia, resolve interromper sua análise e deixa para o analista um presente que o inquieta: "a impressão de que se tratava de uma urna funerária, fez com que eu nunca soubesse o que fazer com ela" (p.28). Esta forma impactante de finalizar sua exposição, cria, no leitor, uma suspensão e o remete imediatamente ao traumático desse processo de luto - o risco de esfacelamento narcísico do eu, uma ausência de referências, uma dor à qual é difícil dar um destino. Repete-se o impacto do início desse relato quando Sofia diz ao analista que "esperou que sua filha morresse para então iniciar sua análise."

Quando Oscar Miguelez chama a atenção para o fato de que a presença do narcisismo no imaginário social tem aumentado muito, ele, assertivamente esclarece que isso ocorreu não porque o narcisismo esteja "aumentando" mas porque as suas formas de deslocamento e transformação têm diminuído. Na cultura dita narcísica de nossos dias, o dilema crucial com que nos confrontamos continuamente é o da ultrapassagem do narcisismo para o reconhecimento necessário da alteridade. Sem essa possibilidade, é a sobrevivência do humano que se coloca em cheque, expondo-nos, a todos, aos efeitos malignos desse risco. "O amor a si mesmo e o amor ao outro entram em uma dialética de conflito infindável no qual a crueldade desempenha um papel, por vezes, de protagonista" (p.36).

A questão do mal, da crueldade, será desenvolvida por ele, no capítulo 3, através de um recorte original onde se apresenta uma tentativa de aproximação e enfrentamento do pensamento de Freud com o de Hannah Arendt. Como foi possível, perguntou-se Freud, logo após a desilusão provocada pela primeira guerra, que uma cultura tão desenvolvida fosse capaz de atos tão cruéis? E Hannah Arendt, assistindo ao julgamento de Eichmann, tentará responder propondo o que ficou conhecido como "banalização do mal", e que se refere a uma capacidade de destruição que poderia ser encontrada em qualquer homem comum. Bastava como condição que ele fosse incapaz de pensar e se limitasse a reproduzir as ordens de seus líderes; que ele se tornasse apenas um funcionário - um autômato. Para ela, "a incapacidade de pensar está intimamente ligada à idéia do mal" (p.30). Mas, contesta o autor, a capacidade de pensar não é um dado objetivo que ultrapasse sem distorções a crueldade da realidade; o mais freqüente, pelo contrário, é que o pensamento se desorganize e perca sua função antecipatória.

Implicada com as questões sobre a violência, Arendt não menciona em suas referências teóricas nenhum texto freudiano. No entanto, é possível encontrar em suas contribuições pontos de aproximação e complementação. Uma conclusão partilhada por ambos é a de que tanto a idéia do mal quanto a de justiça - que traz, muitas vezes, em sua execução a presença daquilo que tenta combater - não são passíveis de definições absolutas. Derrida (2004) [1], que convocou a psicanálise a se envolver com o estudo da "soberana crueldade", reafirmou essa impossibilidade apontando para a referência necessária à alteridade infinita do outro: "não existe justiça sem interrupção, sem divórcio, sem referência deslocada para a alteridade infinita do outro, sem experiência manifesta daquilo que permanece para sempre out of joint" (p.101).

Essa discussão continua no capítulo 3, "Narcisismo, religião e cultura", com o questionamento da idéia, bastante difundida, de que a Religião pudesse se constituir numa forma eficiente de abolir o mal e facilitar a convivência entre os homens e, com a retomada dos textos freudianos que apontam para o mal-estar inevitável, decorrente de sua entrada no mundo da cultura. Aqui, a proposição do "narcisismo das pequenas diferenças" torna-se uma resposta potente para explicitar o horror ao "estrangeiro mais familiar" e as guerras fratricidas que pretendem reassegurar um precário lugar de mais-valia.

Narciso recusa tudo que não é espelho. Deforma-se para poder encontrar uma imagem que o aprove ou estilhaça o espelho tentando abolir o que não o engrandece. É nesse movimento que sua vertente odiosa tende a exacerbar-se e manifestar-se em atos de violência contra o outro - "diferente de mim, excludente, perseguidor". Louis Dumont, que analisa a contemporaneidade colocando em relevo o conflito permanente entre os valores modernos - "nós" e pré-modernos -"eles" - e Christopher Lasch, que lançou a idéia do "mínimo eu" como estratégia necessária de sobrevivência numa cultura narcísica, serão, neste momento do texto, os interlocutores privilegiados.

"Por que eles não são como nós?", com esta pergunta, Miguelez encerra este capítulo, e aponta para os vários planos presentes nessa discussão que ainda estão à espera de aprofundamentos futuros: os preconceitos, os fundamentalismos, a dificuldade insistente em positivar a alteridade.

Essa mesma questão reaparece no campo psicanalítico: "eles - os não-analistas e nós - os verdadeiros seguidores de Freud", são formas segregacionistas de reafirmações narcísicas e de demarcações de territórios. As transferências institucionais ou com os grandes mestres podem ser palco de múltiplas atuações. Mas, a transferência, enquanto conceito central na psicanálise, tem, também, potência de deslocamento e transformação do narcisismo: "A interpretação encarnada do analista tem valor de alteridade e a transferência, valor de experiência mutativa" (p.55). Retomando o texto sobre o amor de transferência, o autor discorre sobre suas manifestações na histeria, e privilegia duas vertentes de análise: o manejo da transferência e a realidade da transferência. Discute, também, as novas patologias que se apresentam no cenário da cura analítica, demandando formas criativas de manejo e interpretação.

Os capítulos 5 e 6 tratam das origens e da introdução formal do narcisismo na teoria psicanalítica. Embora se pense a histeria (e sua variante, a neurose obsessiva) como matriz clínica para o desenvolvimento da teoria psicanalítica freudiana, há todo um percurso de construção, desde os primeiros textos, em que Freud se ocupa daquilo que pode delimitar o campo das neuroses e o das psicoses. Oscar Miguelez retoma esses textos e as correspondências - com Fliess, com Jung - e faz um recorte de como se manifesta essa preocupação e de quais variáveis Freud tenta precisar para demarcar esses territórios - os mecanismos de defesa específicos, a temporalidade do trauma, a etiologia sexual, o auto-erotismo... Cita, por exemplo, a carta de 9 de dezembro de 1899, que se inicia como uma questão:

"Quando é que uma pessoa se torna histérica em vez de paranóica? Uma primeira tentativa rudimentar... deu-me a impressão de que essa escolha dependia da idade em que ocorreram os traumas sexuais... Abandonei há muito tempo esse ponto de vista... A histeria é alo-erótica: sua via principal é a identificação... Assim, cheguei a considerar a paranóia como uma irrupção da corrente auto-erótica..." (p.65)

Será, no entanto, a partir do confronto com Jung, que Freud aprofundará o estudo do fenômeno psicótico, centrando-se no desenvolvimento do conceito de Narcisismo. Assim, o texto de 1914, "Introdução ao Narcisismo", pode ser lido não só como um momento de explicitação do conceito, que já fora introduzido quando da discussão do "caso Schreber" e em "Totem e Tabu", mas também como uma "confrontação, refutação, oposição a Jung" (p.83). O autor passa, então, a discutir os pontos principais desse texto e as idéias polêmicas que ele suscita.

A proposição de um conflito centrado não mais entre pulsões sexuais e de autoconservação, mas entre libido do eu e libido do objeto, colocará em questão o modelo do dualismo pulsional, tão caro a Freud. Outro ponto polêmico é a concepção de um tipo de escolha de objeto que seria narcísica - a das mulheres privilegiadamente, e um outro tipo de escolha - por apoio (anaclítica) - mais própria dos homens. Essa distinção, diz Miguelez, não convence já que encontramos nos dois tipos de escolha a presença do narcisismo; "é fácil identificar o tipo narcisista, o difícil é encontrar o seu contrário" (p.93). A própria idéia central do texto pode ser questionada: Freud insistiu na proposição do Narcisismo para sustentar suas formulações sobre a psicose, explicando desta forma a megalomania e o afastamento do mundo. No entanto, a tendência contemporânea, ressalta o autor, é da retomada do auto-erotismo como forma mais adequada de se entender, por exemplo, a fragmentação e a falta de unidade própria da esquizofrenia.

No capítulo 7, Oscar Miguelez faz uma minuciosa leitura dos textos da metapsicologia, sublinhando o lugar articulador do narcisismo, como eixo potencial de desdobramentos que se fazem pressentir desde a "Monografia sobre as afasias" (1891). Conceitos tais como representação-coisa, representação-palavra, identidade de percepção, identidade de pensamento, oposição eu-objeto, prazer-desprazer, destinos da pulsão anteriores ao recalcamento, amor-ódio são tomados numa construção inter e intratextual, e analisados a partir de suas manifestações nos sonhos, na melancolia e na esquizofrenia, apontados por Freud como manifestações de regressões narcisistas.

E a pergunta inicial retorna: O narcisismo do luto é o mesmo que o da melancolia? Acredito que não, responde o autor.

"Podemos usar a mesma palavra, mas os processos são diferentes. Continuo a considerar necessário utilizar o plural: narcisismos. Há um narcisismo do luto, da perda e um outro das psicoses. No luto há um eu que suporta a perda do objeto... Nas chamadas psicoses maníaco-depressivas... o sujeito é pura perda e, portanto, não há perda possível, não há espaço psíquico para elaborar" (p. 121).

O último capítulo é dedicado a um apanhado geral sobre os "Avanços e recuos do narcisismo após a metapsicologia", ou seja, sobre os efeitos, no campo teórico freudiano, eliciados pelas enunciações feitas no texto de 1914. Uma das idéias que insistirá, a partir de 1917, e que se revelará com potência na compreensão das lutas fratricidas e na dificuldade em reconhecer e suportar a alteridade, será a do narcisismo das pequenas diferenças. Outra, não tão explícita, é a aproximação entre identificação e narcisismo. A relação entre auto-erotismo e narcisismo, assim como a de narcisismo primário e secundário, será marcada por ambigüidades, chegando-se, em alguns momentos, a confundir os conceitos. O impasse colocado na formulação de uma libido do eu e uma libido do objeto fez com que a inquietação de Freud o levasse, em 1920, a uma modificação teórica significativa que lhe permitiu sustentar, com consistência, a premissa fundamental do dualismo pulsional e voltar-se mais detidamente para o estudo da destrutividade - questão crucial na contemporaneidade.

Ao pluralizar-desvendar o conceito em suas diferentes concepções metapsicológicas, Oscar Miguelez, paradoxalmente, coloca em evidência a potência teórico-clínica daquilo que Freud apontou, no singular, como uma etapa necessária na evolução da libido e do eu e que ganhou, na análise dos autores contemporâneos da cultura, estatuto de analisador privilegiado.

Se o termo se banalizou e faz parte do jargão pejorativo cotidiano sendo reconhecido em sua face negativa, é porque ele pode, também, ser entendido como revelador daquilo que se coloca como marca dos tempos modernos: a ausência de investimentos significativos que sustentem a condição humana. Nesse sentido, falar de narcisismos convoca-nos a pensar que são necessários muitos. Muitos, para que as fragilidades e a castração não se cristalizem em auto-suficiências imaginárias, sustentadas pela violência, mas, antes, se abram para a possibilidade de que, pela amizade, se possa viver "uns com os outros", como propunha La Boetie, no início da modernidade.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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