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Resumo
Resenha de Alessandra Monachesi Ribeiro, Em busca de um lugar: itinerário de uma psicanalista pela clínica das psicoses, São Paulo, Via Lettera, 2007, 198 p.


Autor(es)
Maurício Porto
é psicanalista, acompanhante terapêutico.

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 LEITURA

Por uma outra utopia

For another utopia
Maurício Porto


Resenha de Alessandra Monachesi Ribeiro, Em busca de um lugar: itinerário de uma psicanalista pela clínica das psicoses, São Paulo, Via Lettera, 2007, 198 p.

Em seu livro, Alessandra Monachesi Ribeiro revela, generosamente, a formação de trabalhadora de saúde mental e de psicanalista, desde o momento inicial de seu percurso, ainda como a estudante de psicologia que transformara o posto de enfermagem de um hospício em guarita que a “protegia” dos medos suscitados pela loucura. Apesar de esses medos serem completamente reforçados pelos profissionais do hospício que, em sua maioria, quedaram surdos à maior parte dos pedidos e das manifestações vindas dos sujeitos ali internados, a estudante se liberou da guarita-prisão. Parece ter sido o desejo de fazer contato com uma loucura – que a toca estranhamente – aquilo que abriu caminho para a aproximação da estudante sensível para esse universo, e que lhe permitiu aprofundar e amplificar a compreensão a respeito da problemática da loucura, bem como dos modos de interlocução e de intervenção nos tratamentos das psicoses. O posterior trabalho como terapeuta no Centro de Atenção Psico-Social (CAPS) e a formação como psicanalista são desdobramentos de tal amplificação. A feitura deste livro também o é.

Para além desse plano pessoal, Em busca de um lugar: itinerário de uma psicanalista pela clínica das psicoses se coloca entre as reflexões que têm sido realizadas pelos trabalhadores de saúde mental alinhados com aquilo que se convencionou chamar de Reforma Psiquiátrica. Trabalhar em equipe discutindo entre profissionais de diversas disciplinas, cruzar saberes sem hierarquizá-los, acolher antes de qualquer coisa, intervir para não hospitalizar e sim, no sentido de privilegiar as ligações com as redes de relações pessoais, familiares e não familiares, pensar as múltiplas interações dos recursos terapêuticos, culturais e sociais, essas são algumas das balizas da Reforma Psiquiátrica. Então, a autora também nos permite pensar alguns efeitos produzidos sobre a formação como psicanalista, em função das experiências de um profissional da saúde mental trabalhando segundo esses parâmetros preconizados pela Reforma.

A experiência diária no CAPS acontece nesse espaço de múltiplas ofertas de atividades, de diferentes espaços, tanto dentro quanto fora da instituição, com diversas formas de vinculação, pessoas com variadas inserções e proximidades, terapeutas, usuários, familiares, cidadãos. Essa profusão de lugares se articula com o estado de errância do psicótico, que a autora designa como “o habitante por excelência do não-lugar”. Dessa aliança cotidiana, a autora capta uma hipótese que se confirma ao longo da obra: o habitante do não-lugar,

com a criação de um lugar de existência legítima para as produções psicóticas, […] ganha condições de construir efetivamente um lugar, na acepção do termo que considera que o lugar de existência de um alguém tem no outro sua condição fundamental.

Segundo a autora, no meio da profusão de lugares, a possibilidade que o psicótico tem de criar um lugar se deve particularmente a “alguma referência garantida por um cotidiano relativamente estável cuja maior constância residia no fato de eu – como muitos outros funcionários – estar presente”. Então, constata que a criação de um lugar para aquele que é sem lugar depende de alguém – neste relato, depende da autora, psicanalista – que funciona no tratamento “como uma linha que costurava os diversos lugares pelos quais ele (o psicótico) passava sem habitar”; como afirma a autora, trata-se de alguém que passa com ele por tudo isso que ele passou, alguém que pode estar em tantos lugares sem perder o próprio lugar, alguém que assim se torna garantia de “uma presença constante e confiável”.

A constatação dessa função por parte da autora, psicanalista, se desdobra em uma questão que subjaz ao estudo, mas que, a meu entender, se constitui em leitmotiv do livro: quais os efeitos dessa aposta, dessa implicação, dessa movimentação, dessa proximidade, na psicanalista e nos modos como ela pensa e faz a psicanálise?

Por isso, em uma parte central de seu livro, Alessandra Monachesi Ribeiro trabalha desenvolvimentos teóricos relativos às psicoses, concebidos por D. Winnicott, S. Freud e P. Aulagnier. E, aqui, nos defrontamos com uma problematização do pensamento freudiano.

Em um trecho, por exemplo, a autora se pergunta: “A psicose é, então, uma questão relativa ao Édipo, à castração e à sexualidade? Ou relativa à constituição do eu e, conseqüentemente, ao que se passa antes que o sexual entre em jogo?” E passa a desenvolver sua reflexão:

Winnicott não se ocupa, para suas formulações, da centralidade do complexo de Édipo. Para ele, “coisas” se passam fora desse âmbito e a constituição do eu é uma delas, bem como a psicose. Com isso, ele nos oferece o campo da experiência como possibilidade de que o sujeito se encarne, o que nos remete à clínica das psicoses naquilo que ela traz de experimentação, de jogo […] Freud, Lacan e Aulagnier, em uma elaboração teórica progressiva – guardadas as discordâncias, os buracos e as distinções – caminham de encontro ao intransponível na análise, diferentemente de Winnicott. Dada a centralidade do complexo de Édipo, permite-se uma compreensão dos sujeitos a partir de suas posições frente ao mesmo e, com isso, instaura-se um limite que o conceito de estrutura só vem reforçar.
[…] Quero dizer que o viés psicanalítico de abordagem das psicoses possibilita um olhar regressivo desde a neurose. Com ele, podemos compreender que condições e exigências o meio impôs ao sujeito e como ele respondeu a elas. Mas também viabiliza a condição de um olhar progressivo, no qual a estagnação e a reposição do movimento são possíveis desde que uma nova tentativa de estabelecimento de relações se faça, em bases ainda não experimentadas. Isso muda a perspectiva de futuro e, conseqüentemente, a perspectiva do que possa ser o trabalho na clínica. (p. 133-5).


Orientada por sua leitura de Winnicott, a autora distingue os conceitos de sexualidade e complexo de Édipo, centrais no advento da invenção freudiana, e separa-os de um “antes que o sexual entre em jogo”, que podemos talvez designar como um aspecto importante das idéias winnicottianas. Sem ingressarmos nas dificuldades de tal distinção, precisamos sublinhar o quão problemático é fazer derivar dessa distinção o respectivo fechamento ou abertura do campo de experimentação e de jogo na clínica, a respectiva impossibilidade ou possibilidade de o sujeito “encarnar” sua palavra, tudo isso levando a atribuir aos primeiros a perspectiva regressiva e paralisante da constatação intransponível do destino e, aos segundos, a perspectiva progressiva que daria movimento e futuro ao tratamento.

É preciso lembrar da força explosiva contida no pensamento freudiano que afirma que o tempo inaugural em que um bebê encontra um outro humano é o tempo da mais pura afetação. Freud chama esse tempo de pura afetação de “sexual” e “infantil”. Força explosiva de afetação é a desse começo primitivo e vital em que um outro humano atende o bebê porque é atingido pela boca faminta que ele vê aberta. Ao abrir a boca faminta, o bebê abre, para o outro humano, o caos em que ele se tornou. Então, esse outro humano, solicitado pelo caótico – fundo ainda sem forma que clama através da boca –, é afetado em grau máximo pela potencialidade polimorfa do que pode advir de seu encontro com o bebê. E o outro humano que responde, abraça, ao mesmo tempo, o bebê e essa potencialidade polimorfa. Nesse abraço, dispõe e sustenta o espaço onde se criarão as primeiras formas que incluam o desvio da pré-determinação do instinto.

O contato com a intensidade de afetações do “sexual infantil” é intensamente conflitivo. Nos começos, quando essa intensidade é mais explosiva. É força pulsando, no limite entre o somático e o psíquico. Freqüentemente essa força irrompe, impetuosa. Nas situações psicóticas, sempre. Exige trabalho psíquico nos extremos. E é aí, nos relatos clínicos de Alessandra Monachesi Ribeiro, que temos muito a aprender. Mais que os esforços teóricos, certamente necessários, são os fragmentos do trabalho da psicanalista acompanhando homens e mulheres no CAPS, envolvida pelas forças impetuosas das crises, que demonstram sua função decisiva no tratamento.

Sigamos de perto a narrativa de uma situação clínica (cap. 14), e teremos idéia da riqueza de seu ensinamento: a psicanalista é procurada pelo homem que lhe pede para lerem juntos o prontuário dele. Envolvida em muito ler e reler, ela se dá conta de que ali entre eles só existe um: toda aquela discursividade é discurso do pai deste homem, falando através dele! E a psicanalista, ao perceber que o homem via, a cada sessão, a anotação que ela fazia a respeito da sessão anterior, propõe que então ele mesmo faça a anotação. Franqueia-lhe a palavra. Depois de certo tempo, ela é testemunha do surgimento do homem: ele lhe conta que viera das pirâmides do Egito e do Sol.

Ela abraça o anúncio desse sol do qual todos nós, seres vivos, somos filhos, considera Sol e Egito o fundo ainda sem forma da origem. Abraça o deserto como universo que existe antes dos nomes, como silêncio em que ressoa a máxima potencialidade polimorfa. Abraça e recolhe, não por acaso, um segredo que o homem conta: ele tem uma namorada, a Madonna! Assim, a analista faz ressoar o nome da cantora pelas formas e sentidos que esse nome pode ganhar… Excitado, o homem cogita um sentido italiano a mais: você é Madonna. A analista, então, se inclui se diferenciando: é mulher, mãe até, que não madona. Em seguida, o homem passa a trazer cadernos, escrever, registrar a autoria, assinar. Por fim, diz que tem algo que não contará para a analista, e guarda um segredo em um lugar dentro de Si.

Assim, o que Alessandra Monachesi Ribeiro nos ensina através de sua clínica com psicóticos é que na busca de um lugar, seja desde o não lugar do psicótico, seja o lugar do psicanalista, trata-se menos de um topos e mais de uma utopia. Uma utopia, lugar ao qual nunca se termina de chegar, lugar em que, ao chegarmos, se abre para um mais além. E, um lugar a que se chega e que se abre para seu mais além, pondo-nos, sempre, a caminho da passagem, é menos um lugar e mais uma ética: é uma atitude que considera comum, a cada um, a fabricação permanente de ilimitados modos “um” de existir no mundo.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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