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Resumo
Este artigo analisa a experiência fundante do olhar na constituição do psiquismo, bem como seu lugar no fetichismo. Investiga também em que medida as diferentes relações objetais estabelecidas pelo sujeito, pela via do que é visto e encoberto, determinam o processo de construção de uma intimidade neurótica ou perversa.


Palavras-chave
perversão; olhar; técnica da intimidade.


Autor(es)
Rodrigo Blum
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, atuando no Grupo de Transmissão e Estudos de Psicanálise. É terapeuta da instituição Projetos Terapêuticos.


Notas

1 Pessanha J.G. Sabedoria do nunca, p.88.

2 Da Vinci L. apud Chauí M. "Janela da alma, espelho do mundo"; p.31.

3 Freud, S. (1908) "Sobre as teorias sexuais das crianças". Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996; v.9.

4 Khan M. Alienación en las perversiones, p.23.

5 Kehl M.R. "Masculino/feminino: o olhar da sedução", p.23.

6 Clavreul J. "O casal perverso", p.116.

7 Idem, p.119.

8 Idem, p.119.

9 Apud Peixoto Jr. C.A. Metamorfoses entre o sexual e o social: uma leitura da teoria psicanalítica sobre a perversão, p.233.

10 Freud S. "Fetichismo", p.157.

11 Khan M.M.R. Op. cit., p.21.

12 Clavreul J. Op. cit., p.134.

13 Khan M.M.R. Op. cit., p.22.

14 Nietzsche F.W. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro, p.83.

15 Ferraz F.C. Perversão, p.88.



Referências bibliográficas

Chauí M. (1988) "Janela da alma, espelho do mundo". In Novaes A. (org.) O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras.

Clavreul, J. (1990) "O casal perverso". In Clavreul J. et al. O desejo e a perversão. Campinas: Papirus.

Ferraz F.C. (2000) Perversão. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Freud S. (1908) "Sobre as teorias sexuais das crianças". In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996; v. 9.

Freud S. (1927) "Fetichismo". In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996; v.21.

Kehl M.R. (1988) "Masculino/ feminino: o olhar da sedução". In Novaes A. (org.) O olhar. São Paulo: Companhia das Letras.

Khan M.M.R. (1987) Alienación en las perversiones. Buenos Aires: Nueva Visión.

Nietzsche F. W. (1992) Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. São Paulo: Companhia das Letras.

Peixoto Jr. C.A. (1999) Metamorfoses entre o sexual e o social: uma leitura da teoria psicanalítica sobre a perversão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Pessanha J.G. (1999) Sabedoria do nunca. São Paulo: Ateliê Editorial.





Abstract
This article will attempt to analyze the role of sight in the creation of an individuals psyche, and its place in fetishism. It will also attempt to explain how different objective relationships established by the individual in terms of what is seen and what is hidden determines the process to create neurotic intimacy or perversion.


Keywords
perversion; to look at; technique of the intimacy.

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 TEXTO

O buraco da fechadura

The keyhole
Rodrigo Blum


Eu te via: você poderia estar presente,
mas faltava exatamente a qualidade da presença;
o aroma da duração. Você estava ali mas isto era
apenas um inexorável a mais, um nada acrescido
e infiltrado em outro nada." [1]

A curiosidade


O prazer em ver talvez seja um dos mais antigos prazeres do ser humano. Assim como o tocar, o prazer decorrente do olhar é fundamental na constituição psíquica e na excitação libidinal do sujeito. Desde muito cedo, a criança é estimulada pelo toque, pelo cheiro e pela visão da mãe, ainda que nebulosa. Mas os prazeres decorrentes da fonte do olhar não se restringem ao que é visto: funcionam também como fonte de fantasias. É através do que é visto e do que é fantasiado que o sujeito constitui seu imaginário, bem como suas representações simbólicas.

Antes de tratar daquilo que é encoberto e, por esta mesma razão, fonte de curiosidade, vamos examinar aqui o prazer de ver, ou escopofilia. Que a visão é uma fonte poderosa de prazer desde os primórdios da humanidade, parece não haver dúvida. Sabemos que os homens são constantemente alimentados por esse órgão dos sentidos e que este é, talvez, o caminho mais direto para as coisas do mundo. O olho e seu poder de absorver o que está sendo visto, como diz Leonardo da Vinci [2],

é janela do corpo humano, por onde a alma especula e frui a beleza do mundo, aceitando a prisão do corpo que, sem esse poder, seria um tormento. (...) Ó admirável necessidade! Quem acreditaria que um espaço tão reduzido seria capaz de absorver as imagens do universo? (...) O espírito do pintor deve fazer-se semelhante a um espelho que adota a cor do que olha e se enche de tantas imagens quantas coisas tiverem diante de si.

Se no Renascimento já se podia dizer tanto sobre aquilo que o olhar produzia, o que dizer da contemporaneidade, quando estamos na chamada era das imagens?

Pois sim, a visão ganhou poder de sedução e se elevou a níveis grandiosos no mundo contemporâneo, bem como é responsável por uma ditadura da escopofilia. Se anteriormente, o olhar e o prazer no que se via ganhavam contornos contemplativos, reflexivos e até mesmo desveladores, hoje ao contrário, o lugar da privacidade e do encoberto está quase que totalmente suprimido.

Mas se o prazer de ver é inerente ao sujeito, o desejo pelo proibido ou pelo escondido também o é. Assim, ao mesmo tempo em que o sujeito se constitui pelo que lhe aparece, é também constituído pelo que deseja descobrir ou ainda pelas fantasias que fabrica com o não-sabido. É a partir da curiosidade da criança sobre a origem dos bebês e seu poder de criar fantasias sobre essa origem que se dá um dos processos mais importantes na constituição psíquica dos sujeitos: o complexo nuclear da neurose. Ou seja, é pelo interesse das crianças sobre a sexualidade dos pais que tem início o processo de castração e de elaboração da própria identidade. Portanto, para dar conta de uma curiosidade e de um não-saber, as crianças iniciam um importante processo de descobrimento e amadurecimento acerca da sexualidade. Para tanto, usam de um artifício fundamental para a constituição da neurose, que é a fantasia. Ao investigar a origem dos bebês, e, por conseguinte, o significado das diferenças sexuais, as crianças lançam mão da criatividade e do poder de fantasiar teorias próprias. Examinando aquilo que chamou de teorias sexuais infantis Freud [3], demonstra que tais teorias contêm noções como a indiferenciação completa dos sexos, a presença de um pênis materno, o coito sádico e o parto anal. Todo esse processo de criação imaginativa desencadeado pela curiosidade infantil é de fundamental importância para percurso de maturação psico-sexual da criança. É por meio da dúvida e da curiosidade que se dará o trabalho de elaboração psíquica acerca do processo de constituição subjetiva, sobretudo do trabalho com a castração.

A curiosidade infantil tem, portanto, o papel fundamental de alimentar o não-visto e, conseqüentemente, o não-dito. Seu objeto é a intimidade dos pais, que intriga e alimenta na criança o trabalho psíquico de tentar desvelar o seu próprio desejo. A intimidade e a privacidade dos pais provocam-na no que ela tem de mais importante: sua origem e o lugar do sexual no desenvolvimento. Portanto, é por se perceber excluída da intimidade dos pais que a criança tem a chance de se constituir como sujeito desejante e, claro, ir em busca de uma relação de intimidade adulta. A privacidade parental constrói a privacidade da criança e é o motor da estruturação edípica. A falta de privacidade é sempre traumática para uma criança.

A intimidade


A idéia de intimidade ganha força na noção de privacidade e, sobretudo, na possibilidade de enxergar o outro. Assim, a intimidade que possibilita a curiosidade é, para Freud, o princípio fundamental para o desenvolvimento da neurose e para o complexo de castração. Mas o que estamos chamando de intimidade?

Em primeiro lugar, a intimidade tem origem na idéia de alteridade. Ou seja, para entender o que é íntimo, é fundamental aceitar a alteridade. Assim, voltamos a pensar no poder do olhar; porém aqui estamos tratando da capacidade de ver o outro nas suas diferenças. Portanto, a possibilidade de intimidade brota da necessidade do sujeito poder se perceber limitado, ou se preferirmos, castrado. Novamente, estamos falando da intimidade como fruto do processo de castração, ou seja, estabelecer uma relação objetal de intimidade pressupõe certo desenvolvimento sexual.

A intimidade pressupõe o conflito; constitui-se pela diversidade e, sobretudo, pelo desejo de falta. Assim, falar em intimidade significa falar em incompletude e, é claro, em não-saberes. A intimidade remonta à cena edípica: a curiosidade infantil sobre a sexualidade dos pais e o significado do casamento ganha uma ressignificação fundamental. Os pais deixam de ser o objeto do desejo, e o filho pode então deslocar-se da cena primária, que o engendrou, para vir a ser o sujeito de uma outra cena íntima que pressupõe, agora, a procura e o encontro de um outro. O momento de intimidade adulta é o encontro com objeto de desejo pós-edípico, que substitui o objeto primário. Este processo de intimidade implica uma entrega a um outro, mas não mais uma cumplicidade totalitária. O outro se constituiu na diferença e, assim, continua a existir nessa relação de intimidade; seus desejos fazem parte do universo íntimo. Assim, uma relação de intimidade só pode acontecer na pressuposição da castração de ambos os parceiros, sendo a própria condição para a existência das fantasias conjuntas. Pode parecer um paradoxo, mas a intimidade só pode existir se o outro puder faltar. É o que Masud Khan [4] afirma, ao comentar a importância que Freud deu às experiências auto-eróticas na sexualidade infantil:

a intimidade não é uma simples repetição regressiva ego-sintônica do auto-erotismo infantil. É um auto-erotismo a dois, uma reprodução planificada de práticas masturbatórias entre duas pessoas, destinada a compensar essa insuficiência do cuidado materno que constitui o requisito prévio do auto-erotismo e do narcisismo infantil.

O perverso e a intimidade


O que se diz de imediato sobre a
sedução é que é um jogo. Caçada
silenciosa entre dois olhares; captura
numa rede perigosa de palavras. Jogo
arriscado e fascinante - angústia e gozo -
onde o vencedor não sabe o que fazer
de seu troféu e o perdedor só sabe que
perdeu seu rumo: um jogo cuja única
possibilidade de empate se chama amor. [5]

Pensar em intimidade e perversão significa analisar o vínculo que o perverso estabelece com o objeto. Para se compreender a intimidade do perverso é necessário, antes de mais nada, refletir sobre o que sugere a intimidade na estrutura perversa. Para isso cabe colocar uma questão fundamental: o que faz com que o perverso estabeleça uma relação de intimidade? Ou ainda, que tipo de intimidade caracteriza a relação perversa? O que realmente significa falar em intimidade na perversão?

Antes de entrar no contexto da intimidade perversa, é importante analisar mais de perto o horizonte amoroso para o qual o perverso lança seu olhar. Para falar em amor no perverso é preciso considerar que esse laço afetivo tem um caráter discursivo. Temos aqui uma diferença marcante do traço perverso. De acordo com Clavreul, "o perverso aborda ou pretende abordar um discurso sobre o amor e mais nada, quer faça uma obra literária quer faça análise." [6] É sob esse espectro que o perverso lançará sua busca ao outro.

Assim, o outro para o perverso não é qualquer outro; ao contrário, é fundamental que o casal seja constituído por duas subjetividades. É na procura de um vínculo ambíguo que está a trama fundamental para o encontro perverso. A ambigüidade do vínculo é marcante no casal perverso, a tal ponto de provocar um estranhamento quando de uma prolongada duração. Mas é aqui que a perversão se mostra ainda mais presente, ou seja, é na durabilidade de um vínculo sustentado na ambivalência que temos a prova que relação perversa se apóia em um contrato. Assim, é com base num tipo de contrato bastante peculiar que temos o que podemos chamar de vínculo perverso, ou, ainda, intimidade na perversão.

Talvez este seja um indício do estranhamento e da sedução que provocam as relações perversas ao olhar neurótico. E aqui vale uma pausa para entender por que o perverso estabelece um tipo de contrato pautado pela disparidade e apoiado no segredo.

O segredo toma um caráter fundamental nessa relação contratual; é a própria chave do jogo sedutor do perverso. Porém, o fato desta prática restringir-se aos parceiros da cena não significa que a fantasia de um terceiro esteja ausente. Ao contrário, a ausência deste terceiro, que marca paradoxalmente sua presença como espectador, é peça fundamental nesse contrato. Não se trata de uma presença simbolizada pela inscrição psíquica, como na neurose, mas sim uma presença compromissada com a cena perversa. Este ausente é o excluído da cena em si mesma, mas que a ela deve ficar atado numa cumplicidade; é a figura a quem se nega a alteridade propriamente dita, a quem cabe o papel de observador responsável pela constatação do segredo.

Sobre esta figura afirma Clavreul [7]:

Esse terceiro, que está necessariamente presente para assinar, ou melhor, endossar a autenticidade de um vínculo amoroso normal, deveria ser excluído aqui, mais exatamente presente mas numa posição tal que ele fosse necessariamente cego, cúmplice ou impotente. É por isso que a ruptura de um vínculo perverso é bem diferente da ruptura de um vínculo amoroso. Pois no último fala-se de sofrimento, de infidelidade de um parceiro, de usura do tempo, e o único papel do terceiro é registrar o fracasso. No primeiro, para o perverso, visto que apenas o segredo diante dos terceiros constitui o próprio fundamento do contrato, não será nem a infidelidade, nem o sofrimento ou a indiferença de um dos parceiros, nem a usura do tempo que acarretará a ruptura. A ruptura será constituída da denúncia do segredo, da sua participação a terceiros, do escândalo.

A singularidade do casal perverso reside no fato de os parceiros preservarem o desconhecimento necessário sobre o outro. Assim, cada um dos envolvidos torna-se cúmplice do jogo do outro, estabelecendo um jogo erótico seguro. O erotismo se processa na ignorância ou, ao menos, no fingimento do objetivo do parceiro. Desta maneira, o gozo e a angústia aparecem como realização comum de um desejo desconhecido. É neste mútuo desconhecimento que se instala uma das características primordiais para o encontro do jogo íntimo da perversão. Negligenciar o objetivo do outro e, conseqüentemente, o próprio outro, marca a busca do prazer perverso. Assim, o cerimonial perverso é marcado por um segredo que, apesar da sua fragilidade, é a garantia ilusória de encontrar o não-sabido. Como descreve Jean Clavreul [8],

os casais perversos não deixam de se vangloriar de ficarem, após tantos anos, tão emocionados e terem tanto cuidado um com o outro quanto se encontrassem pela primeira vez. Deve-se dizer que todos os dias eles fazem o que é preciso para renovar a ilusão. E citam naturalmente como prova do amor que um tem pelo outro o respeito que têm pela intimidade, pelo segredo, pela liberdade do outro.

Para Robert Stoller é esse o ponto crucial da perversão: o contrato perverso é a solução para intimidade. Para ele, a cena perversa é mais do que a recusa da castração: trata-se da manutenção da identidade sexual ameaçada. Mas é na caracterização da cena e da impossibilidade de estabelecer intimidade que sua teoria ganha ainda mais força. Se a cena perversa é a fantasia atuada do desejo de ferir ou danificar o outro na forma erótica do ódio, a intimidade insuportável lança o perverso no desafio de transformar os sujeitos em personagens de um teatro "perversista" ou escolher objetos eróticos inanimados como no fetichismo. Diz Stoller [9]:

A perversão para mim é a solução para o fracasso da intimidade - a qual é segundo um preconceito que me é pessoal, uma coisa boa (a intimidade é deixar uma pessoa ser, como diz Hannah Arendt). O indivíduo não perverso não tem medo, um pânico da intimidade, pois ele não teme que ela o leve a uma fusão que engoliria sua identidade. Poder-se-ia dizer, mais comodamente, que existe perversão quando um indivíduo utiliza um ato erótico no sentido de evitar a intimidade com toda a pessoa do outro, não somente com sua anatomia.

Se podemos afirmar que o fundamento da intimidade perversa é a maneira atuada do sujeito perverso restabelecer um lugar onde o outro e a recusa não existem, então é fundamental entender a origem desta montagem psíquica. Ainda que, para Stoller, a fabricação do cenário perverso não vise somente à recusa da castração, é o desfecho do conflito edípico o ponto crucial para se entender o peculiar processo de intimidade na perversão.

Se a falta é o motor do desejo neurótico, a presença é a sustentação do desejo perverso. Assim, a recusa do perverso recai na necessidade do fetiche e na manutenção de uma cena onde a recusa da castração toma um lugar cristalizado. Portanto, o saber do perverso é constituído na recusa ao "não-saber", ou, se preferirmos à recusa ao objeto de ilusão. A recusa, no perverso, implica a impossibilidade de desilusão, ou ainda, a impossibilidade de renúncia à sexualidade edípica. Não há, portanto uma contemporização para que o sujeito possa verificar se amou aquilo que conhecia e se pôde desejar aquilo que amava. O saber se torna absoluto, totalitário, cristalizado. Para reconstituí-lo é necessário algo que crie um campo de ilusão que garanta um lugar de saber, o campo da fetichização.

Para Freud [10], o fetiche é o ponto de partida para a compreensão da perversão e, sobretudo, da origem do comportamento desviante. Para ele, o horror à castração estabelece a formação do lugar do fetiche como substituto à impossibilidade do indivíduo perceber-se incompleto e à aversão aos órgãos femininos:

Podemos perceber agora aquilo que o fetiche consegue e aquilo que o mantém. Permanece um indício do triunfo sobre a ameaça de castração e uma proteção contra ela. (...) Na vida posterior, o fetichista sente desfrutar de ainda outra vantagem de seu substituto de um órgão genital. O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele. Aquilo pelo qual os outros homens têm de implorar e se esforçar pode ser tido pelo fetichista sem qualquer dificuldade.

Essa é a ilusão criada pelo perverso quando monta sua cena ou seu campo de intimidade. A ilusão de poder criar um lugar onde tudo se torna intocável e permanente. Onde a alteridade inexiste e o fracasso maturacional ganha o arranjo de uma ficção. É nesse momento que o outro é inserido na trama e torna-se cúmplice. É nessa armação estrutural que a intimidade ganha o caráter de técnica através da qual, segundo Masud Khan [11], "o perverso trata de fazer saber a si mesmo e de anunciar e pressionar dentro do outro algo pertencente a sua natureza recôndita e ao mesmo tempo procura descarregar sua tensão instintiva de maneira compulsiva e exigente.".

O lugar que o parceiro assume nesse cenário não é peculiar, pois ele tem de existir, mas deve, simultaneamente, abandonar sua subjetividade ao longo do jogo erótico. No domínio do fetiche e da técnica da intimidade é fundamental que isso aconteça, como condição para que o pano de fundo do cenário perverso se constitua. Segundo Clavreul [12], "o essencial na ilusão é manter verossimilhança suficiente para que tudo seja marcante e angustiante, e inverossimilhança e fantasia o suficiente para que tudo isso possa ser interpretado no momento que se quiser como simples brincadeira com o qual não se é possível ficar melindrado sem cair no ridículo."

Nesse sentido, o processo de composição da intimidade guarda toda uma técnica e um ritual fundamental para que a Lei possa ser burlada. É com a finalidade de garantir uma incidência do desafio e ao mesmo tempo a ilusão da recusa que a Lei aparece como alimento à técnica de intimidade. Para tanto, o clima emocional que envolve a conquista e a sedução na perversão constitui uma das verdadeiras habilidades do perverso. Faz-se necessário estabelecer uma situação fingida que, na maioria das vezes, implica a complacência de um objeto externo.

Contudo, o fracasso é elemento presente nas relações perversas. Apesar de o sujeito perverso alimentar constantemente a fantasia de que cada situação é nova e singular, o sentimento de frustração é acompanhado por uma insaciabilidade recorrente. A técnica de intimidade, por mais obsessivamente cuidadosa que seja, guarda uma dose de frustração e dissociação. Assim, o próprio processo fetichista de intimidade alimenta o buraco da insuficiência afetiva do sujeito perverso. Como muito claramente define Masud Khan [13],

o perverso não pode entregar-se à experiência e conserva o controle da situação escondendo, dissociando e manipulando o ego. Isto constitui, por vez, seu sucesso e seu fracasso na situação íntima. Este fracasso é o que alimenta a compulsão a repetir uma outra vez o processo. O ponto mais próximo do estado de entrega que pode alcançar o perverso na situação íntima é o que vivencia através das identificações sensoriais, visuais e táteis com o objeto. Em conseqüência, ainda que o perverso prepare e motive essa idealização do instinto que a técnica da intimidade aspira a satisfazer, ele mesmo permanece fora do clímax vivencial. Portanto, no lugar de uma gratificação instintiva ou de uma catexia objetal, o perverso continua sendo uma pessoa carente, cuja única satisfação e a que lhe proporciona a descarga prazerosa e o interesse intensificado do ego. Em sua subjetividade, o perverso é um homme manqué.

Acting-out


"Por fim amamos o próprio desejo, e não o desejado." [14]

A cegueira provocada pelo olhar fixado é a impossibilidade da intimidade. O olhar seduzido por um objeto inacessível, impróprio, intenso e traumático escurece a visão. A impossibilidade de fantasiar a intimidade dos pais e de produzir sintomas representa, para o perverso, a incapacidade de simbolizar. Desta forma, seu mundo afetivo escurece e seu teatro é feito à maneira de sua habilidade e necessidade de atuação. Se a intimidade é algo aterrorizador, na medida em que todas as luzes precisam ser apagadas, o ato perverso ganha visibilidade. O atributo do acting-out é a luz que entra pelo buraco da fechadura. A intimidade técnica ganha um colorido excitante na possibilidade do perverso atuar seu desejo. Assim, é através do mecanismo do acting-out que ele forja para si uma identidade e sobrepuja o pensar em nome do agir. Esse funcionamento tem lugar marcante no seu funcionamento psíquico. É pela via da reatuação que o perverso se reconhece em suas vítimas. O essencial para o sujeito perverso só pode ser experimentado pelo outro. Em seu ato, ele é espectador de sua própria ação. Assim, o acting-out é cada vez mais importante na montagem psíquica perversa. De acordo com Ferraz [15], "o acting-out permite ao ego reverter uma dificuldade intrapsíquica, projetando a tensão provocada pela necessidade sobre outra pessoa. Se o ego luta contra a entrega passiva, a projeção permite-lhe sentir o domínio ativo do impulso e do objeto, o que lhe proporciona alívio."

Pode até parecer pouco, mas como diz a cultura popular: em terra de cego quem tem um olho é rei. O alívio que o perverso pode viver é fundamental para o tormento mental que carrega, ainda que seja quase improvável que isso seja admitido por ele. Não por acaso, o acting-out vem a ser uma busca compulsiva de satisfação. Ainda que não reconheça a falta, ele necessita de um ato que o alivie. Outro sentido para uma procura recorrente e compulsiva da atuação perversa é a possibilidade, ainda que muito falseada e primitiva, de estabelecer algum tipo de comunicação com o objeto real. O que pode ser considerado uma enorme conquista frente à solidão afetiva em que vive ele em seu quarto escuro. O acting-out talvez seja a única maneira encontrada para sair do enclausuramento narcísico. A atuação permite-lhe perpetuar imaginariamente ataques hostis ao objeto real. A montagem da cena perversa, por meio da técnica da intimidade, é a possibilidade de libidinização dos impulsos sádicos e agressivos vividos como incontroláveis.

Se o lugar do olhar toma sentidos distintos na constituição da perversão e da neurose, não é diferente com o atributo da intimidade. O que atualmente pode ser entendido como íntimo certamente seria uma aberração no início do século XX. Assim, falar em intimidade e perversão seguramente depende do modo como se olha para o objeto em cena. No entanto, podemos afirmar que a intimidade depende necessariamente da curiosidade e que sua construção passa fundamentalmente pelo desejo de descobrir. O que a perversão tem de mais sedutor é o que a torna mais enjoativa. Curiosidade vira cumplicidade; e o buraco da fechadura se transforma em câmera de televisão.

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