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ÍNDICE TEMÁTICO 
41
Presença do psicanalista
ano XXI - dezembro de 2008
160 páginas
capa: Renina Katz
  
 

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Resumo
O presente artigo avalia as contribuições de Donald Winnicott à teoria e clínica da neurose obsessiva. Para tanto, discute a função do ambiente na etiologia das neuroses, comparando-as com a de outras patologias; em seguida, explicita a concepção winnicottiana da neurose obsessiva. Finalmente, discute as implicações clínicas decorrentes de tal concepção.


Palavras-chave
neurose obsessiva; desintegração ativa; recalque; impulsos agressivos/destrutivos.


Autor(es)
Alfredo Naffah Neto Naffah Neto
é psicanalista, mestre em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), doutor em psicologia clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), professor titular da PUC-SP no Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica?- núcleo "Método psicanalítico e formações da cultura". Publicou vários livros e artigos sobre psicanálise e música.


Notas

1 Cf. D. W. Winnicott, Deprivation and delinquency.

2 O termo concernimento é um neologismo proposto por Elsa Oliveira Dias para traduzir o termo inglês concern, que também podemos traduzir como consideração (pelo outro). Sobre o estágio do concernimento e a formação das patologias depressivas, existe a tese de doutorado de Ariadne Alvarenga de R. E. de Moraes denominada A contribuição winnicottiana para a teoria clínica da depressão, defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da puc-sp em 2005.

3 D. W. Winnicott, “Psycho-neurosis in childhood”, p. 69.

4 D. W. Winnicott, Human nature, parte iii, cap. 4: “Hypochondriacal Anxiety”, p. 95.

5 D. W. Winnicott, Thinking about children, p. 161.

6 Idem, ibidem, pp. 269-76.

7 Melanie Klein, que pensava num complexo de Édipo precoce e num superego arcaico, não teria qualquer dificuldade em classificar pelo menos o segundo caso citado como sendo de neurose infantil. Mas, não era assim que Winnicott raciocinava.

8 D. W. Winnicott, “Psycho-neurosis in childhood”, op. cit., p. 68.

9 Idem, ibidem, p. 69.

10 A formulação dessas patologias, no pensamento de Winnicott, não existe de forma completa e acabada. O que existe é uma série de indicações deixadas por ele, que pesquisadores contemporâneos têm tentado seguir, para produzir uma visão mais clara dessas indicações. Cito como exemplo a tese de doutorado de Elsa Oliveira Dias: A teoria das psicoses em D. W. Winnicott, defendida na puc-sp em 1998 e orientada por mim. As sínteses que exponho, aqui, sobre as diferentes patologias, seguem a minha interpretação singular, tais quais sugeridas por essas indicações winnicottianas.

11 O falso self cindido forma-se por meio de mimetizações de traços humanos de que o bebê dispõe no seu ambiente originário, como se, prematuramente, tentasse encontrar meios de responder às demandas ambientais, copiando fragmentos ambientais e formando com eles uma espécie de mosaico adaptativo. Funcionando como a única ponte com o exterior e recebendo sobre si todos os impactos ameaçadores, o falso self ocupa o lugar do self verdadeiro e dele se cinde, a fim de protegê-lo desses perigos. Mas possui uma estrutura frágil, que pode se decompor quando sobrecarregada pelas demandas ambientais.

12 Num artigo recentemente publicado, trato das diferentes formas de falso self em pacientes de tipo borderline, classificados em dois subtipos: esquizóide e “personalidade como se” (cf. Naffah Neto, A. “A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline – Revisitando Winnicott”, Revista Brasileira de Psicanálise, v. 41, n. 4: “Metáforas”, 2007, pp. 77-88).

13 D. W. Winnicott, “Psycho-neurosis in childhood”, op. cit., p. 70 (os grifos são meus).

14 D. W. Winnicott, “Fragments concerning varieties of clinical confusion”, in Psycho-Analytic Explorations, op. cit., p. 31.

15 Evidentemente, não se trata de a mãe se deixar ferir pelo bebê, mas da qualidade da resposta emocional que lhe devolve em seu olhar, de forma especular: imagem que tanto pode referendar quanto desqualificar os impulsos eróticos destrutivos do pequeno ser.

16 D. W. Winnicott, “Morals and education”, pp. 99-100 (os grifos são meus).

17 D. W. Winnicott, “Fragments concerning…”, op. cit., p. 30.

18 D. W. Winnicott,“Comment on Obsessional Neurosis and Frankie”. In D. W. Winnicott, Psycho-Analytic Explorations, op. cit., p. 158.

19 D. W. Winnicott, “Fragments Concerning…”, op. cit., p. 31.

20 A melancolia, para Winnicott, descreve uma patologia cujo principal mecanismo de defesa é uma repressão profunda dos impulsos instintivos (e dos motivos temáticos a eles associados), em função de seu componente agressivo/destrutivo, gerador de sentimentos de culpa insuportáveis. Nessa dinâmica, em que os impulsos ameaçam irromper o tempo todo, os sentimentos de culpa permanecem vigentes, mas totalmente desconectados de seus motivos originários. Por isso, o melancólico tenta dependurá-los em motivos totalmente exteriores a ele, o que – segundo Winnicott – constitui uma forma defensiva de nunca se aproximar dos seus motivos verdadeiros. O fato, justamente, de os impulsos reprimidos ameaçarem eclodir o tempo todo, pode levar à formação de uma estrutura obsessiva que produza uma confusão capaz de mantê-los irreconhecíveis, caso rompam o primeiro tipo de defesa. O sintoma melancólico pode aparecer como um mecanismo de defesa isolado, transitório, ou ser parte de uma psicose, quando predominam uma incapacidade geral de o paciente se relacionar com o mundo externo e uma desesperança total na sua capacidade amorosa/construtiva.

21 D. W. Winnicott, “Fragments concerning…”, op. cit. , pp. 31-2.



Referências bibliográficas

De Moraes A. A. R. E. (2005). A contribuição winnicottiana para a teoria clínica da depressão. Tese de doutorado, puc-sp.

Naffah Neto A. (2007). A problemática do falso self em pacientes de tipo borderline – RevisitandoWinnicott. Revista Brasileira de Psicanálise, v. 41, n.4, “Metáforas”, pp. 77-88.

Oliveira Dias E. (1998). A teoria das psicoses em D. W. Winnicott. Tese de doutorado, puc-sp.

Winnicott D. W. (1988). Human nature. London: Free Association Books.

_____ (1990). Deprivation and delinquency. London and New York: Routledge.

_____ (1989). Comment on obsessional neurosis and Frankie. In: Winnicott D. W. Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press.

_____ (1989). Fragments concerning varieties of clinical confusion. In: Winnicott D. W., Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press.

_____ (1989). Psycho-neurosis and childhood. In: Winnicott D. W. Psycho-analytic explorations. Cambridge/Massachusetts: Harvard University Press.

_____ (1990). Morals and education. In: Winnicott, D. W. The maturational process and the facilitating environment. London: Karnac.

_____ (1996). Thinking about children. London: Karnac.





Abstract
This article evaluates Donald Winnicott’s contributions to the theory and clinics of obsessive neurosis. Therefore, it discusses the function of the environment in the etiology of neurosis, comparing it with other pathologies; afterwards it develops Winnicott’s conception of obsessive neurosis. Finally, it discusses the clinical implications which result from such conception.


Keywords
obsessive neurosis; active disintegration; repression; aggressive/destructible drives.

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 TEXTO

Contribuições winnicottianas à clínica da neurose obsessiva

Winnicottian contributions to the clinic of obsessional neurosis
Alfredo Naffah Neto Naffah Neto


Winnicott afirmou, várias vezes, que pouco ou nada havia contribuído para a teoria e a técnica psicanalítica relativas às neuroses.

De fato, ninguém negaria uma maior importância às suas pesquisas sobre os períodos mais primitivos do desenvolvimento infantil, envolvendo contribuições à etiologia das esquizofrenias (e dos estados borderline). Ou deixaria de destacar a sua forma original de compreender as diversas formas de delinqüência e de tendência anti-social, associando-as a um certo tipo de privação ambiental e descrevendo os seus sintomas como pedidos de socorro [1]. De forma análoga, não poderia desconsiderar as suas complexas elaborações sobre o estágio do concernimento e a formação de toda a gama de patologias depressivas [2].

Entretanto, seria injusto levarmos essa sua afirmação sobre as neuroses ao pé da letra. Conforme tentarei mostrar ao longo deste texto, Winnicott deu contribuições importantes à compreensão e à clínica da neurose obsessiva. Curiosamente, entretanto, a histeria é parcamente referida em seus textos teóricos. Além disso, alguns de seus casos clínicos envolvendo sintomas fóbicos que, numa primeira avaliação, poderiam evocar uma histeria de angústia, revelam, numa análise mais cuidadosa, não se prestarem a tal classificação.

Vale a pena abrir um breve parêntesis aqui para rastrear essa questão da histeria nos textos winnicottianos. Em “Psycho-Neurosis in Childhood”, encontramos referência a “fobias” e “sintomas de conversão” como sintomas neuróticos [3]. No livro Human nature, lemos a seguinte afirmação: “…no estudo da histeria de conversão há algo a ser ganho de um exame da mistura original, feita pela criança, do corpo em si mesmo com sentimentos e idéias sobre o corpo” [4]. Ora, muito já se falou sobre o corpo do histérico, que nunca se confunde com o corpo biológico, mas que é o corpo erógeno, aquele das zonas erógenas, constituído por sensações, sentimentos e idéias. Portanto, até aí, nada de novo.

Além disso, nos estudos clínicos do livro Thinking about children, há pelo menos dois casos de fobia descritos que nos chamam a atenção. O primeiro é de um menino de doze meses que desenvolveu fobia de peixe, na alimentação, cujos sintomas desapareceram espontaneamente após alguns meses (o que, a princípio, nos sugere que eles não sinalizavam a existência de uma patologia estruturada) [5]. O segundo é de uma menina que, entre dezoito e vinte meses, desenvolveu fobia de “coisas que se movem” e cujos sintomas somente desapareceram após uma interpretação que lhe foi dada pelos pais, por orientação de Winnicott [6]. Em ambos os casos, aparece a dinâmica triangular criança-mãe-pai diretamente envolvida na produção dos sintomas (no primeiro caso, uma possessividade da mãe pelo filho, o que gerava ciúmes quando o pai alimentava o filho; no segundo caso, o nascimento de um irmãozinho e uma confusão gerada entre parto e evacuação). Há de se constatar, entretanto, que essas crianças escapam, pela precocidade dos sintomas, a uma menção possível a qualquer angústia decorrente da elaboração do complexo de Édipo, já que Winnicott pensava como Freud: que ele acontece entre os três e os cinco anos de idade (quando já há relações de objeto total) e que seus conflitos caracterizam as neuroses, no sentido pleno do termo. Nessa direção, Winnicott parece considerar ambos os casos descritos como expressão de sintomas isolados – decorrentes da dinâmica familiar – e não de neuroses estruturadas [7].

Constatado esse menor interesse de Winni­cott pela histeria, surge a questão de se ele não se justificaria pelo fato de ela ser a neurose mais estudada e elaborada por Freud.

É possível que sim. Conforme já salientei, Winnicott segue, em linhas gerais, as propostas freudianas na compreensão das neuroses, ou seja, concebe-as como girando em torno dos conflitos internos inconscientes associados à elaboração do complexo de Édipo e do complexo de castração. Ou, nos seus termos: “…conflito entre amor e ódio, entre o desejo de preservar e o desejo de destruir; e, num nível mais sofisticado, entre as posições heterossexual e homossexual na identificação com os pais” [8]. Esses conflitos geram angústia e as neuroses formam-se como defesas contra essa angústia. “E a principal defesa é o recalque”, ele nos diz [9]. Até aí, sem dúvida nenhuma, podemos concluir que não há nada de novo.

Winnicott também faz questão de diferenciar o papel – secundário, segundo a sua avaliação – que desempenham as falhas ambientais na etiologia das neuroses daquele que preside tanto a formação das esquizofrenias e patologias borderline, quanto das depressões e tendências anti-sociais, quando a importância do ambiente é primária e fundamental.

Nos parágrafos que seguem, procurarei rea­lizar uma breve exposição do impacto das falhas ambientais na formação dessas patologias (segundo minha interpretação do pensamento de Winnicott), para, a seguir, poder abordá-lo na etiologia das neuroses [10].

Grosso modo, as esquizofrenias (e patologias borderline) formam-se no que Winnicott denomina estágio de dependência absoluta, no qual o bebê vive totalmente fusionado ao ambiente (a quem cuida dele, mãe ou substituto) e sofre as falhas ambientais de forma também absoluta, tendo de formar um falso self cindido para lidar com elas, quando ultrapassam certo limiar de suportabilidade. Então, esse falso self, na função de escudo protetor, mantém o self verdadeiro resguardado do perigo, isolando-o tanto do ambiente perigoso quanto dos impulsos instintivos (ainda não apropriados), que se tornam ameaçadores quando não são satisfeitos pelo ambiente num tempo adequado. Isolado dessa forma, o self verdadeiro está fadado a permanecer num estado primário de não integração (ou de integração insipiente). Por outro lado, o falso self – tornado a ponte de ligação com o mundo –, quando sobrecarregado, sofre decomposições (já que é tão somente uma casca exterior, formada por mimetizações ambientais) [11]. Quando o falso self falha, o self verdadeiro é obrigado a expor as suas cisões e fragmentações originárias no confronto com as demandas ambientais, aí sem mediações. Então, o psíquico é praticamente invadido pelo mundo, produzindo estados fusionais e confusionais de grande magnitude (o assim chamado surto esquizofrênico).

Nessa concepção, o estado borderline designa a esquizofrenia latente, nos períodos em que o falso self funciona a contento, propiciando um escudo protetor ao self verdadeiro e algum tipo de adaptação ambiental possível. [12]

Quanto às patologias de tipo depressivo, elas formam-se mais tarde, no estágio do concernimento, quando o bebê já tem um self relativamente integrado, diferenciando um dentro e um fora e percebendo a mãe como alteridade. Nesse período, ele ainda depende da sustentação materna para acolher e referendar seus impulsos erótico-destrutivos e seus atos reparatórios (quando, no sadismo oral, advém a culpa pela fantasia de destruição do corpo materno). Nesse período, a boa sustentação e o acolhimento maternos fazem o bebê sentir-se capaz de reparar o que experimenta ter destruído, advindo daí uma possibilidade crescente de se apropriar dos seus impulsos erótico-destrutivos, sem que um sentimento de culpa produza a repressão dos mesmos. Temos de considerar que, neste período, dada a parca discriminação existente entre o mundo subjetivo e o mundo objetivo, uma fantasia de destruição é experimentada quase como um ato real. Essa possibilidade de apropriação dos impulsos instintivos pelo self infantil – propiciada pela sustentação materna no tempo – fará com que, mais tarde, a criança possa experimentar períodos saudáveis de depressão, ou seja, poderá recolher-se ao seu mundo interno para reacomodar impulsos destrutivos e amorosos, bons e maus objetos, com confiança, sem se sentir ameaçada ou culpada. De forma geral, as falhas ambientais, nesse estágio, geram as patologias depressivas, envolvendo uma repressão dos impulsos instintivos. Isso produz rebaixamento geral do tônus vital, cujo sintoma é um humor depressivo de fundo, transformado rapidamente em crise depressiva sempre que a criança necessita elaborar algum luto e não o consegue, devido a sentimentos de culpa intoleráveis, que impedem contato com seus impulsos agressivos/destrutivos. As patologias depressivas designam, pois, justamente, a impossibilidade da depressão saudável, situacional e necessária.

Por sua vez, as tendências anti-sociais formam-se, também, quando o bebê já diferencia o mundo interno do mundo externo e sofre uma privação que, de alguma forma, imputa ao ambiente: por exemplo, uma mãe que teve de ser hospitalizada por um período insuportável, dado o nível de maturidade da criança. Quando, mais tarde, aparece o sintoma anti-social de tipo: furto, mentira, ato incendiário, por exemplo, ele surge como uma cobrança de algo que a criança sente que o mundo lhe deve e também como tentativa de formar um sentimento de culpa inexistente. Diferentemente das patologias depressivas, em que o paciente sente que destruiu algo e se culpa por isso, a criança de tendência anti-social imputa a culpa ao ambiente e cobra uma reparação por parte dele. Casos não tratados tornam-se delinqüentes contumazes.

Na etiologia das neuroses, diferentemente dos três tipos de patologia acima descritos, a função do ambiente é secundária, já que temos aí uma criança já integrada como uma pessoa total, relacionando-se com outras pessoas totais e possuindo um mundo interno rico em fantasias. Mais do que isso: trata-se de uma criança que atravessou o estágio do concernimento e que teve de aprender (bem ou mal) a sustentar a ambivalência de seus impulsos erótico-destrutivos, no que Winnicott denominou círculo benigno: fantasia de destruição do corpo materno, sentimento de culpa e ato reparador, gerando crescente possibilidade de integração dos impulsos instintivos pelo self. Além disso, realizou (em maior ou menor grau) uma discriminação entre fantasia e realidade. São essas competências, recentemente adquiridas, que possibilitarão à criança enfrentar – sem grandes derivações patológicas – uma dinâmica triangular bastante mais complexa, envolvendo mãe e pai, intensa ambivalência afetiva e fantasias sexuais e de destruição (que, se puderem ser discriminadas de atos reais, não causarão tanto temor à criança).

Nesse sentido, segundo Winnicott, as neuroses dramatizam sempre conflitos internos inconscientes ligados a dificuldades de sustentar essa intensa ambivalência afetiva – característica do complexo edipiano –, bem como de diferenciar fantasia e realidade no âmbito dos desejos erótico/destrutivos que o constituem: desejo de posse amorosa da mãe e de destruir o pai rival, ao mesmo tempo que desejo de posse amorosa do pai e de destruir a mãe rival. E isso tudo associado a conflitos de identificação heterosse­xual e homossexual: o complexo de Édipo completo, tal como Freud e Winnicott o entendem.

Entretanto – e aí jaz, talvez, uma primeira contribuição importante de Winnicott – apesar de o ambiente ter uma função secundária na etiologia das neuroses, esta não é desprezível. Ele diz: “Vocês verão que o ambiente penetra no quadro das psiconeuroses determinando parcialmente a natureza do tipo de defesa” [13]. Isso significa que são certos tipos de marcas e de lembranças envolvendo eventos que predominaram na dinâmica mãe-bebê nos estágios anteriores – ou, mais precisamente, os sentimentos que elas produzem –, que determinarão os mecanismos de defesa de que a criança lançará mão, por ocasião do enfrentamento do complexo de Édipo. Se considerarmos que as capacidades (ou dificuldades) para o enfrentamento satisfatório da situação edipiana – ou seja, capacidade (maior ou menor) de sustentação da ambivalência afetiva amor-ódio e de discriminação entre fantasia e realidade – formaram-se nos estágios anteriores ao Édipo (especialmente no estágio do concernimento), essa afirmação winnicottiana parecer-nos-á totalmente justificável.

Ao falar de uma criança saudável, capaz de deprimir quando necessário – ou seja, de retrair-se ao seu mundo interno para sustentar e realocar impulsos destrutivos e amorosos, sentimentos de ódio e de amor –, Winnicott diz que ela tem como lembranças básicas alguém que lhe deu essa sustentação no passado para realizar trabalho análogo. E isso lhe propicia um sentimento de esperança, capaz de lhe dar auto-confiança no sucesso da tarefa. Ou seja: “Haverá uma acumulação de ‘memórias’ de boa maternagem, na época das primeiras conquistas com respeito à posição depressiva. No caso do obsessivo, em vez disso, haverá uma acumulação de ‘memórias’ de treino, ensino e implantação de moralidade” [14].

Ou seja, o mecanismo de defesa obsessivo eclode em crianças com dificuldades de se defrontar com seus impulsos agressivos/destrutivos, que foram patologicamente separados dos impulsos amorosos originários e são vividos em oposição a eles. Isso, em função de um rígido treinamento moral.

Pois, com relação a essa questão, é importante lembrar que Winnicott não aceita a noção de pulsão de morte, nem trabalha com um dualismo pulsional. Para ele, o componente agressivo dos instintos é, originalmente, parte integrante do impulso amoroso, emergindo sob a forma dos movimentos corporais do bebê (e somente adquirindo uma intenção destrutiva mais adiante, com o advento do sadismo oral). Ou seja, nos casos saudáveis, a maior parte desse componente agressivo aparece integrada às satisfações do Id e somente uma pequena porção dele permanece livre (necessitando, então, da oposição do corpo materno para ganhar vida e ser apropriada pelo self). Entretanto, no caso de inculcações morais, rígidas e precoces, pode haver uma cisão entre os componentes amorosos/construtivos e os agressivos/destrutivos dos impulsos, que passam, então, a ser vividos como separados e em oposição.

De forma geral, a obsessão, segundo Winni­cott, tem sua origem numa má sustentação materna do sadismo oral do bebê, seja retaliando os seus atos, seja devolvendo-lhe uma imagem maléfica de si próprio, quando morde o seio [15]. Considero que ela pode incluir, também, na sua gênese, um treinamento rígido e precoce dos esfíncteres, num período em que a criança ainda não possui a maturidade para tal, o que gera também efeitos patológicos: “…em termos de moralidade esfincteriana, é fácil ver que pais que esperam que a criança pequena consiga essas regulações antes de atingir o estágio no qual o auto-controle faz sentido estão privando a criança do sentido da conquista e da fé na natureza humana que vem do progresso natural do controle esfincteriano” [16]. Todos esses processos acabam por produzir uma falta de esperança, fé e confiança na natureza humana, que gera um medo intenso do mundo interno, quando predominam os impulsos agressivos/destrutivos e os assim denominados “maus objetos”; advém daí uma evasão de qualquer contato com a vida psíquica. Por isso, essas crianças são incapazes de uma depressão saudável e de sustentarem as suas ambivalências afetivas.

Mas como se processa o sintoma obsessivo, segundo Winnicott? Ele tem sua origem num processo de desintegração ativa, capaz de produzir no mundo interno um “grau de confusão inconscientemente mantida” para camuflar os impulsos agressivos/destrutivos, quando eles predominam sobre os amorosos/construtivos [17]. Essa desintegração ativa atua sobre o mundo interno quando este já se encontra razoavelmente integrado – o estágio do concernimento –, desconstruindo parte da organização conquistada. Por isso, o tipo de confusão produzida por ela é completamente diferente daquela que caracteriza os estados primários de não-integração. Além disso, ela produz, também, uma espécie de clivagem funcional do funcionamento intelectual, confinando os conflitos nessa dimensão e separando-a de todo o restante da personalidade. O sintoma obsessivo descreve, então, o funcionamento dessa esfera intelectual, que tenta controlar, organizar uma confusão à qual não tem acesso e que, por razões defensivas, precisa ser mantida. Por isso, está sempre fadado ao fracasso, o que gera a sua compulsão [18].

É preciso salientar, entretanto, que esse tipo de clivagem (da esfera intelectual), presente na formação do sintoma obsessivo, é totalmente diferente daquele que produz um falso self cindido, na formação das esquizofrenias e estados borderline. Fundamentalmente, porque ocorre num período posterior – o estágio do concernimento; portanto atua sobre um self já razoavelmente integrado, que tem, então, uma parte desintegrada por razões puramente defensivas. Além disso, a defesa, aí, protege o self do contato com impulsos agressivos/destrutivos do mundo interno, em função de sentimentos de culpa insuportáveis. Já o falso self cindido, do esquizofrênico/borderline, protege o self de falhas ambientais ou de impulsos instintivos ainda não apropriados, experimentados como geradores de um colapso total. São dinâmicas totalmente diferentes.

O sintoma obsessivo, segundo Winnicott, pode ser usado sempre que se tenta fugir da depressão e da mania (como defesa anti-depressiva), ou seja, pode aparecer em fases anteriores à do enfrentamento do complexo de Édipo. Entretanto, não é difícil imaginar o quanto uma criança com esse tipo de funcionamento mental terá suas dificuldades maximizadas quando precisar lidar com as ambivalências afetivas numa estrutura triangular e sobreposta, como a do complexo de Édipo completo. Mas é somente então que podemos falar numa neurose obsessiva, no sentido pleno do termo. Nela, o sintoma obsessivo é determinado pelas memórias de maternagem da criança de períodos anteriores ao complexo de Édipo. Mas é a dinâmica edipiana que constitui o núcleo central em torno do qual gira toda a formação neurótica.

Entretanto, poderíamos perguntar: o que aconteceu com o recalque que, até então, era pressuposto por Winnicott como o principal mecanismo de defesa das neuroses? Simplesmente desapareceu de cena?

Para analisar essa questão, tomarei como exemplo um paciente meu, neurótico obsessivo de sintomas brandos, desses que estão bastante próximos da normalidade, mas cuja dinâmica pode nos servir. O recorte analítico que trago aqui se situa numa fase em que começou a trazer para a relação transferencial os seus impulsos agressivos/destrutivos. O episódio aconteceu num dia em que utilizou o banheiro do consultório antes de iniciar a sessão e lá encontrou, pousado na janela, um copo que costumo usar para regar as plantas. Começou dizendo mais ou menos o seguinte: “Estranho você deixar esse copo no banheiro… Deve ser o seu copo de beber água… E se alguém resolver urinar no seu copo? Quando eu pensei nisso, eu tive medo de que alguém pudesse fazer isso comigo…”

Podemos perceber aí, implícito e camuflado, um desejo com um componente erótico-agressivo: erótico na fantasia de um pênis colocado no vazio de um copo; agressivo na idéia de urinar no lugar no qual o analista bebe água. Na minha vivência contratransferencial, entretanto, era o elemento agressivo que sobressaía (do erótico só fui tomar conhecimento ao retomar o fragmento aqui, para análise). Entretanto, a formulação do paciente não veio de forma direta, explícita, do tipo: “Vi o seu copo de beber água e tive vontade de urinar nele”. No seu discurso, é um “alguém” indefinido que pode ter esse desejo; na segunda formulação o desejo vira medo e é vivido na forma passiva (“medo de que alguém pudesse fazer isso comigo”). Isso indica que o contato direto, sem disfarces, com o impulso erótico-agressivo ainda era difícil. Como poderíamos interpretar as transformações do desejo originário, até atingir a forma verbal da fala do paciente?

Poderíamos pensar, seguindo os passos freudianos, que foi recalcado e retornou numa formação de compromisso, em que o sujeito da ação tornou-se indefinido. Entretanto, mesmo um sujeito indefinido pode ameaçar, já que pode ser qualquer um, inclusive o próprio paciente. Por essa razão – e seguindo os mesmos passos – poderíamos supor que o desejo necessitou assumir uma outra forma, disfarçando-se como medo, por meio de uma reversão da pulsão, da atividade para a passividade. Essa seria uma interpretação possível.

Se seguíssemos uma outra vertente, winnicottiana, pensaríamos numa desintegração ativa do desejo/pensamento em vários componentes que seriam, então, embaralhados, gerando uma confusão total, capaz de mascarar o sujeito do desejo. Nesse caso, minha experiência contratransferencial estaria confirmada, pois teríamos que supor que o componente agressivo/destrutivo era mais forte e suplantava o erótico; por isso, o sujeito de tal desejo precisava ser disfarçado. Teríamos de supor, também, que a defesa não teria sido totalmente bem sucedida e que o ressurgimento do impulso agressivo/destrutivo teria levado à sua projeção num objeto exterior, retornando numa fantasia paranóide.

Mas será que temos mesmo que escolher entre as duas interpretações? Não constitui a segunda interpretação uma outra forma de dizer quase a mesma coisa da primeira, com outras palavras? Ou seja, a versão winnicottiana não constitui, nesse caso, uma retomada da formulação freudiana, apenas numa linguagem mais própria ao referencial teórico do autor?

Sim e não. Sim, porque nos dois casos o que acontece é o mascaramento dos impulsos instintivos, sob diferentes ópticas. Não, porque as duas formulações carregam pressupostos diferentes e têm implicações também diversas. A formulação winnicottiana tem como pressuposto uma má resolução da fase depressiva (ou estágio do concernimento) e trabalha com a hipótese de uma confusão inconscientemente produzida e mantida; tem como corolário o sintoma obsessivo como tentativa malograda – produzida na esfera intelectual – de ordenar essa confusão; essa segunda hipótese é diretamente decorrente da primeira. Mas é inegável que Winnicott mantém, em algum nível, sob diferentes figuras, a idéia central do recalque freudiano: manter fora da consciência – ou dentro dela, mas de forma disfarçada, irreconhecível – algo que gera uma angústia insuportável.

Há pacientes nos quais os sintomas obsessivos alternam-se com sintomas depressivos temporários – em períodos em que o paciente consegue tolerar um contato maior com o seu mundo interno –, retornando novamente, em seguida, aos sintomas obsessivos. E há também aqueles que permanecem numa ou noutra categoria diagnóstica, sem alternância de sintomas [19]. São ainda possíveis casos mais graves, em que a neurose obsessiva pode mascarar uma dimensão psicótica da personalidade, em geral, de tipo melancólica. Nesse caso, a neurose funciona como uma primeira capa que, quando desmanchada, faz eclodir um núcleo psicótico, de maior gravidade.

Tomo, como exemplo de alternância de sintomas, esse mesmo paciente anteriormente descrito, nos momentos em que conseguia, por meio da análise, abandonar seus desejos de controlar, organizar e consertar o mundo. Geralmente, reclamava especialmente da “má educação” das pessoas no trânsito e nos lugares públicos e era tomado por raivas descontroladas, sentindo-se desrespeitado por todos e agindo no sentido de admoestar as pessoas, como se quisesse “educá-las”. Quando aumentava a sua possibilidade de contato com o seu mundo interno e os seus mecanismos obsessivos se abrandavam momentaneamente, caía num choro muito sentido que se debruçava num vazio. Quando tentava associar esse choro a algo, vinham motivos vagos e aparentemente inó­cuos: o crescimento dos filhos que logo os levaria para longe dele, a finitude de tudo na vida etc. Ou seja, puros “ganchos” temáticos que, naquele momento, podiam justificar o choro aparentemente injustificado. Mas, sem dúvida alguma, nesses períodos, conseguia um contato maior com a sua vida psíquica, a que pese o fato de o afeto estar, em grande parte, dissociado de seus temas originais. Essa dinâmica, entretanto, muito embora lembrasse a de uma melancolia – pelo menos, nesse aspecto dissociativo a que me referi –, não tinha a gravidade de um núcleo psicótico, mas apenas a de um sintoma melancólico transitório, que logo cedia lugar, novamente, aos obsessivos [20].

Para Winnicott, a cura da neurose obsessiva não se completa sem a análise do sadismo oral. Isso pressupõe, entretanto, além da ferramenta clássica na análise das neuroses – que é a interpretação da transferência –, alguma forma de manejo clínico, já que esses impulsos terão de ser revividos na relação transferencial e sustentados pelo analista, sem qualquer tipo de retaliação e podendo devolver ao paciente uma nova referência que repare a desqualificação originária do componente agressivo/destrutivo neles presente. Nesse período, é fundamental, também, o analista não sair de cena (por exemplo, planejando férias ou ausências de outros tipos para que não aconteçam justamente no período crítico em que essa dinâmica está se processando). Caso contrário, corre-se o risco de repetir as falhas ambientais originárias. Isso significa que esse tipo de análise pressupõe o mesmo tipo de manejo que Winnicott propõe para a as patologias depressivas não psicóticas.

Entretanto, nos casos em que a análise da neurose obsessiva faz eclodir um núcleo psicótico, a interpretação da transferência e o manejo têm de ser praticamente substituídos por uma outra ferramenta clínica: a regressão aos estágios de dependência nos quais as defesas psicóticas se formaram. Na psicose de transferência o paciente vive o analista como totalmente identificado aos seus objetos amorosos primitivos e não como um representante simbólico deles, como na neurose de transferência. Nesse caso, a interpretação torna-se ineficaz e prejudicial; a regressão ocorre de forma maciça, como uma segunda chance de o paciente retomar seu processo de desenvolvimento no ponto em que ficou truncado, graças ao ambiente terapêutico criado.

Mas, para Winnicott, algum tipo de processo regressivo deve ocorrer no tratamento de qualquer neurose obsessiva, já que ele propõe que a análise da confusão produzida pela desintegração ativa possa levar o indivíduo ao “…caos primário, a partir do qual se organizam amostras de auto-expressão individual. Em termos de estágios iniciais de desenvolvimento, isso corresponde ao estado primário de não-integração […]”. E conclui: “No nosso trabalho, encontramos grande alívio clínico quando a elucidação de uma confusão organizada defensivamente permite ao paciente atingir esse caos primário, central. Isso somente pode ser atingido, é claro, num ambiente de um tipo especial que eu denominei preocupação materna primária, quando a mãe (analista) que sustenta está identificada(o), num alto grau, com o ato de sustentar o infante. Nesse ponto de uma análise, alguns pacientes necessitam, de fato, serem sustentados, de alguma forma simbólica, por uma pequena quantidade de contatos físicos” [21].

Esse breve percurso nos é suficiente para concluir que a avaliação winnicottiana de não ter feito nenhuma grande contribuição à psicanálise das neuroses era mais fruto de sua modéstia do que qualquer outra coisa.


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