voltar ao sumárioResumo Resenha de "Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro" - Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Martins Fontes, 2001, 318 p. Autor(es) Cleusa Rios P. Passos é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. Notas 1. Todas as citações da obra de Fernando Pessoa aqui recobradas se encontram no livro de Leyla Perrone-Moisés, ainda que, por vezes, com contextualizações diferenciadas. 2. Em seu Inútil Poesia. São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.11. Abstract By Cleusa Rios P. Passos – review of Leyla Perrone-Moisés, "Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro"
Ms. Perrone-Moysés is the leading disciple of Roland Barthes in Brazil. Her book studies Pessoa’s heteronyms in an effort to understand the poet’s effort to “feel everything in every possible manner”. Pessoa’s attraction to the briefer forms of poetry is here reciprocated by a writing remarkable for its agility, which also takes the form of short chapters and essays. voltar ao sumário
| | LEITURAFernando Pessoa e a ficção do sujeitoFernando Pessoa and the fiction of the subject
Cleusa Rios P. Passos
Antes de ser reeditado em 2001, Fernando Pessoa, aquém do eu, além do outro (1982) de Leyla Perrone-Moisés, já se fazia fundamental à fortuna crítica do autor, merecendo leitura não apenas de especialistas, mas também dos interessados nas relações entre crítica, tradição literária e psicanálise. Em sua republicação, o livro ganha maior interesse com o acréscimo de uma segunda parte, dedicada à prosa, O livro do desassossego – manuscritos desordenados que vêm à luz em 1982 (até então apenas alguns fragmentos eram conhecidos...), reforçando o valor de Pessoa em nível internacional e reinstaurando discussões sobre sua trajetória inventiva.
Desde o início, há na proposta da ensaísta uma preocupação constante em focalizar diversas áreas do conhecimento que giram no interior da criação literária, sem que nenhuma seja fetichizada – procedimento teórico defendido por Roland Barthes e finamente posto em prática por ela na leitura do poeta. Adequada a seu objeto, tal escolha metodológica amplia as trilhas interpretativas da produção artística a ser rastreada, uma vez que esta suscita reflexões históricas, filosóficas, lingüísticas, psicanalíticas, etc., obrigando o leitor a deparar-se, incessantemente, com o deslizamento de sujeitos em função da multiplicidade que persegue Pessoa.
Com efeito, não lhe basta assumir a autoria de seus versos como ortônimo: é preciso multiplicar-se em heterônimos, que se desdobram, no ano de 1914, em três grandes poetas com características e biografias particulares: Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos – sínteses, no trabalho de Leyla, de diferentes ficções. O primeiro, um mestre bucólico, vinculado à existência e à busca de fusão entre sujeito e objeto, constitui a “ficção da reconciliação” (p. 119); o segundo, um “neo-clássico estóico”, sabe que não alcançará resposta para o “vazio do sujeito”, aflorando como “ficção da renúncia” (p. 120); o terceiro, o mais rico por subversões e contradições constantes, configura-se “ficção da loucura” (p. 121) e, nesta, o ato de fingir se caracteriza como forma de conhecimento (“Fingir é conhecer-se”). Para a ensaísta, também Pessoa “ele mesmo” pode ser “ficção da defesa” (p. 118) ou instaurar-se nos interstícios dos demais como “ficção do interlúdio” (p. 28 ).
Entretanto, criar poetas não basta ainda a Pessoa, e sua inquietação o leva a construir o semi-heterônimo Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros e autor de O livro do desassossego, espécie de “diário íntimo”, “projeto artístico” fragmentário, cujo eixo parece estar no desejo de “Sentir tudo de todas as maneiras” (p. 29/216) [1] – sensação explícita na lírica e reiterada na prosa. Dizer o mesmo sob várias formas é uma espécie de artimanha para tocar o outro, reforçando o conflito pessoano. E aqui se pode perceber uma das convergências entre a obra literária escolhida por Leyla Perrone e seu próprio desejo de capturar, criticamente, o máximo possível; ou seja, semelhante a seu objeto, não lhe foi suficiente a análise poética da primeira edição, a ponto de anos depois ampliá-la, retomando a prosa polêmica de Bernardo Soares.
Nova aproximação entre a ensaísta e Pessoa aqui se sublinha: o gosto pelas formas breves. Poesia e fragmentos de um lado, capítulos/ensaios de outro. Além de professora e crítica literária, Leyla Perrone-Moisés foi jornalista cultural durante anos, adquirindo familiaridade com “a arte de condensar /.../ e se dirigir a um público culto, mas não necessariamente especializado.” [2] Escrever textos curtos e consistentes é seu modo pessoal de produzir crítica. Aquém do eu, além do outro evidencia um pouco esse perfil de Leyla, enquanto sua organização preserva autonomia aos textos que o compõem. Por outro lado, como tratam de aspectos constitutivos da obra do autor português, ganham unidade e outro olhar interpretativo capaz de apresentar retornos, avanços, acréscimos e reelaborações, despertando o leitor para relações inusitadas.
A ordem linear dos capítulos pode ou não ser seguida, a escolha cabe ao leitor e a qualquer um dos integrantes da primeira parte, ou qualquer dos ensaios, da segunda, conduz ao multifário e fascinante universo de Pessoa. Difícil, todavia, escapar à curiosidade de conhecer o conjunto dos escritos, já que lacunas e fios antecipadores, presentes em um texto, são preenchidos ou recuperados em outro. Sem abdicar da complexidade de seu objeto, a literata suscita, por meio de uma escrita bastante clara, o desejo de (re)encontrar Pessoa. Vale lembrar que Aquém do eu, além do outro deixa entrever um traço marcante da recepção do poeta: não há trégua para o leitor seduzido por sua obra e ainda, vertiginosa, essa obra cria inquietantes paradoxos.
Expressivamente, dois capítulos (dedicados à poesia) “Pessoa Ninguém?” e “O Vácuo Pessoa” comportam, na própria nomeação, sugestões paradoxais, estabelecendo um jogo verbal entre o nome próprio, o ser humano e a negação de ambos, jogo em que se vislumbram aspectos recorrentes da poética de Pessoa, dentre eles o esvaecimento do sujeito e a luta entre identidade e alteridade, ilusório meio de escapar ao que o assombra e retorna em vários de seus versos: “Não sou nada/.../Sou uma ficção”.
O distanciamento necessário à análise da obra pessoana nunca permite respirar com tranqüilidade absoluta, e o intrigante processo que nos enreda se ancora tanto em seu desejo humano de constituir-se sujeito, quanto na impossibilidade de realizá-lo. A esse respeito, a ensaísta assinala que o poeta não oferece saídas, pois nunca as encontrou, mas consegue dar forma ao impasse, dizendoo literariamente. E é aí, nesse dizer, que aflora o fascínio pela palavra e seus jogos quase perversos, representativos de um problema a mais, ou seja, a tarefa impossível de se capturar a totalidade de sua produção.
Em linhas gerais, a questão marca os grandes autores, contudo o vate português a intensifica, ao insistir na tensão entre a ilusão da unidade e a multiplicidade imposta pelos heterônimos. Sintetizando o processo, Leyla Perrone propõe que a heteronímia se deve à “instabilidade essencial do Eu” e seu “desejo (no caso paradoxal) de ser um Eu mais consistente” (p. 108) e, ainda, para além da fértil imaginação artística, a heteronímia revela a ocultação de uma falta e de um excesso, aspectos deslocados para a contínua diversidade de Pessoa, condensados na entrega ao “estoirar de viver”, à “explosão para dentro” – constantes fulcrais em seus versos. Importa um dado singular: para a literata, a heteronímia não significa apenas “a multiplicação do mesmo em outros, mas o desencadeamento de uma alteridade tal que a volta ao Um se torna impossível” (p. 35).
Se não há inovação filosófica ou psicológica em ser vário e distinto, há uma modernidade radical em Pessoa, graças à experiência conflitante de certo sujeito vazio – ponto-chave a ser tratado pela ensaísta, que percebe a importância da psicanálise para seu intento. Sem ignorar a história, a filosofia, a tradição literária ou aportes de outras abordagens (a ocultista, por exemplo), embora lhes imponha determinadas ressalvas, o enfoque da teoria freudiana e sua releitura por Lacan é o suporte interpretativo para tentar contornar tal sujeito e sua radicalidade. A trajetória crítica de Leyla configura-se das mais adequadas à obra escolhida, porque leva em conta a importância da descoberta do inconsciente para a noção de sujeito, iluminando, já em 1982, ângulos de Pessoa pouco destacados por outras vertentes críticas.
Nessa direção, alguns conceitos sustentam seu trabalho. À guisa de exemplo, menciono a concepção freudiana do eu como construção imaginária e sua retomada por Lacan, situando a idéia no âmbito da linguagem (é bom lembrar que, para ele, o inconsciente se estrutura como uma linguagem) e incorporando aspectos da Lingüística (Jakobson, em especial). Dentre as confluências entre crítica literária e psicanálise, interessa à literata perceber o “eu como significante vazio” (p. 105) e seu aflorar na instância discursiva, dependendo desta para enunciar-se como sujeito: para ganhar sentidos o eu precisa adentrar a cadeia significante – no caso, a construção artística do poeta. Leyla também recorda que o sujeito lacaniano sempre se constituirá “alienado”, dependente do Outro (do código lingüístico) para configurar- se, resultando, portanto, em “efeito da linguagem”(p. 107). Por sua vez, e de maneira relevante, a teoria do psicanalista francês se entrosa à experiência poética de Pessoa, relacionada ao saber de linguagem e ao desejo de constituir-se. Esses vínculos destacam um dado a mais na valoração das criações do autor: sua resistência ao tempo, seu encanto e permanência enigmáticos à luz de novas leituras críticas.
Além das ligações felizes entre aspectos teóricos da psicanálise e os escritos de Pessoa, a ensaísta contempla diferentes saberes, de modo a alcançar o máximo de conexão possível entre eles. Desde os capítulos iniciais, busca pensar o contexto histórico-social de Pessoa, as aproximações com autores renomados da tradição ocidental (Baudelaire, Dostoievski, Hölderlin, Goethe, Hegel, Nietzsche, dentre outros), considerando, ainda, a complexa postura do poeta – “Gênio desqualificado” (47) – marcada pelo ceticismo irônico, pelo “niilismo europeu vivido à moda portuguesa” (p. 77) e pelos dados biográficos transfigurados pela palavra estética.
Contudo, um esclarecimento se faz necessário, quanto a críticas correntes em relação às intersecções entre literatura e psicanálise, com base nos traços da biografia de Pessoa. Apontar o poeta em crise de identidade, seus fortes elos com a língua inglesa, seu meio puritano ao lado das tendências homossexuais, sua modernidade e inteligência no ambiente morno de Portugal não significa tentar explicar a obra pela vida ou reduzi-la a uma espécie de exorcismo de fantasmas pessoais, mas uma forma de perceber o descompasso e a desproporção de Pessoa diante de seu contexto ou, nos termos de Leyla Perrone, o “transbordamento” (p. 16) do poeta em sua época.
Logo, importa a transfiguração de toda essa experiência em lirismo. Transbordei, não fiz senão extravasar-me, verseja Pessoa. Reafirmo, conta aqui a transfiguração literária, contam os aspectos pessoais que vão além dos fatos em si, inscrevendo- se em sua poesia e gerando um processo inventivo no qual os heterônimos e Pessoa ele mesmo fazem parte de uma ficção sem limites ou unidade, uma ficção de excessos, conforme a ensaísta, cuja postura, ao valer-se da teoria psicanalítica do sujeito, contraria parte da crítica (a que intenta explicar a heteronímia pelo mito do Criador e suas criaturas) e valoriza a moderna radicalidade do poeta, insistindo na função de sua arte. Em linhas gerais, Leyla contrapõe: ao sentimento de aniquilação de Pessoa o seu fazer poético, ao jogo da inteligência o dos afetos (incluindo sua história desejante e reprimida), ao vácuo-Pessoa a incessante substituição de significantes que constituem “a linguagem plena de um desejo tenaz” (p. 137)
Antes de adentrar a prosa de Bernardo Soares, a literata dedica um capítulo/ensaio a Alberto Caeiro, apontando outro liame com a alteridade, ao abordar a tradição budista como uma espécie de saída para a doença ocidental que engole Pessoa. É em Caeiro que tal aspecto se instaura mais nitidamente, e é ele, ainda, que cria haicais, permitindo analogias entre alguns traços da poesia oriental e outros da poesia contemporânea. O texto “Caeiro Zen” aborda a recusa do mestre ao cristianismo, sua opção pelo paganismo, as questões filosóficas e existenciais de suas produções aproximadas ao Zen, alguns dos primorosos haicais, ampliando as perspectivas de leitura da primeira parte de Aquém do eu, além do outro.
Entretanto, à primeira vista o capítulo pode sugerir uma ruptura com os anteriores, cujo fio interpretativo privilegiava a teoria psicanalítica do sujeito. Um olhar atento notará que, se Leyla busca um viés crítico mais adequado aos textos de Caeiro, ela não ignora os vínculos entre sujeito e objeto, ancorados no Eu, “base fundamental do Zen” (p. 166), articulando-os com o eu em Pessoa, base de sua poesia. Ora, diversificar as formas de apreensão do eu no interior dos heterônimos implica respeito às peculiaridades da proposta de cada um. A ruptura mencionada determina uma escolha, a de capturar a complexa questão do sujeito, graças ao apoio teórico que mais convenha à sua constituição na linguagem poética.
Em síntese, as distintas áreas visitadas por Leyla Perrone sublinham tanto um Pessoa que concentra inúmeros saberes em um verso, pronto a engendrar evocações para além dele, quanto um paradoxo fundamental: quanto mais o homem Pessoa se revela desqualificado, alcoólatra e falho, mais sua grandeza lírica exige reconhecimento. Inativo em aparência, dedica-se intensamente à tarefa de dar um lugar à poesia, num mundo que a considera inútil, alcançando, em última instância, o mito em Mensagem e a própria função da poesia,“que cumpre seu papel de arrancar valores de onde eles parecem ausentes” (p. 80) – na afirmação da ensaísta.
Recobro, então, uma de suas observações iniciais, concernente à transformação de Pessoa-Ninguém em alguém, por meio do trabalho de ativar a linguagem e preservar sua integridade no sentido de precisão, sem perder a possibilidade de sugestões que essa linguagem oferece. Se o poeta concebia a língua “como arma fundamental ao imperialismo cultural que sonhava para seu país”, na prática sua obra o contradiz, já que integra culturas e abre “virtualidades insuspeitadas” (p. 89) de pensamento e ação. Perspicaz, ele declarava: É a arte, e não a história, que é mestra da vida” e, sabemos, sua arte se desdobra em experiência a ser legada à posterioridade.
Herança infinita, a um tempo pertencente a todos, e vacante, pode ser retomada por modos distintos de leitura, dependendo de cada época. Seu impacto é tal que até os manuscritos desorganizados do semiheterônimo desencadeiam grande fascínio nos leitores. O Livro do desassossego ganhou publicações apoiadas em reordenações hipotéticas de textos fragmentários, alguns encontrados em envelopes, outros escritos com caligrafia críptica. Os vários ensaios reunidos em Aquém do eu, além do outro não só tratam da prosa de Bernardo Soa- Cleusa Rios P. Passos é professora de Teoria Literária e Literatura Comparada da USP. res como “projeto inacabado” (p. 220), indefinido e belo, mas também estabelecem diálogos com os três heterônimos de Pessoa, além de pensar a tradição que o ancora (Poe, Baudelaire, Mallarmé, etc.,) e refletir sobre questões relacionadas à psicanálise, dentre elas, a sexualidade, o voyeurismo, os registros lacanianos, o unheimlich freudiano etc.
Contudo, interessa salientar algo de Soares que atrai especificamente os psicanalistas: sua preocupação fundamental em dizer bem (p. 218) – algo próximo ao desejo da psicanálise, se pensarmos na prática do divã e na busca de dar forma ao inter-dito ou reconfigurar o mal-dito. Logo, a confluência ocorre pelas formas de dizer bem, já que para Bernardo Soares – semelhante ao analista – tal intento ultrapassa as regras gramaticais ou concepções da tradição dos gêneros literários. De certa maneira, tal alternância instaura a diferença entre a expressão do poeta e a voz da psicanálise (pontuação e rearranjo verbal ): a primeira é arte, a segunda não.
Se ambas privilegiam a linguagem, suas formas de elaboração são distintas, tanto que cabe a Soares, e não ao analista, preocupar-se com a tradição dos gêneros. Importa, porém, a convergência entre as duas e seus maiores elos, os que envolvem a vida e a cura pela arte. Que arte? pode-se indagar. A de dizer bem e, mais, a de dizer bem artisticamente! Fina leitora, Leyla lembra que ficção, talvez, seja a palavra a dar conta do “modo como o inconsciente se diz na poesia” (p. 114) e encerra seu livro articulando todos esses vínculos com uma citação textual de Bernardo Soares, sugestiva do caminho pelo qual Pessoa teria se salvado: A maioria da gente enferma de não saber dizer o que vê e o que pensa. Acrescento que, se cabe à arte revelá-lo, aos analistas e aos críticos cabe pontuá-lo numa saudável aproximação de conhecimentos, reconhecendo suas singularidades.
Leyla Perrone-Moisés entendeu sua função como leitora crítica e a cumpriu – e entro em seu jogo do “dizer bem” – beneficamente: em linhas gerais, porque foi umas das primeiras a valorizar, no Brasil, as confluências teóricas entre literatura e psicanálise que contemplam Lacan, sem temer o emprego literal de sua terminologia ou ressalvas da crítica consagrada. Mais especificamente, porque tal perspectiva lança luz sobre ângulos da obra pessoana, obscuros para outras modalidades críticas. Guardadas as devidas proporções, sua postura parece análoga à dos poetas que, segundo ela, ao encontrar o caminho exato das palavras, exercem um papel benfazejo (p. 318).
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