voltar ao sumárioResumo Resenha de "Circuitos da solidão – Entre a clínica e a cultura" - Bernardo Tanis. São Paulo, FAPESP/Casa do Psicólogo, 2003, 205 p. Autor(es) Nelson Ernesto Coelho Jr. é psicanalista, doutor em Psicologia Clínica (PUCSP) e professor do Instituto de Psicologia da USP. Autor, entre outros livros, de A Força da Realidade na Clínica Freudiana e Dimensões da intersubjetividade (organizado em conjunto com Perla Klatau e Pedro Salem). Abstract By Nelson Coelho Jr. – review of Bernardo Tanis, Circuitos da Solidão
This new book by Bernardo Tanis discusses different forms of solitude, taken from a wide variety of situations, including fiction, psychoanalytic treatment and social circumstances. A theoretical elaboration is proposed to clarify why they are varieties of the same basic constellation, even if their appearance would not suggest this at a first glance. voltar ao sumário
| | LEITURASolidão: Dimensões de vida e morteSolitude: dimensions of life and death
Nelson Ernesto Coelho Jr.
Esse novo livro de Bernardo Tanis expõe diferentes circuitos de solidão por meio do encontro de investigações históricosociais e da literatura moderna com a teoria e a clínica psicanalíticas. Apresenta a experiência contemporânea da solidão, revelando as tramas formadas por múltiplos fios existenciais, históricos e sociológicos.
Eu queria estar só de um modo inusitado, totalmente novo. O oposto do que vocês pensam: isto é, sem mim e, portanto, com um estranho por perto. (...) Assim eu queria estar só. Sem mim. Quero dizer, sem aquele “mim” que eu já conhecia ou pensava conhecer. Sozinho com um certo estranho que eu já sentia obscuramente não poder afastar para longe, que era eu mesmo: o estranho inseparável de mim. Com essa passagem Luigi Pirandello inicia a apresentação do desespero vivido por Vitângelo Moscarda, a partir da descoberta de que ele era mais (e menos) do que até então imaginava ser. No romance Um, nenhum, cem mil, de 1926, Pirandello revela as múltiplas facetas dos encontros e desencontros do personagem consigo mesmo, colocando em relevo o que há de solitário nessa experiência particular de contato. Apresenta uma situação existencial que acaba impondo, paradoxalmente, a impossibilidade da plena solidão. No refúgio solitário mais íntimo aparece a mais estranha das companhias. Para ouvidos acostumados à psicanálise nada do que escreve Pirandello pode soar estranho. Gostaria de ressaltar, entretanto, o lugar central que a experiência de solidão ocupa na vasta trama de elementos que compõem a descrição, o reconhecimento e a construção da subjetividade moderna por Pirandello, o que nem sempre é reconhecido no campo das investigações psicanalíticas.
A habilidade literária do grande romancista e dramaturgo italiano revela, ao mesmo tempo, as vicissitudes de uma experiência individual com a qual podemos nos identificar, e o retrato das grandes transformações vividas no campo das experiências subjetivas a partir do início da era moderna. Distantes da época em que se vivia em sociedades fechadas, onde os valores centrais eram sempre coletivos e a experiência subjetiva era praticamente inexistente (ou melhor, estava ainda por ser “inventada”), a maior parte das sociedades modernas e contemporâneas parece caracterizar-se por um forte individualismo. Como uma das marcas das sociedades individualistas pode-se reconhecer as diferentes formas de isolamento que indicam a busca, às vezes desesperada, por refúgios diante das exigências colocadas por outros seres humanos ou diante das exigências produzidas por suas próprias experiências subjetivas. Muitos desses refúgios podem ser descritos como voluntários e reconhecidos como “positivos”, mas há que se reconhecer também aqueles que indicam a presença de um sofrimento patológico. Para além de reduções sociológicas, estatísticas, psicopatológicas e, por mais paradoxal que seja, até mesmo para além das reduções estéticas da solidão, caberia enfatizar o caráter simultaneamente indispensável e doloroso, ou ainda o caráter simultaneamente vital e mortífero de cada experiência de solidão.
Características de muitas experiências de solidão vividas na modernidade tardia, o desejo de solidão e as angústias de solidão que acompanham Vitângelo Moscarda, personagem de Pirandello, em sua busca identitária, poderiam estar lado a lado com as importantes referências literárias e psicanalíticas que compõem os Circuitos de Solidão propostos por Bernardo Tanis em seu novo livro. Psicanalista com sólida experiência clínica, Bernardo Tanis, como ele mesmo explicita, transformou-se em visitador de solidões na construção deste trabalho engenhoso, originalmente uma tese de doutorado em Psicologia Clínica defendida na PUC-SP.
Diferentes circuitos de solidão são expostos por meio de uma química equilibrada produzida no encontro das investigações histórico sociais e da literatura moderna com a teoria e a clínica psicanalíticas, revelando a riqueza de tramas formadas por múltiplos fios existenciais, históricos e sociológicos. Bernardo Tanis entende que seu trabalho revela um caráter híbrido de construção e pesquisa, ou em suas palavras, “o psicanalítico imbricado no social.” Com isso, como o próprio autor parece reconhecer, não é fácil escapar das armadilhas gêmeas: ou bem se reduz o social/cultural aos exemplos particulares oriundos da clínica e de obras literárias, ou bem se acaba por diluir o que há de singular nas experiências de solidão no vasto caldo cultural/social. Ou seja, o desafio colocado para um projeto de pesquisa construído nesses moldes é o de preservar, de um lado, as exigências de caráter mais generalizante impostas pelas amplas visadas da genealogia e história da cultura; e, de outro lado, trata-se de preservar as vicissitudes singulares das experiências de solidão, que em seu extremo não devem ser confundidas com os aromas de uma época. Pensar a partir da “história social encriptada no sujeito individual”, como propõe Bernardo Tanis, pode ser uma das saídas para essas armadilhas. Insistir na singularização da clínica psicanalítica com sujeitos que revelam suas experiências de solidão é outra. Fica-se reassegurado das intenções do autor quando ele explicita que “como visitador não pretendo inventariar nem classificar solidões. Também não serei um colecionador.”
No primeiro capítulo do livro, a partir de uma investigação histórica da cultura ocidental, com ênfase na modernidade e na contemporaneidade, Bernardo Tanis procura mapear o lugar das experiências de solidão na construção da subjetividade moderna. Certo de que a solidão é um fenômeno cultural polifônico e polissêmico, reconhece a necessidade, seguindo as pistas indicadas por Richard Sennett, de um olhar mais atento para a construção moderna das categorias de eu, indivíduo e sexualidade, como meio para se reconhecer os circuitos de solidão engendrados nas sociedades modernas e contemporâneas. Nas páginas iniciais já se pode apreciar a seriedade e o rigor que caracterizam os bons trabalhos de pesquisa em nosso meio acadêmico. Mas nem de longe essas características comprometem a fluidez de um texto que consegue aliar precisão a um permanente convite ao diálogo com o leitor. No segundo capítulo, construído a partir de uma seleção de contos que vão de Edgar Allan Poe a Kafka, passando por Machado de Assis, a marca do diálogo fica ainda mais evidente. Resumos dos contos, acompanhados de comentários, destacam imagens da solidão nas quais nos reconhecemos e que ampliam o diálogo entre autor e leitor, multiplicando os efeitos especulares promovidos pela boa literatura moderna em seu contato com a psicanálise.
O terceiro capítulo é dedicado ao tema “Solidão e psicanálise”. Bernardo Tanis retoma, em companhia de teorias psicanalíticas sobre a solidão, elementos centrais dos contos apresentados no segundo capítulo, acrescidos de ilustrações clínicas que acabam por ampliar os circuitos de solidão anunciados pelos exemplos retirados da literatura moderna. A sólida articulação entre a experiência clínica e as proposições psicanalíticas de autores como Freud, Winnicott, Green, Dolto, Klein e Rank solidifica um campo de reflexão que o autor denomina “metapsicologia da solidão”. Entre as angústias infantis de separação e as angústias que envolvem as experiências de profunda indiscriminação euoutro, emerge um campo fundamental de exploração teórica sobre a solidão, que talvez possa ter como principal epígrafe o delicado paradoxo proposto por Winnicott: “É um sofisticado jogo de esconder em que é uma alegria estar escondido mas um desastre não ser achado.”
O último capítulo, “Solidão e mal-estar”, procura estabelecer correlações entre traços centrais de nossa cultura contemporânea (tecnologia massificante e saídas narcísicas) e as experiências de solidão. São convocados para o debate exemplos retirados de filmes recentes (como “Denise está chamando” e “Felicidade”) e teorizações da sociologia (por exemplo, os trabalhos de Giddens), visando ampliar o retrato das experiência de solidão no contexto das crises da subjetividade contemporânea. Longe de se alinhar aos autores que fazem dos discursos negativos e negativistas a sua maior forma de apelo ao leitor, Bernardo Tanis procura resgatar, sem otimismos cor de rosa, a positividade inerente às experiências de solidão. Mas aqui, winnicottianamente, a solidão aparece viabilizada por um outro. É a condição de estar só na presença de alguém, alguém que possibilite o estado inicial de isolamento (modelo da mãe suficientemente boa e, eventualmente, do analista) que aparece conjugada às formas criativas e transformadoras das experiências de solidão. Assim, talvez não seja exagero apostar, ao lado do autor, “na recuperação do potencial transformador e criativo da solidão, tanto no campo da subjetividade individual como no campo social.” Trata-se de revalorizar formas de experiências de contato assegurador e de separação vital. Nesse campo, alguns circuitos de solidão podem ser reinventados e ritmos mortais de solidão podem ser revertidos em ritmos vitais.
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