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Resumo
Este artigo é, de fato, a reunião de dois trabalhos apresentados no Colóquio "100 anos do Pequeno Hans", no Instituto Sedes Sapientiae. Ambos tratam do esquecimento da importância ou do pioneirismo dos autores, que abordam: o primeiro, a partir de Sobre os conflitos da alma infantil, de 1910, de Jung, o segundo, de Contribuição para o conhecimento da alma infantil, de 1912 de Sabina Spielrein. Estes foram os primeiros ensaios sobre o psiquismo e a sexualidade infantil depois do Pequeno Hans.


Palavras-chave
pequeno Hans; criança; sexualidade infantil; recalque; história da psicanálise.


Autor(es)
Adela Stoppel de Gueller Gueller
é psicanalista, mestre e doutora em psicologia clínica PUC-SP, pós-doutora em psicanálise pela Uerj, professora do curso de especialização em teoria psicanalítica da Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (Cogeae) da PUC-SP, coordenadora do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.

Renata Udler Cromberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo.


Notas

1. Artigo elaborado a partir dos trabalhos apresentados em mesa-redonda sobre história da psicanálise com crianças, no Colóquio 100 anos de Psicanálise com Crianças, realizado nos dias 28 e 29 de agosto de 2009, no Instituto Sedes Sapientiae, em São Paulo.

2 C. G. Jung, "Sobre os conflitos da alma infantil".

3 "Contribuições para o conhecimento da alma infantil" in M. Guibault e J. Nobécourt, Entre Freud et Jung.

4 A citação está em Danièle Brun, "El niño, el pediatra y el psicoanalista. Perspectiva clínica y teórica" in Pediatría y psicoanálisis.

5 O texto foi publicado pela primeira vez em Jarbuch fur psychoanalytische und psychopathologische Forschungen II?- Anuário para pesquisas psicanalíticas e psicopatológicas II, p. 33-58 e hoje o encontramos em C. G. Jung, "Sobre os conflitos da alma infantil", in O desenvolvimento da personalidade, vol. XVII in Obras Completas, p. 27.

6 S. Freud, "Nuevas conferencias de introducción al psicoanálisis", vol. XXII in Obras Completas, p. 109.

7 O verdadeiro nome de seu irmãozinho?- Franzli, no texto?- era Fritz.

8 C. G. Jung, op. cit., p. 13.

9 Freud e Jung foram convidados por Stanley Hall?- então reitor?- para celebrar os 20 anos da Clark University, em Massachusetts. Freud foi substituindo Wundt, que recusou o convite, e, por insistência de Jung, Hall chamou Freud.

10 Das três, essa palestra foi a única publicada em alemão na Jarbuch, II (1910) como "UberKonflikte der Kindlichen Seele", CW 17.

11 S. Freud, "Cinco conferencias sobre psicoanálisis", 1910, vol. XI, op. cit., p. 39.

12 C. G. Jung, op. cit., p. 14.

13 C. G. Jung, op. cit., p. 14.

14 C. G. Jung, op. cit., p. 16.

15 "A: ‘Quando for grande, quero ser ama.' Mãe: ‘Eu também queria ser ama.' A: ‘E por que não foi?' Mãe: ‘Porque fui mamãe.' A: ‘Então, eu vou ser como você? Vou morar em outro lugar? Vou poder falar com você?'" (C. G. Jung, op. cit., p. 20).

16 No dia 28 de dezembro de 1908, houve em Messina, Itália, um terremoto que destruiu a cidade e deixou 75 mil mortos.

17 C. G. Jung, op. cit., p. 21.

18 Pergunto-me se Aninha já não teria sabido que os mortos são enterrados, com o que nascimento e morte poderiam voltar a se enlaçar de um modo aterrorizante. Será que, antes de nascer, os irmãos estavam enterrados, como os mortos? E ela, onde estava antes de nascer?

19 O verdadeiro nome de Sofia era Grethli, que nesse momento tinha 3 anos. Ela ridicularizava a teoria da cegonha dizendo que ela não só tinha trazido o irmãozinho como também a ama.

20 C. G. Jung, op. cit., p. 22.

21 O. Mannoni, "Ya lo sé, pero aún así...", in La otra escena: claves de lo imaginario, p. 9-27.

22 J. Lacan, Seminario IV, La relación de objeto.

23 Ver comentário sobre esse tema em R. Yafar, Fobia en la enseñanza de Lacan, p. 125.

24 Lembremos que o irmão grande era dono de muitos animais.

25 A menina tinha uma arca de Noé de brinquedo cuja tampa se abria na parte superior.

26 C. G. Jung, op. cit., p. 46.

27 C. G. Jung, op. cit., p. 47.

28 O. Mannoni, "A desidentificação", in M. Mannoni et al. As identificações na clínica e na teoria psicanalítica, p. 179.

29 C. G. Jung, op. cit., p. 47.

30 Outro episódio. Aninha briga com a irmã, que lhe diz: "Vou matar você." Aninha: "Quando eu estiver morta, você vai ficar sozinha e terá que pedir a Deus para lhe dar um bebê vivo." A irmã, ajoelhada, suplica para ela lhe dar uma criança. Aninha, diz Jung, tornou-se uma deusa da fecundidade (para a irmã).

31 Nós não criamos novos símbolos, transmitimos os antigos, que permanecem quase idênticos por séculos. Muitos símbolos transformaram-se em lendas ou em superstições de origem desconhecida, diz Jung.

32 Retomaremos essa cena, que é comentada por Freud em carta a Jung.

33 A carroça carregada representava a gravidez.

34 Também representado pelo jardineiro.

35 S. Freud, A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, p. 227. (Em carta de 25 de janeiro de 1909.)

36 C. G. Jung, op. cit., p. 35.

37 C. G. Jung, op. cit., p. 35.

38 C. G. Jung, op. cit., p. 36-37.

39 O termo é usado pelas crianças para se referirem ao traseiro ou aos genitais. Parece ser anterior à distinção entre vagina e ânus.

40 Deve vir de Fud, que teria significado "traseiro". Futz foi preservada para os genitais femininos. S. Freud, A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, op. cit.

41 S. Freud, A correspondência completa de Sigmund Freud e Carl G. Jung, op. cit., p. 362. (Em carta de 18 de agosto de 1910?- grifo nosso.)

42 No ano anterior, 1909, Jung publicara um artigo justamente sobre esse tema (C. Jung, A importância do pai no destino do indivíduo). Esse texto está no mesmo volume da Jarbuch fur Psychoanaytische und Psychopatologische Forschungen, em que Freud publicou a "Análise de um menino de 5 anos (o caso Hans)". Esse artigo foi publicado em C. G. Jung, "Freud e a psicanálise", vol. IV, in Obras Completas, op. cit., p. 291-310.

43 C. G. Jung, Memórias, sonhos e reflexões, p. 142.

44 C. G. Jung, "O desenvolvimento...", op. cit., p. 27.

45 Carta de 19 de janeiro de 1909, apud R. Levy, Lo infantil en psicoanálisis. La construcción del síntoma en el niño, p. 94.

46 C. G. Jung, "O desenvolvimento...", p. 66-67.

47 E. Roudisnesco, "Carl Gustav Jung: do arquétipo ao nazismo", p. 45-46.

48 Este texto foi elaborado a partir da minha tese de doutoramento O amor que ousa dizer seu nome?- Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise.

49 A. Carotenuto: Diário de uma secreta assimetria, p. 201.

50 A. Carotenuto, op. cit., p. 202.

51 A. Carotenuto, op. cit., p. 202.

52 D. Bair, Jung, uma biografia, v. 1, p. 322.

53 A. Carotenuto, op. cit., p. 207.

54 D. Bair, op. cit., p. 261.

55 D. Bair, op. cit., p. 322. A autora comenta, na mesma página, que diversas vezes em sua vida e de diferentes maneiras, Jung descreveu seu comportamento adúltero durante esse período. Referindo-se à teoria de que existe um elemento feminino em cada homem (do mesmo modo que há um ‘animus' em cada mulher), Jung se desobrigava de assumir a responsabilidade por suas ações. "Na época eu estava no meio do problema da ‘anima'". Em outras ocasiões, ele ficava acanhado e se justificava fazendo comentários do tipo: "O que se poderia esperar de mim??- a anima me mordeu na testa e não quis largar". Mas, em geral, ele era presa de angústia por ser apanhado numa situação que sentia não poder controlar, e não tentava dar explicações racionais nem a seu próprio favor. "Simplesmente continuou a fazer o que achava que devia ser feito para se explicar para si mesmo" (p. 322).

56 A. Carotenuto, op. cit., p. 208.

57 A. Carotenuto, op. cit., p. 208.

58 D. Bair, op. cit, p. 333. O Clube Psicológico teve um primeiro núcleo composto só de mulheres, enquanto Jung enfrentava seu desesperador breakdown psíquico?- de 1913 a 1917, após a ruptura com Freud?- entre elas Emma, a esposa, Toni, a amante e Edith Mackcormak, a filha de Rockfeller e financiadora do Clube. As primeiras reuniões foram destinadas ao estudo da situação da mulher ao longo da história. Na mesma época em que o Comitê Secreto, composto apenas de homens, dava suporte ao recrudescimento político do movimento psicanalítico em torno de Freud.

59 A. Carotenuto, op. cit., p. 218.

60 A. Carotenuto, op. cit., p. 219.

61 A. Carotenuto, op. cit., p. 219.

62 Tese de doutoramento O amor que ousa dizer seu nome?- Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise, defendida em abril de 2008, no IPUSP.

63 E. Roudinesco; M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 357.

64 E. Roudinesco; M. Plon, Dicionário de psicanálise, p. 430-4.

65 S. Spielrein, "La genèse dês mots enfantins Papa et Mama", in M. Guibault e J. Nobécourt, Entre Freud et Jung, 1981.

66 S. Spielrein, "Quelques analogies entre la pensée de l'enfant celle del'aphasique et la pensée subconsciente", in Sämtliche Schriften.

67 R. U. Cromberg, O amor que ousa dizer seu nome?- Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise, p. 242.

68 H. Hug-Hellmuth, "A study of the mental life of the child", e Aus dem Seelenleben des Kindes.



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Abstract
This paper results from the combination of two communications at the symposium A Hundred Years of Little Hans, in the Instituto Sedes Sapientiae (São Paulo). Both deal with the forgetting of pioneerism: one taking as its objesct Jung’s 1910 essay “On the conflicts of the infantile soul”, the other focusing on Sabina Spielrein’s 1912 “Contributions to the knowledge of the soul of children”. Those were the fi rst texts about psychoanalysis with children after Freud’s Little Hans.


Keywords
Little Hans; child; infantile sexuality; repression; history of Psichoanalysis.

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 TEXTO

Quando não se pode mais esquecer

C. G. Jung e Sabina Spielrein nos primórdios da psicanálise com crianças [1]


When we can´t forget anymore
C. G. Jung and Sabina Spielrein in the beginning of the psychoanalysis with children
Adela Stoppel de Gueller Gueller
Renata Udler Cromberg


Este artigo procura traduzir nosso espanto a partir de um acontecimento que se deu durante a apresentação de nossos textos numa mesa-redonda sobre história da psicanálise de crianças no Colóquio 100 Anos do Pequeno Hans, organizado pelo Departamento de Psicanálise de Crianças do Instituto Sedes Sapientiae.
Por acaso, ambos falavam do esquecimento da importância ou do pioneirismo. Um se referia ao texto de Jung publicado em 1910, Sobre os conflitos da alma infantil [2], e o outro, ao de Sabina Spielrein, Contribuições para o conhecimento da alma infantil [3], publicado em 1912. Eram os dois primeiros ensaios publicados sobre tentativas de compreensão do psiquismo da criança a partir da sexualidade infantil depois do caso do Pequeno Hans, publicado por Freud em 1909. Produziu-se uma reflexão para além deles que aponta para o fato de que, assim como na clínica, a força do levantamento do recalque traz uma cadeia associativa rica em ressignificações, que geram movimento também no trabalho vivo e permanente da história da psicanálise.

Jung: um nome proibido, uma história perdida
Adela Stoppel de Gueller

Com grande surpresa, numa nota de rodapé [4], descobri o caso Aninha, pseudônimo de Agathli, a filha mais velha de Jung. Nunca tinha ouvido mencionar esse caso, que se revelou fundamental na história da psicanálise com crianças. Publicado no ano seguinte ao de Hans, o caso de Aninha apresentava, segundo as palavras de Jung, "tão notáveis analogias com as (observações) de Freud e as completava tão admiravelmente, que não pude resistir ao desejo de dá­ las a conhecer" [5].

Mas, se complementava tão admiravelmente o de Hans, por que esse caso não tinha chegado a nós? Por que Jung só pode ser mencionado hoje como alvo de críticas, e não como alguém que fez contribuições à psicanálise?

O fato de as teorias sexuais relatadas serem de uma menina de idade próxima à de Hans instigou-me a estudar o caso. Haveria diferenças entre as teorias sexuais de Aninha e as de Hans? Ou "a menina era mesmo um homenzinho", como afirmara Freud na Conferência sobre a feminilidade? [6]

Aninha era uma menina inteligente e sã que nunca tinha apresentado sintomas neuróticos e que, por volta dos 3 anos, começou a expressar desejos concebidos por sua imaginação (Phantasie-Wunsche). Como Hans, acabava de ganhar um irmãozinho, Fritz [7], de quem desejava se ver livre, o que suscitou a proliferação de teorias sexuais e uma fobia de terremotos.

Como Melanie Klein, Jung escreveu esse caso omitindo que se tratava de sua filha: "recebi de certo pai, entendido em psicanálise, uma série de observações a respeito de sua filhinha de 4 anos" [8].

O caso foi apresentado como uma conferência há exatamente 100 anos, em 1909, na Clark University, com a presença de Freud [9] - ele deu as futuramente famosas "Cinco conferências sobre psicanálise" -, e Jung fez três palestras; nas duas primeiras, falou sobre seu método de associação de palavras e, na terceira, sobre Aninha [10]. Freud menciona o caso uma única vez, na quarta conferência: "Devo lembrar-lhes que meu amigo Dr. C. G. Jung, há poucas horas, nesta mesma sala, lhes expôs a observação de uma menina ainda mais nova, que pelo mesmo motivo do meu paciente (nascimento de um irmãozinho) evidenciava quase os mesmos impulsos sensuais e idêntica formação de desejos e complexos" [11].

Jung expõe o caso seguindo o mesmo método clínico que Freud no caso Hans: inicialmente, conta anedotas isoladas, depois se detém no surgimento da fobia e em sua resolução e encerra com considerações.

O início da atividade investigativa: a teoria da reencarnação

A primeira cena relatada é um diálogo entre a menina e a avó. Aninha pergunta sobre as rugas no rosto da avó, que responde que se devem ao fato de ela ser velha. A menina então pergunta: "Mas você vai voltar a ser jovem, vai voltar a ser criança?" A avó responde que não, que vai ficar mais velha e depois morrer. E a menina pergunta: "E depois?" A avó responde: "Então, eu viro anjo..." E a menina: "E, depois disso, vai ser de novo uma criancinha pequenininha?" [12].

Aninha já tinha perguntado à mãe se ela teria uma boneca viva, um bebê, um irmão. Segundo Jung, os pais lhe respondiam sem dar maior importância, de modo simples e o mais franco possível. Um dia, eles lhe falaram da cegonha, mas Aninha já tinha ouvido dizer que as crianças eram anjos que moravam no céu até que um dia uma cegonha os trazia. Ela então pensou que, se quando uma pessoa morria virava anjo (a avó tinha dito isso) e se as crianças eram anjos antes de nascer, o velho que morria depois voltava a ser criança. Ninguém precisava ser eliminado. Bela solução de compromisso, que nos faz lembrar o final da história do pequeno Hans, que casa a mãe consigo mesmo e o pai, com a própria mãe - e todos foram felizes para sempre.

Jung situa nesse diálogo o início da atividade de pesquisa de Aninha e fala de uma teoria da reencarnação que, "segundo consta, continua viva em milhões de pessoas" [13]. A teoria parece driblar a questão da sexualidade enlaçando diretamente o nascimento à morte: é preciso que alguém morra para que um novo ser passe a existir, mas esse novo ser é, na verdade, um velho que renasce.

Como o pai de Hans, embora muito menos insistente e persuasivo, Jung também introduzia questões: "O que você diria se esta noite chegasse um irmãozinho?", pergunta ele, na véspera do nascimento de Fritz. Sem maiores conflitos, Aninha responde: "Eu matava". Quer conservar a avó, mas quer eliminar o irmão, que de saída se coloca como rival.

Por causa da chegada de Fritz, Aninha vai passar uns dias com a avó e, ao voltar, encontra em casa uma freira que tinha vindo como ama-seca. A princípio, ela a rejeita e grita "o irmão é meu". A rejeição ao irmão se desloca para a ama: Aninha se recusava a deixar que ela trocasse o irmão ou o pusesse na cama, mas, pouco a pouco, começa a brincar de ama e quer ter um avental e uma touca como ela. A raiva começa a dar lugar a uma atitude introvertida e sonhadora. Aninha passa horas embaixo da mesa, cantando e inventando histórias. Ouviam-na dizer "sou uma ama da Cruz Verde", e às vezes expressava sentimentos penosos. Jung aproxima esses mecanismos psicológicos aos da puberdade: incremento da atividade imaginativa como efeito do deslocamento e da introversão da libido alocada num objeto externo. É a solução para um conflito ou algo próprio da idade? - ele se pergunta.

Ao voltar da casa da avó, Aninha pergunta à mãe: "Vou virar uma mulher diferente de você? Ainda gosta de mim ou só gosta do Fritz? Então, você não ia morrer agora?" [14]. Uma vez que sua mãe estava viva, sua teoria não se sustentava. Aninha começa então a suspeitar da teoria da cegonha e descobre que os pais podem mentir - momento crucial na vida de toda criança. O Outro perde seu lugar de fiador. A partir de então, onde o sujeito poderá ancorar a verdade?

É no momento em que Aninha está se perguntando sobre seu lugar no desejo parental, uma vez que tinha aparecido um intruso, e está elaborando sua posição identificatória ("vou virar uma mulher diferente de você?"), que ela suspeita que sua mãe mente. Ao mesmo tempo, quer lhe restituir seu antigo lugar de fiadora: "É verdade que você não mente?"

Aninha começa então a dizer que quer ser ama-seca quando crescer. Está fortemente identificada com a ama. Entende que a ama pode cuidar de um bebê, mas não entende como a mãe ganhou o bebê. Por que a mãe não foi ama? Assumir um lugar materno implica ter que deixar de ser filha? Se ela quiser cuidar de um bebê, terá que ser ama, mas, para isso, terá que se separar de sua mãe para sempre [15]?

A essa altura, Aninha começa a desobedecer à mãe e ameaça voltar para a casa da avó. O que sou para minha mãe agora? O Outro pode me perder? A mãe lhe diz que ficará triste se ela for embora, e Aninha responde: "Você tem o irmãozinho..." .

O surgimento da angústia e a fobia de terremotos

A angústia eclode. Aninha começa a acordar à noite chorando. Nesse momento, ela ouve falar de um terremoto em Messina, que causou muitas mortes [16]. Suas perguntas passam a se fixar nos terremotos. Inicialmente, Aninha pede à avó que lhe conte mais: como tinha tremido a terra? Como tinham caído as casas? Como milhares de pessoas tinham morrido soterradas?

Aninha começa a ter acessos de angústia. Não suporta ficar só. Se a mãe não fica ao lado de sua cama, à noite, diz que "o terremoto virá e a casa cairá, matando-a" [17]. Quando saía de casa, perguntava: "A casa vai estar inteira quando voltarmos? Papai ainda vai estar vivo? Tem certeza de que lá em casa não tem terremoto?" Se via alguma pedra no caminho, dizia: "Ela também é do terremoto." As casas em construção eram reconstruções de casas do terremoto. Aninha acordava gritando: "O terremoto está chegando! Ouço o rugido dele!" Assim, Aninha convoca a presença do Outro. Na sua ausência, é invadida pela angústia. Seu irmão tinha nascido, suas teorias tinham caído por terra, seu mundo parecia desabar - o Outro não era mais fiador, porque podia enganá­ la. Era urgente encontrar alguma coisa que não desmoronasse.

A mãe e o pai tentavam garantir-lhe a cada momento que em Zurich não havia terremotos, mas o medo de Aninha voltava. A mãe lhe deu gravuras de Geologia e Atlas da biblioteca do pai, com imagens de vulcões e terremotos. Aninha passava horas olhando essas imagens e fazendo uma infinidade de perguntas, numa tentativa de intelectualizar a angústia, de um modo neurótico. Os pais não entendiam bem o que se passava com ela. Só tiveram uma pista quando Aninha começou a perguntar por que a irmã, Sofia, era mais nova que ela, onde estava Fritz antes de nascer, no céu? O que fazia ali, por que descera agora e não antes? Tratava-se de uma retomada das perguntas iniciais, mas a questão agora era saber como. Era preciso construir uma nova teoria. No centro de suas perguntas, estão agora os irmãos. Logo, ela está se perguntando sobre seu lugar, identificada com os irmãos, seus semelhantes.

O pai decide então que é uma boa hora para esclarecimentos e pede que a mãe lhe explique a verdade sobre a origem do irmãozinho. Na primeira oportunidade, a mãe lhe explicou que a história da cegonha não era verdade, que o irmão tinha se formado no corpo dela, do mesmo modo que as flores nascem na terra [18]. Aninha então perguntou: "Bem, mas ele saiu assim, só por si mesmo?" Mãe: "Sim." Aninha: "Mas ele ainda não sabe andar!" Sofia, a irmã mais nova [19], disse: "Saiu engatinhando." Sem dar atenção à resposta da irmã, Aninha indicou o peito da mãe e perguntou: "Será que aí existe algum buraco ou será que ele saiu pela boca? E a ama, o que saiu dela?" Nesse mesmo momento, começou a gritar: "Sei muito bem que a cegonha trouxe meu irmão do céu". E, em seguida, sem mais explicações, pediu para ver o livro com as imagens dos vulcões [20].

Aninha se agarrava à teoria que estava ruindo, num movimento de avanços e retrocessos que continuaria ao longo de toda a observação e que mostra o apego libidinal às velhas teorias e a dificuldade de abandoná­ las, embora já tivessem se mostrado falsas. "Eu sei, mas mesmo assim...", diria Octave Mannoni [21].

Por que ver as imagens dos livros a tranquilizavam? Por mais aterradoras que fossem, as imagens dos vulcões não eram produto exclusivo de sua imaginação, logo, vê­ las lhe permitia reorganizar o imaginário. Por outro lado, as imagens dos livros não mentem e, assim, reconstituem um lugar onde é possível ancorar a verdade, pois remetem ao lugar a que seu pai recorre para encontrar respostas a suas próprias indagações. Nesses termos, os livros com suas imagens reconstituem um Outro no qual é possível se fiar.

Jung comenta que Aninha já tinha sido proibida de se masturbar e que era esse o motivo pelo qual ela perguntava sobre os buracos superiores - peito e boca - e ignorava os inferiores - vagina e ânus. Percebe-se, então, um primeiro efeito da operação do recalque, sendo os vulcões e os terremotos formações substitutivas. É por isso que a angústia se transforma em fobia.

Está em andamento um trabalho de elaboração, e, assim como Freud se perguntava o que simbolizava o cavalo da fobia de Hans, podemos nos perguntar sobre o simbolismo dos vulcões e dos terremotos. Assim como o cavalo, os terremotos e os vulcões parecem sobredeterminados simbolicamente:

• a metáfora da terra tremendo parece estar ligada a todos os questionamentos que a chegada do irmão pôs em pauta;
• os vulcões, metáfora utilizada por Freud para se referir às pulsões, trazem a questão das sensações corporais e da excitação ligada a ela emergindo de surpresa, com "a força de um vulcão";
• a fala de Aninha - "ouço o rugido dele" - evoca a dimensão da voz do pai aterrorizante e imaginário, do segundo tempo do Édipo [22].

Jung diz que Aninha tinha sido proibida de se masturbar, mas nada refere sobre a possibilidade de relacionar sensações orgásticas ao tremor dos vulcões. Poderíamos arriscar essa hipótese? Lacan abre essa instigante questão em relação a Hans, mas nada diz sobre essa temática tão interessante e tão pouco abordada em relação à criança [23].

A resolução da fobia: o irmão imaginário

Aninha encontra uma solução para a fobia muito mais depressa que Hans. No lugar do encanador, ela e sua irmã tinham inventado um irmão imaginário mais velho, que sabia tudo e podia tudo, dono de animais. Esse irmão, diz Jung, é o pai que é como se fosse um irmão da mãe. Aninha faz a ele um apelo para aplacar sua angústia: "Meu irmão está na Itália. Ele tem uma casa de pano e vidro que não pode ser derrubada". O irmão imaginário possibilita que sumam o medo dos vulcões e o interesse por eles, e ela passa a demonstrar ternura pelo pai. Pergunta se ele tinha nascido da avó e se ela e a irmã também tinham estado na barriga da mãe. Opera-se então um novo deslocamento, as questões se centram no lugar onde estavam os bebês: a barriga da mãe.

No dia seguinte ao esclarecimento da mãe sobre o nascimento, Jung fica de cama. Entre espantada e tímida, Aninha perguntou: "Por que você está na cama? Você também tem uma planta na barriga?" O pai riu e tranquilizou-a; disse que nenhuma criança podia se formar no seu corpo, que os homens jamais tinham filhos, só as mulheres. Aninha saiu do quarto alegre e despreocupada.

Percebe-se assim o temor por trás da pergunta. Ainda bem que Jung não respondeu como a mãe de Hans, quando ele lhe perguntou se ela também tinha um "faz pipi". Jung foi contundente e disse que os homens jamais tinham filhos, e Aninha ficou aliviada e pôde avançar em sua teoria. Ao que parece, o temor não reside na angústia de castração, mas no temor de que não haja diferença sexual.

A elaboração onírica

Dias depois, Aninha contou que tinha sonhado com a arca de Noé e disse à avó que dentro dela havia muitos animaizinhos [24]. Um pouco mais tarde, recontou o sonho assim: "Sonhei com a arca de Noé; havia muitos animaizinhos lá dentro, e debaixo havia uma tampa que se abria e todos os animaizinhos caíam" [25]. O sonho levanta o recalque e permite que apareçam os buracos inferiores, figurados como uma tampa que se abre e se fecha.

Várias semanas depois, Aninha conta outro sonho: "Sonhei que mamãe e papai ficavam acordados na biblioteca durante muito tempo e que as crianças também estavam ali" [26]. Jung diz que ela queria ficar acordada tanto tempo quanto mamãe e papai e que sonhou com a biblioteca por ser o lugar onde procurou satisfazer seu desejo de saber sobre os terremotos. Jung não diz que se trata de uma representação da cena primária em que aparece o pai junto à mãe e às crianças, satisfazendo o desejo de ver o que fazem mamãe e papai quando estão trancados num quarto.

Alguns dias depois, a angústia volta. Aninha teve um pesadelo: "O terremoto está vindo, a casa está se mexendo!" A mãe acode para tranquilizá­ la, e ela diz: "Gostaria tanto de ver a primavera e como crescem as florzinhas! Gostaria de ver o prado todo florido e também Fritz, que tem uma cara tão bonitinha, e papai. O que ele está dizendo, o que está fazendo?" Mãe: "Nada, está dormindo." Aninha, zombeteira: "Acho que amanhã vai cair de cama de novo".

Essa observação abre um novo problema: se o pai não tem filhos, o que faz, então [27]? A zombaria evidencia que Aninha está se defendendo de uma possível identificação com o pai. [28] Segundo Jung, a pequena quer muito resolver todos os enigmas: quer saber como nasceu Fritz, quer "ver crescer as florzinhas". Todos esses anelos estão na base de seu temor ao terremoto [29]. De manhã, Aninha não se lembrava do pesadelo, disse que tinha tido um sonho: "Sonhei que eu podia fazer o verão, depois alguém jogou um polichinelo na privada". Ela podia fazer o verão, ou seja, ela também podia ter um bebê. Essa teoria parece bem semelhante à teoria do excremento de Hans: a criança é situada como um equivalente do cocô, já que sai do mesmo jeito.

Novo episódio. Uma mulher grávida visita a mãe. As duas irmãs brincam de grávidas pondo jornal embaixo da roupa, e Aninha sonha novamente: estava na cidade e via uma mulher grávida. Brinca de pôr a boneca em sua barriga e a faz sair devagar, diante da mãe, pedindo-lhe que ratifique sua interpretação sobre o parto. A questão da identificação feminina continua no primeiro plano de suas preocupações, junto com a elaboração da teoria sobre como nascem os bebês. Aninha põe um urso na sua barriga e diz à avó: "Esta rosa vai ter um bebê", e mostra o cálice bojudo [30].

Outro dia, diz que quer engolir uma laranja para que chegue ao fundo da barriga e ela possa ter um bebê. Jung diz que esse simbolismo aparece em muitos contos de fadas e acrescenta que os contos de fadas parecem ser os mitos da infância [31]. Diz ainda que eles são transmitidos pela mãe, que traduz a realidade sexual de modo simbólico e inconsciente.

Como os bebês entram na barriga? O lugar do pai na procriação

Aninha começa agora a perguntar como entra a criança na mãe. Primeiro, pensa que é pela boca, mas para que serve o pai? Um dia, vai correndo à cama dos pais, deita-se de bruços, dá uns coices e diz: "Não é verdade que o papai faz assim?" Os pais riem, mas não respondem. Jung lembra-se do cavalo de Hans. Aninha supõe que o pai faz algo com as pernas, mas ainda não sabe exatamente o quê.

Cinco meses depois, surge um novo temor. Nas férias, Aninha está com medo de mergulhar. O pai a provoca e a afunda na água. Ela então diz: "Não é verdade que papai quis me afogar?" [32] Uns dias depois, Aninha provoca o jardineiro, que acaba jogando-a numa valeta. Ela grita, desesperada, e diz que o jardineiro quis soterrá­ la. Nessa noite, acorda novamente com medo e diz que "um trem passava ali em cima e descarrilhava". Para Jung, o trem é equivalente à carroça de Hans [33], e as tendências fóbicas reaparecem como prova de que o amor de Aninha por seus pais está esbarrando em algum obstáculo interior e, impedido de dirigir-se ao objeto, se transforma em medo.

Aninha desconfia agora principalmente do pai. Por isso pensa que ele quis afogá­ la. Papai sabia tudo, mas escondia. A desconfiança se transforma em medo do pai [34], embora na vida real ela continue terna e curiosa em relação a ele.

As irmãs inventaram uma brincadeira que deixou a mãe irritada. Transformaram um canto do jardim na casa delas e começaram a fazer ali suas necessidades. A mãe interveio e proibiu a brincadeira. Aninha: "Quando a mamãe morrer, poderemos fazer todos os dias ali e pôr nossos vestidos de domingo." Agora, a mãe é a rival de que Aninha quer se livrar porque não a deixa fazer à vontade.

Surge uma nova questão. Aninha brincou com o jardineiro de arar a terra e, quinze dias depois, viu a grama nascendo e perguntou à mãe: "Os olhos foram plantados na cabeça?" "Não sei", respondeu a mãe. Aninha: "E Deus sabe? E papai? Por que Deus e papai sabem tudo?" A mãe aconselha a filha a levar a pergunta ao pai, e Aninha segue a indicação: "Como é que os olhos foram para dentro da cabeça?" Jung responde "Não, eles estavam ali desde o início". Aninha: "Não foram plantados dentro?" Pai: "Não, eles só cresceram e fazem parte da cabeça, como o nariz também." Aninha: "E a boca e as orelhas e os cabelos, também?" Pai: "Sim". Aninha: "E os cabelos também? Mas os ratos não nascem sem pelos? Onde ficam os pelos antes que a gente os veja? Não tem que pôr sementinhas antes? (semelhança com a grama)". Pai: "Não, os pelos saem de grãozinhos que já estão antes na pele, e ninguém os semeou."

Aninha vai mais longe que Hans em seus questionamentos. Ela também quer saber sobre o corpo e seus objetos parciais. O pai responde de modo científico, mas, evidentemente, assim não responde à questão de Aninha. Jung vê onde ela quer chegar, mas não vai direto ao grão. Decepcionada, ela pergunta: "E como Fritz entrou na mamãe? Quem o plantou no corpo dela? Quem plantou você na sua mãe? E Fritz, por onde saiu?"

O pai decidiu responder só à ultima pergunta e voltou a dizer que só as meninas podiam ter filhos, os homens, não. Mas, diferentemente do pai de Hans, Jung devolveu a pergunta a Aninha: "Por onde você acha que ele saiu?" Ela mostrou os genitais, e ele confirmou. Aninha: "E como entrou na mamãe? Foi plantado em seu corpo, foi posta uma semente?" O pai explicou então que a mãe era como a terra e o pai, como o jardineiro. O pai colocava a semente na mãe, e ela crescia.

Aninha ficou animada com essa resposta, bem menos científica que a anterior, e disse à mãe: "Já sei tudo". Mas, no dia seguinte, ironicamente, disse à mãe que Fritz era um anjo que tinha sido trazido por uma cegonha. Será que a mãe acreditaria? Mãe: "Com certeza, papai não lhe disse isso". A menina riu. Agora, ela zomba da mãe. E Jung comenta: essa era sua vingança - mamãe podia continuar acreditando na cegonha, assim como ela tinha acreditado.

Freud deu a maior importância a esse tópico, tanto no caso Hans quanto neste. Em carta a Jung, escreve:

[...] decerto o senhor distingue as principais facetas do caso Hans. Tudo aí não poderia ser típico? Tenho muita fé num complexo nuclear das neuroses que dá origem às duas resistências básicas: o medo do pai e a descrença nos adultos, ambas integralmente transferíveis para o analista [35].

O pai estava receoso do que a menina faria com os novos conhecimentos, mas ela ficou tranquila e parou de perguntar. Algumas semanas depois, teve um novo sonho: "Estava no jardim, e vários jardineiros se apoiavam nas árvores e faziam xixi"; entre eles, estava o papai. Voltava a pergunta sobre o que exatamente fazia o pai.

Por aqueles dias, havia na casa um marceneiro aplainando uma gaveta emperrada, e ela sonhou que "o marceneiro estava aplainando os órgãos genitais dela". A pergunta agora era "o que o homem tem que fazer em mim para que eu possa ter um bebê?" [36]

Um mês depois, um novo sonho: "Estava no quarto do tio e da tia X, os dois estavam na cama, puxei o cobertor, sentei sobre a barriga do tio e brinquei de cavalinho (evidentemente, o tio substitui o pai)" [37].

Nesses dias, o pai, que voltava à cidade para trabalhar, perguntou a Aninha se queria ir com ele. Aninha: "Sim. Vou poder dormir com você?" (imitando um gesto da mãe). Pai: "Não, você vai dormir em outro quarto". Aninha estava com 5 anos [38].

As indagações de Aninha

O que me pareceu mais instigante no caso é o que esperaríamos que aparecesse, mas que brilha por sua ausência:

• nada que confirme a premissa universal do falo; ao contrário, toda a curiosidade de Aninha se volta para a investigação sobre as diferenças sexuais, e ela fica aliviada e feliz quando o pai lhe diz que os homens não ficam grávidos.
• nada relativo à angústia de castração nem à inveja do pênis. Um dia Aninha comentou com sua avó: "Und luog au, was es fur es herzigs Buobefudili hät" ("E olha que lindo bumbum [39] de garotinho ele tem"). Fudili é um duplo diminutivo que usam as crianças para falar do bumbum (Fudli = traseiro, termo vulgar [40]). Jung diz que Aninha se referiu assim aos genitais. Vemos, no entanto, que em nenhum momento aparece algo como "eu também vou ter um assim como o do meu irmão".
• Aninha centra seus questionamentos nos buracos do corpo, entre os quais ela inclui o seio, ou seja, quer saber por onde saem os bebês.

Aninha também parece ter ido mais longe que Hans em algumas perguntas: o que é ser mulher? ("Vou ser uma mulher diferente de você?") Como é o prazer no ato sexual (o marceneiro aplainando seus genitais)? Como se inserem os objetos parciais no corpo como um todo (os olhos também foram plantados)?

Embora se tenham passado 100 anos, os questionamentos dessa menina de 4 anos ainda podem nos fazer refletir.

Concluindo

Em sua correspondência com Jung, Freud elogia o caso Aninha, mas indica a falta de uma análise comparativa com o caso Hans: "Reli com prazer a fascinante história das crianças (Aninha e Sofia), lamentando, entretanto, que o pesquisador não dominasse o pai por completo; ela é de fato um relevo frágil, quando poderia ter sido vigorosa estátua, e, devido a tal sutileza, a lição se perde para a maioria dos leitores. No medo de que o pai a queira afogar, percebe-se o simbolismo dos sonhos com água (mascaramento do parto). Pena que as analogias com o pequeno Hans não sejam devidamente trabalhadas, senão aqui e ali, pois o leitor é, por definição, um simplório, e é preciso que lhes esfreguemos as coisas no nariz" [41].

Até aqui, podemos entender que Freud tirou relevo do caso por dois motivos: faltavam analogias com o pequeno Hans, e Jung não tinha dado a devida importância ao pai [42]. A qual pai Jung não tinha dado importância, a Freud ou ao pai do complexo?

Na viagem aos Estados Unidos com destino à Clark University, Freud, Jung e Ferenczi viajaram juntos de navio e passaram os dias contando e analisando seus sonhos. Em sua autobiografia, Jung conta que Freud teve um sonho que ele interpretou, mas, ao pedir mais detalhes, Freud disse "não posso arriscar minha autoridade", do que podemos deduzir que a questão do pai e da autoridade eram cruciais naquele momento [43].

Jung apresenta o caso se rendendo ao pai: "O fato de que em geral o pequeno Hans tenha sido mal compreendido e até escandalizado os leitores foi outra razão que me impeliu a publicar este novo documento, menos importante, é verdade, que os de Freud" [44]. Ele diz ainda que quer contribuir e até confirmar as descobertas freudianas sobre a sexualidade infantil: "Minha Agathli de 4 anos aporta contribuições" [45].

Contudo, nas considerações finais, não mantém a mesma posição, e talvez aí possamos entender os motivos do apagamento dessa história.

"Deve-se, pois, atribuir à função do pensar um princípio distinto ao da sexualidade", conclui Jung. "Apenas nos germes polivalentes infantis é que esse princípio conflui com a sexualidade durante suas primeiras manifestações. A pretensão de reduzir o pensar a uma variedade do sexualismo tacanho entra em conflito aberto com os princípios fundamentais da psicologia humana" [46].

O confronto com as afirmações de Freud é claro. Jung acaba seu texto altivamente, polemizando com as teses de Freud. A questão da dessexualização da libido está claramente antecipada quando ele afirma que "reduzir o pensar a uma variedade do sexualismo tacanho entra em conflito aberto com os princípios fundamentais da psicologia humana". A oposição pensar versus sexual terá implicações fundamentais no modo de conceber o inconsciente. Mais tarde, Jung conceberá o arquétipo como uma forma vazia, parecida com a estrutura de um mito. "O arquétipo junguiano - imagem primordial, de natureza instintiva, que não pode jamais ascender à consciência - não se parece em nada com o inconsciente freudiano materialista e pulsional, habitado por uma dinâmica do recalque e da libido" [47].

Sabemos que essa questão conduziu a ruptura entre Freud e Jung em 1914 e, como quando jogamos o bebê fora com a água da banheira, na briga entre eles também se perdeu uma história clínica rica em detalhes como a de Aninha.

Comentário de Renata Udler Cromberg [48]

Ao ouvir o relato de Adela, fiquei extremamente surpresa, pois pude ir percebendo o quanto Ana era a analisadora da sexualidade de seus pais em sua curiosidade sobre o papel sexual de seu pai e suas interrogações sobre o prazer, e o quanto a história e o ciúme da pequena se cruzavam com a história amorosa ocorrida entre Sabina Spielrein e Jung, que teve seu ponto máximo entre 1908 e 1910, período em que Emma Jung engravidou e deu a luz ao terceiro e ao quarto filho, um menino e uma menina.

Sabina Spielrein, primeira paciente em análise de Jung, foi internada e tratada em Burgholzli por ele, tendo depois se tornado sua assistente e de Bleuler no hospital, enquanto estudava medicina e depois disso também. Ela considerou seu tratamento terminado em 1905. Até 1908, Jung morou no hospital com sua mulher, que teve ali os primeiros filhos. Por uma política do diretor, Bleuler, as famílias participavam ativamente da vida hospitalar, e as mulheres dos médicos que lá residiam participavam de reuniões clínicas. Sendo assim, Sabina acompanhou o nascimento dos filhos de Jung com sua mulher Emma. Acontece que durante a gravidez do terceiro filho deles, a partir do segundo semestre de 1908, fica evidente pela correspondência trocada entre Spielrein e Jung que houve uma relação amorosa entre os dois. Durante o primeiro semestre de 1909, ou seja, durante os primeiros meses de nascimento do filho, uma carta anônima, escrita provavelmente por Emma, é enviada à mãe de Sabina, e avisa do perigo que ela corre nessa relação amorosa com Jung. Ele, então, inicia uma correspondência com a mãe dela em que tenta se restabelecer como médico de Sabina, cobrando honorários para não ser mais seu amigo. Sabina fica indignada e pede a interferência de Freud, revelando-se como paciente, amiga e depois amante de Jung. Enquanto isso, Jung erroneamente atribui a Sabina, para Freud, o escândalo que uma aluna apaixonada fizera, ao espalhar o rumor de que ele se separaria de Emma. Jung conta a Freud sobre seu engano e que Spielrein se livrara da transferência "da maneira melhor e mais delicada", uma vez que ela vai visitá­ lo para discutir seu trabalho teórico, na casa nova para onde os Jung haviam se mudado após a saída dele de Burgholzli no início de 1909, devido a um desentendimento com Bleuler. Jung reconhece a Freud que havia agido de um modo a dar todas as esperanças amorosas a Sabina. O desejo dele era de que ela se tornasse amiga de Emma, que "não queria saber desta história" e nesta ocasião pensou em se divorciar.

A relação erótica e sexual de Sabina com Jung continuou por um tempo depois dessa tempestade, como demonstram os diários de Spielrein de 1909 a 1912. No diário, é possível perceber o caminho de transformação sublimatória do amor a Jung na criação de seu próprio trabalho intelectual, bem como o desejo de deslocamento do amor por Jung para outro homem, ao mesmo tempo que a relação entre os dois sofria picos de encontro e intenso amor erótico, pelo menos até 1910. O depoimento de 11 de setembro de 1910 inicia um longo processo de luto por seu amor, de renúncia ao desejo de ter um filho de Jung, e a transformação de Siegfried em um filho simbólico, aquilo que ela sente ser sua grande obra, a gestação do conceito de pulsão de morte que virá à luz no seu segundo ensaio, "A destruição como causa do devir".

E eu estava pronta a morrer por ele, a lhe doar a minha inocência. Era o meu primeiro amor juvenil. Uma vida sem ele, ou que pelo menos não fosse dedicada a ele, ao filho que queria lhe dar, me parecia impossível. Escrevia poesias para ele, para ele compunha canções, dia e noite pensava somente nele. Sua mulher, ao contrário, como ele mesmo diz em seu diário, ponderou bem a sua escolha porque, embora o amasse muito, pensava também em sua própria comodidade e não desejava um "ideólogo vagabundo" [49].

Ela diz que sua mulher é protegida pela lei, honrada por todos, enquanto ela, que lhe teria dado tudo sem a mínima consideração por si mesma, seria definida na linguagem da sociedade como amante, que deve se esconder na sombra. Mas ela não queria que o amor deles fosse de domínio público, "em parte por respeito à sua mulher e à sua posição social, em parte para que o sacrário não se sujasse. Mas apesar disso, ter de me esconder sempre me fez mal. Ele na verdade queria me introduzir na sua casa, fazer com que eu fosse amiga de sua mulher, mas como se pode entender, a mulher não podia aceitar isso, de modo que devia se esconder dela a parte mais importante" [50]. Ela sente ser tão forte a intensidade da sua paixão e a afinidade entre as suas almas, que se pergunta se não deveria tentar arrancá­ lo completamente da mulher, mas, assim fazendo, eles não seriam felizes porque a recordação de sua mulher e de seus filhos não lhes daria paz. "Não sou de modo algum inimiga de sua mulher; posso até entender muito bem a sua posição em relação a mim. Mesmo conhecendo-a pouco, creio que seja uma pessoa de valor, já que meu amigo a escolheu. Quantas vezes tive de sofrer por ela, quantas vezes, no pensamento, tive de lhe pedir perdão pela dor que levei à sua casa tranquila" [51].

O que Jung propõe a Spielrein, ele conseguirá de Antonia Wolff, para quem ele depois desloca seu amor erótico, e que frequenta sua casa como uma espécie de segunda esposa o resto da vida, sob a anuência contrariada e resignada da esposa, Emma [52]. Mas agora Jung se aproxima de novo de Spielrein e ela se pergunta: se o ama tanto, não poderia lhe dar um filho como antes haviam sonhado juntos, sendo que depois ele poderia voltar para a mulher? Nesse ponto do diário, podemos perceber Spielrein começar a transformação sublimatória. Não nos esqueçamos de que a intensa troca amorosa, clínica e intelectual entre ambos resultou em duas obras extremamente inovadoras e provocantes, "Metamorfose e símbolos da libido", de Jung, que seria publicado em duas partes no Jahrbuch, a primeira parte junto com a tese sobre esquizofrenia de Spielrein, e "A destruição como causa do devir", de autoria dela, cuja publicação Jung retardará por seis meses, provavelmente para que fosse publicada após a segunda parte de seu texto.

Depois que aceitou trabalhar com ele na dissertação, ela começa a frequentar a sua casa para os encontros de trabalho. Sente-se humilhada e com raiva por dentro, um "cãozinho lavado", mesmo diante do acolhimento caloroso que recebe, sobretudo dos filhos ainda pequenos de Jung.

Em setembro de 1910, num outro fragmento de seu diário, ela diz que Jung demonstrara o seu amor por ela. Havia ido a Kusnacht, a residência de Jung, e ele não a tinha recebido para trabalhar, ficando ela "zangadíssima". Para se controlar, ela retomou a leitura do ensaio de Jung publicado em 1909, "Conflitos da alma infantil", e, depois de algumas linhas, já estava totalmente tomada por ele, censurando-se por ficar brava com um homem tão inteligente pelo seu gesto descortês. "Que posso fazer se as suas obras me elevam para além da minha vida pessoal, a ponto de parecerem coisas de criança todas as minhas alegrias e minhas dores?" [53] Depois ela compreendeu que julgara mal o seu amigo, pois, quando fora à sua casa, ele não a havia recebido porque lhe nascera a terceira filha (o quarto rebento de Jung e Emma) e não podia deixar a mulher sozinha, o que foi para ela tão jubiloso como doloroso. É curioso notar que Jung não teria tanto problema assim em deixar sua mulher sozinha com um recém-nascido em março de 1913, quando ela deu à luz a quinta e última filha deles. O caso de amor com Toni Wolff havia começado em agosto de 1911, tendo Jung sido seu analista de 1910 a 1911, em sua casa. Toni, então com 22 anos de idade, encantara Jung com seus conhecimentos sobre mitologia clássica, e suas sessões de análise passam a ser intensas trocas de interesses compartilhados. Além de frequentar suas aulas, ela passa a fazer para Jung as pesquisas na biblioteca, necessárias ao seu novo ensaio "Transformações e símbolos da libido" [54].

Foi apenas em 1912, antes ou durante a gravidez de Emma, que ambos reconheceram a profunda atração mútua e deram início ao triângulo emocional nada ortodoxo que durou o resto da vida dos três. Apenas duas semanas após Emma dar à luz, ela e o bebê ficaram aos cuidados da mãe dela e as crianças mais velhas com a mãe dele. Jung e Toni tiraram umas férias em Ravena sendo que, embora não exista documentação que comprove, a cidade é, em geral, considerada o cenário da primeira intimidade sexual entre ele e Toni [55].

Mas em setembro de 1910, Sabina foi ao encontro de Jung, um dia após o nascimento de sua filha. Deveriam começar o trabalho de revisão da sua tese para publicação e, em vez disso, eles falaram de pulsão sexual e pulsão de morte, da representação do duplo pensamento na forma da morte, das teorias sobre esquizofrenia e do mundo dos antepassados. Ele escu¬tou a com grande entusiasmo, depois mostrou-lhe um seu trabalho ainda não publicado, uma carta ao prof. Freud e sua resposta, porque estava verdadeiramente comovido com a coincidência dos seus pensamentos e sentimentos. Disse a ela que esse entendimento profundo causava-lhe medo: de fato, era esse o caminho através do qual ela obtinha o seu amor. Dava-se conta do que ela era para ele. Essa, para ela, era a maior satisfação, ser não uma entre tantas, mas uma que é a única, porque certamente nenhuma outra moça podia compreendê­ lo como ela, nenhuma podia surpreendê­ lo com um pensamento tão autônomo e tão análogo. Ele se defendia e não queria amá­ la. "Mas, agora, deve fazê­ lo porque as nossas almas estão profundamente ligadas, porque, ainda que separados, estamos sempre unidos em um trabalho comum. Como já disse, os sentimentos eróticos podem ser facilmente reprimidos em favor dessa amizade sublime" [56]. Encorajou-a na escrita do novo trabalho sobre a pulsão de morte, mas disse-lhe que devia antes terminar o seu último trabalho. "Amanhã estarei de novo com ele e nos propusemos permanecer no trabalho. O meu único desejo é, no momento, permanecermos ‘amigos' também amanhã" [57].

Será também pela autonomia de pensamento que Toni Wolff encantará Jung. Mas ela, ao contrário de Sabina, não teria pretensões a uma obra científica própria. Clinicou, depois de ser curada por Jung de uma severa depressão após a morte de seu pai, e participou da fundação do Clube Psicológico [58], primeiro núcleo institucional em torno das ideias de Jung, mas dedicou sua vida a Jung, amparando-o e analisando-o em seu breakdown mais severo de 1913 a 1917, como Spielrein o fez de maneira mais leve e menos constante. Wolff aceitou dividir o amor desse homem com sua esposa, com o consentimento desta, coisa a que Spielrein se recusou.

Em 18 de outubro de 1910, Spielrein tem o seu sonho Siegfried, segundo o qual o desejo de um filho concreto com Jung começa a se tornar o desejo de um filho simbólico: seu ensaio sobre a pulsão de morte como o filho simbólico sublimado, portanto, de sua relação analítica, amorosa e intelectual com Jung. Fala em sua crença firme na existência do amor. "Apesar de todas as borrascas, conservo ainda a minha bela visão do mundo! Acreditava na existência de amor sagrado; claro, se dura muito tempo é uma outra coisa; mas quando se ama deve-se amar com toda a alma" [59]. Descreve o que seria para ela o ideal de um casal amoroso, onde se tem um homem só para si e a felicidade e o amor não causam dor a ninguém, e se tem um cotidiano comum, de cultivo das coisas elevadas e sublimes em meio a tricôs e trabalhos intelectuais apoiados reciprocamente.

E aquele homem estimadíssimo e amado se tornaria o pai de meu Siegfried. Esse herói corajoso me libertará de todos os meus conflitos que no momento me dilaceram e poderá me dizer: "Lutei por ti contra ondas; com os remos levantados volto como vencedor! Tu és meu prêmio!"... Quem sabe se depois amarei o meu salvador? E o meu amigo? Será para mim sempre muito querido, muito querido, como um pai. Apresentar-lhe-ei como um velho amigo a meu marido e dar-lhe-ei um beijo em sua presença. [60]

Diz que seu marido terá tanto orgulho dela e será tão seguro de seu poder sobre ela que fará o mesmo em frente a Jung. "Então saberei ser-lhe grata! Pode estar seguro da sua vitória. Mas se viesse a ter ciúme, como um homem qualquer, então eu ironizaria para sempre esta sua fraqueza. Será superior a essas coisas e meu amigo será padrinho do meu primeiro filho" [61].

Em 24 de outubro de 1910, Spielrein diz que ela e Jung amaram-se tanto que seria impossível amarem-se mais, mas que quer se livrar dele porque quer ainda viver e ser feliz. Este parece ter sido o momento de amor erótico mais intenso entre eles. Em 9 de novembro de 1910, ela diz que esteve com ele e seu juízo a abandonou. Que na poesie mais doce ele disse que a amava porque tinham um estranho paralelismo de pensamentos comuns, que ela podia predizer às vezes seu pensamento. Disse-lhe que a amava pelo seu caráter forte e orgulhoso, mas que jamais se casaria com ela porque havia nele um grande filisteu com necessidade do aspecto limitado tipicamente suíço, apesar da sedução de possuir uma mulher evoluída como ela.

Sabina Spielrein será a primeira a citar depois de Freud o texto de Jung "Conflitos da alma infantil", o trecho do diálogo de Ana com a avó sobre nascimento e morte, em seu texto "A destruição como causa do devir".


Sabina Spielrein, pioneira da psicanálise com crianças
Renata Udler Cromberg

Aproveitando este encontro de psicanalistas para discutir os cem anos da psicanálise com crianças, gostaria de pôr em discussão uma verdade evidenciada em minha pesquisa [62]: Sabina Spielrein não apenas foi a primeira mulher a escrever uma tese de doutorado com um tema psicanalítico e a utilizar o termo esquizofrenia num trabalho escrito, a primeira que teve a proeminência suficiente para ser publicada na principal revista de psicanálise de então, o Jahrbuch, mas foi a primeira psicanalista mulher na história da psicanálise a escrever artigos sobre a psique infantil baseados em observações autoanalíticas, de sua filha e de tratamentos de crianças, depois das observações de Freud sobre o pequeno Hans. Enfatizo que ela foi a primeira apenas para me contrapor ao enorme esquecimento da sua importância pela história da psicanálise até final dos anos 80 do século passado, uma vez que ela faz parte de um campo de saber criado por um caldo inventor de muitos psicanalistas que fez emergir a psicanálise de crianças no início do século passado.

Na visão oficial da psicanálise, a filha de Freud, Anna Freud, ainda figura como a fundadora da psicanálise de crianças, Melanie Klein vem em seguida. Hermine Von Hug¬Hellmuth, tida como a pioneira não oficial da psicanálise de crianças, tornou-se membro da Sociedade Psicanalítica de Viena apenas em 1913, e foi-lhe confiada por Freud a seção dedicada à psicanálise de crianças na revista Imago. Freud e seus fiéis não viram que seus artigos provinham de uma análise de seu sobrinho, na qual aplicava as teses do mestre. Seu livro mais famoso, o diário de uma adolescente de 11 a 14 anos, de 1919, também se revelou uma fraude, apesar de seu sucesso e de um prefácio elogioso de Freud. Por todas essas situações embaraçosas, ela também foi banida por muito tempo da história da psicanálise [63].

A primeira contribuição sobre análise de crianças na história psicanalítica após o caso do Pequeno Hans e o ensaio de Jung "Conflitos da alma infantil" foi de Spielrein em "Contribuições ao conhecimento da psique infantil", publicado no terceiro número do Zentralblatt em 1912. Nesse pequeno artigo clínico pode-se encontrar um testemunho dado por Sabina Spielrein de sua própria infância. Se nos distanciarmos do sofrimento sintomático, a narrativa parece uma rica ilustração da onipotência infantil normal, em sua rica fantasmática, sobretudo em relação à curiosidade sexual e às raízes da angústia que ela suscita. Apenas dez anos depois, apareceu a primeira comunicação de Anna Freud, que se tornou membro da Sociedade Psicanalítica de Viena em 13 de junho de 1922, uma semana antes de Lou Andreas-Salomé. E sete anos depois da publicação, houve a primeira comunicação de Klein. Nesse intervalo de tempo, foram publicados vinte e cinco artigos de Spielrein, dez deles sobre temas relacionados à análise de criança.

Depois de sua ida ao VI Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Haia, em 1920, onde apresentou uma comunicação sobre as origens da linguagem, "A origem das palavras infantis Papai e Mamãe - algumas observações dos diferentes estágios do desenvolvimento da linguagem" (ensaio publicado na revista Imago, uma publicação psicanalítica, em 1922), Spielrein foi convidada a trabalhar no Instituto de Psicologia Experimental e de Investigação do Desenvolvimento Infantil Jean Jacques Rousseau, em Genebra, onde ficou até 1923. Lá, encontraria o terreno teórico, conceitual e de prática interdisciplinar no desenvolvimento da linguagem e pensamento nas crianças para realizar o seu projeto investigativo teórico sobre a formação de símbolos, por meio das reflexões sobre a origem da linguagem. Agora, sua parceria seria com Édouard Claparède e Jean Piaget, que começou a trabalhar nesse Instituto em 1920.

O Instituto, que vinha se tornando rapidamente o maior centro pedagógico do mundo, fora fundado em 1912 por Édouard Claparède (1873-1940) e Pierre Bouvet (1878-1965). Nele, Spielrein ministrava seminários sobre psicanálise, trabalhava e atendia em análise membros da equipe. Dava um seminário como assistente de Claparède, cujo único indício é um artigo de 1923, no qual ela descreve um experimento realizado com catorze estudantes no Instituto no inverno de 1922-23. Ela analisou Claparède, Bouvet e Piaget. Segundo Piaget, sua análise terminou por iniciativa dela, que dizia que ele não estava disposto a se analisar, só a discutir teorias. Ambos continuaram a ter uma intensa troca intelectual. Piaget cita a comunicação de 1920 de Spielrein antes de ser publicada. Em 1922, é Piaget quem faz uma comunicação no VII Congresso Psicanalítico Internacional, realizado em Berlim, ao lado de Freud e assistido por Spielrein, intitulada "O pensamento simbólico e o pensamento da criança", germe do que seria o seu primeiro e importante livro Linguagem e pensamento na criança, no qual, baseando-se em ideias que ela mesma lhe dera e na observação de sua filha Renata, o autor esboçou a gênese do pensamento infantil a partir das habilidades sensório-motoras até o raciocínio abstrato.

Ao que parece, a mente rica, criativa, cheia de insights e profundamente sensitiva que Sabina Spielrein deixaria impressa em seu artigo "A origem das palavras infantis Papai e Mamãe - algumas observações dos diferentes estágios do desenvolvimento da linguagem" foi muito estimulada pelo trabalho no Instituto, que aumentou a familiaridade dela com um extenso número de autores e teorias sobre a formação da linguagem na criança e estimulou sua postura de valorização da observação espontânea das crianças como método de demonstração de suas ideias. Foi esse trabalho e a convivência em um ambiente inovador e livre no incentivo da pesquisa que a estimulou a defender o ponto de vista psíquico e emocional na gênese dos processos de linguagem e pensamento a partir da psicanálise.

Ao longo dos anos 1921 e 1923, ela escreveu ao todo onze artigos sobre psicanálise, entre os quais alguns importantes trabalhos teóricos. Desses, os dois mais importantes resultaram de sua associação com o linguista Gustav Bally e com Piaget, respectivamente "O tempo na vida subliminar da alma" e "Algumas analogias entre o pensamento da criança, com o dos afásicos e com o pensamento subconsciente", ambos contribuições importantes no campo nascente da psicolinguística. O artigo sobre as analogias, baseado em observações de sua filha e outros casos infantis, foi publicado junto com o importante trabalho inicial de Piaget sobre o pensamento e a linguagem da criança, nos Arquives de Psychologie, em 1923. Houve troca e reciprocidade, um apoiando as hipóteses e observações do outro, além de frequentarem um o seminário do outro.

De maneira geral, Spielrein e Piaget concordam na abordagem funcional, na interpretação da linguagem na infância e nos estágios de desenvolvimento. Ambos tinham raízes intelectuais comuns na formação pela escola psiquiátrica e psicanalítica de Zurique, no interesse que repartiam pela infância e no desenvolvimento de conceitos básicos do pensamento. Mas o solo comum onde eles mais progrediram juntos foi a teoria do pensamento simbólico. Na sua conferência em Berlim, em setembro de 1922, Piaget falou sobre as ideias em comum com Spielrein e anunciou um trabalho de sua colega, que na verdade nunca veio à luz, uma "muito sugestiva teoria do simbolismo". Ele declarou que eles esperavam desenvolvê­ la juntos. No seu livro de 1926 sobre a representação do mundo pela criança, citou algumas observações de Spielrein sobre as crenças infantis quanto à origem dos bebês. Ambos estavam interessados nas funções afetivas do símbolo, mas talvez mais ainda na aquisição das funções semióticas e cognitivas. Porém, ambos estavam no mesmo campo por razões diferentes. Piaget queria achar traços desse tipo de pensamento na criança e Sabina pensava na fonte do simbolismo, o pensamento subconsciente, como o principal modo de pensamento.

Ao emigrar de volta à Rússia, Sabina Spielrein desaparece como personagem da história da psicanálise, apesar da importância de sua ação, no outono de 1923, ajudando a psicologia russa a entrar no século XX, especialmente por sua participação no Jardim de Infância Psicanalítico, primeira experiência de junção da psicanálise e da educação e sua cátedra de pedologia na Universidade de Moscou, onde exerceu a transmissão da psicanálise com crianças. De fato, na última carta recebida de Freud, em que ele estimulava sua ida à URSS, e não a Berlim - seu pedido original era que ela se juntasse a Abraham na clínica psicanalítica -, ao pedir que ela coloque seu endereço no topo de sua carta, coisa que poucas mulheres faziam na época, segundo ele, estava reconhecendo que Sabina Spielrein, como mulher, havia conquistado um endereço no mundo intelectual e de trabalho maciçamente masculino e ele lhe pedia que assumisse isso.

Podemos conjeturar o que teria acontecido se Sabina Spielrein tivesse ido a Berlim e não à Rússia. Certamente algo parecido à confrontação entre Melanie Klein e Anna Freud, que se iniciou em 1924, teria acontecido entre Melanie Klein e Sabina Spielrein, pelo pouco que se sabe da opinião de uma em relação à outra. Melanie Klein, em seu artigo de 1926 sobre psicanálise da criança, interpretou a observação de Spielrein sobre o papel do ato de mamar na origem das palavras papa e mama como evidência da importância do investimento libidinal no desenvolvimento da linguagem. Para ela, havia fixações perversas sublimadas, especificadamente orais, nos casos estudados por Spielrein. A abordagem centrada no complexo de Édipo precoce de Klein era completamente diferente daquela preconizada por Spielrein que, de maneira própria, em acordos e desacordos com Piaget, enfatizava as ligações entre inteligência e linguagem por meio das funções afetivas do símbolo. Klein, que se engajou na psicanálise após o Congresso de Budapeste em 1918, teve seu primeiro artigo publicado após uma apresentação, em julho de 1919, levada por Sandor Férenczi, diante da Sociedade Psicanalítica de Budapeste, do seu primeiro estudo de caso, dedicado à análise de uma criança de cinco anos, que na realidade era seu próprio filho, Erich. O terror branco e a onda de antissemitismo que assolavam Budapeste depois do fracasso da ditadura comunista de Bela Kun obrigaram os Klein a deixar a capital e exilar-se. Em 1920, Melanie Klein participou do Congresso Internacional de Haia, onde encontrou Hermine von Hug-Hellmuth e Karl Abraham. Certamente deve ter assistido à comunicação de Spielrein. Em dezembro de 1920, expõe, na Sociedade Húngara, Contribuição à análise de criança. Em 1921, instala-se na capital alemã e, um ano depois, torna-se membro da sociedade psicanalítica alemã, a DPG, assistindo ao VII Congresso da IPA nesta cidade, onde certamente encontrou Spielrein e Piaget [64]. Volnovitch afirma que Spielrein considerou abusivas e invasivas as interpretações de Klein nas análises de crianças.

Quando Spielrein emigrou, era o tempo de abertura para o Ocidente da nova política econômica de Lênin e de importantes experimentos em todos os campos da vida russa. A psicanálise floresceu nesse clima e, entre muitos talentos que vinham ao Instituto Psicanalítico de Moscou, houve dois que viriam ter lugar entre os maiores psicólogos do século: A. R. Luria e Alexander Vygotsky. Por algum tempo, Luria atuou como secretário do Instituto e seus relatórios periódicos no International Journal of Psychoanalysis dão conta da participação de Spielrein numa ampla gama de atividades como ensino, por meio de conferências e seminários - sendo que seu seminário de análise infantil era o curso mais concorrido, com trinta participantes - além de sua atuação como psicanalista didata num plano de treinamento que elaborou em conjunto com Ermakov e Wulff no Instituto Psicanalítico de Moscou, e do trabalho na clínica para crianças. Papéis recentemente descobertos relacionados ao staff do Comissariado soviético do Povo para Educação Nacional indicam que Sabina Spielrein-Schaftel ocupava três postos: como colaboradora científica no instituto psicanalítico estatal, como consultora médica pedagógica da Terceira Internacional (uma espécie de vila de crianças) e como diretora do Departamento de Psicologia Infantil da Primeira Universidade de Moscou.

Houve ainda a direção da famosa creche psicanalítica, ou jardim-de-infância psicanalítico, ou simplesmente Casa Branca, por conta do edifício onde ficava instalado, oficialmente denominada de Lar Experimental para Crianças. A instituição foi criada pela pioneira da psicanálise na Rússia e uma das grandes figuras do freudomarxismo, Vera Schmidt, em agosto de 1921, com o apoio de Ermakov, sendo Spielrein convidada a trabalhar ali imediatamente após sua chegada. Nesse projeto educativo de ótica psicanalítica, levava-se em conta o fenômeno transferencial no relacionamento entre as crianças e os educadores e tentava-se instaurar uma relação mais baseada na confiança e na afetividade do que na autoridade. O sistema de educação tradicional fundado nos maus tratos e nas punições corporais foi abolido e o ideal da família patriarcal severamente criticado, em proveito de valores educativos que privilegiavam o coletivo. As demonstrações afetivas, beijos e carícias eram substituídas por relações ditas racionais, as crianças tinham uma educação leiga e eram autorizadas a satisfazer a sua curiosidade sexual. Os educadores eram convidados a não reprimir a masturbação e a instaurar com as crianças relações igualitárias. O programa previa que todos deviam ser analisados. Esse treinamento psicanalítico era dado aos educadores por meio do quadro ao qual pertencia o Lar, um Instituto de Psicanálise fundado junto com a Associação Psicanalítica de Pesquisa sobre Criação Psicanalítica, que assumiu o nome de Solidariedade Internacional. Cerca de trinta crianças filhas de dirigentes e funcionários do Partido Comunista foram acolhidas ali a fim de serem educadas segundo métodos que combinavam os princípios do marxismo e da psicanálise. Acredita-se que o filho de Stalin tenha estudado nesse centro. O ideal pedagógico preconizado por Schmidt era a manifestação viva do espírito novo dos anos 1920, em que se concretizava, depois da Revolução de Outubro, o sonho de uma fusão possível entre a liberdade individual e a liberação social: uma verdadeira utopia pedagógica ou pedologia, como passou a ser chamada, que combinava paixão freudiana e ideal marxista. A experiência chegou ao fim em condições complexas. Em novembro de 1924, o casal Schmidt encerrou as atividades do Lar e, em 1925, o Instituto Solidariedade Internacional foi oficialmente liquidado.

Com a morte de Lênin e o endurecimento do regime, que levaria ao exílio de Trotski, o grande apoiador da psicanálise, e que trouxe a supressão da liberdade de associação e a stalinização do sistema soviético, o movimento psicanalítico russo se extinguiu progressivamente. Em 1930, pode-se dizer que a psicanálise fora erradicada da URSS, embora um punhado de clandestinos a tenham praticado ainda até 1936. Sabina Spielrein voltou para sua cidade natal, Rostov¬-sobre-o-Don, em 1924, reencontrando seu marido e dando à luz sua filha Eva. Oficialmente exercia funções de clínica geral, mas, na verdade, sob a capa da pedologia, tratava de crianças delinquentes e problemáticas pela psicanálise, o que fez, enquanto ainda exercia a medicina, até meados dos anos trinta, quando se tornou professora de música em um Jardim de Infância, como outras dezenas de psicanalistas que tiveram que achar outra ocupação para sobreviver. Mas a paixão pela música, que transmitiu à sua filha mais velha, bem como a crença nos poderes civilizatórios da cultura talvez a tenham feito fechar os olhos para a crueldade do povo de seu tão admirado compositor Wagner e dessa língua alemã que era como se fosse sua língua materna, dominado por um líder nazista que era a mais pura encarnação, juntamente com Stalin, da pura destruição sem devir, da qual foi vítima juntamente com suas filhas. O seu último artigo publicado na Imago, em 1931, entre apenas dois artigos de que se tem conhecimento que escreveu enquanto viveu na URSS, chama-se "Desenhos infantis com olhos abertos e fechados".

Comentário de Adela Stoppel de Gueller

Minha surpresa, ao ouvir Renata, foi enorme. Sabia que Sabina Spielrein tinha sido uma das pioneiras na psicanálise com crianças, mas nunca imaginei que seu interesse teórico nesse campo tivesse sido a linguagem. Não conhecia seu trabalho A origem das palavras infantis Mamãe e Papai (1922) [65], nem Algumas analogias entre o pensamento da criança, o afásico e o pensamento subconsciente (1923) [66]. E é impressionante sua antecipação, ao falar da linguagem prosódica e do "manhês", bem como do prazer da lalação no bebê, fundamentais hoje em dia na detecção precoce do autismo e de outras patologias graves do desenvolvimento psíquico, que apareceram como a grande novidade nesse campo de pesquisa que vem se constituindo nos últimos 20 anos.

Já em 1922, Spielrein afirmava: "A linguagem melódica, a música, em sua forma mais primitiva de ritmos e inclinações sonoras, antecede amplamente a linguagem verbal". Destacou também que "mães e babás se adaptam instintivamente à disposição criativa da criança, desenvolvem uma empatia com a pequena psique, em seu próprio estágio de desenvolvimento infantil, que faz com que falem por um impulso inconsciente na direção do impulso da criança" [67].

Após o estudo de Spitz realizado na década de 1940 sobre hospitalismo, sabe-se que a privação do contato afetivo com o cuidador produz lentamente nas crianças um estado de letargia que faz com que vão desaparecendo as atividades autoeróticas. Elas silenciam, ressentindo-se da aproximação de qualquer ser humano (Spitz, 1998). Em 1922, Sabina Spielrein já enfatizava a importância da associação prazerosa do ato de mamar com as primeiras emissões vocais.

Spitz parece ser uma exceção ao se referir ao trabalho de Spielrein. Em O Não e o Sim: a gênese da comunicação humana, menciona "A origem das palavras infantis Mamãe e Papai", remetendo ainda a dois outros textos de autoria de Hug-Hellmuth (1919, 1921) [68], que falam sobre a ontogênese da comunicação verbal e não verbal, que ele situa como precursores, fazendo uma crítica à sua visão adultomórfica. Mas outros trabalhos importantes como Linguagem infantil e afasia (1969), de Roman Jackobson, não mencionam seus textos, apesar de o campo de estudo ser o mesmo, o que confirma a tese de Renata sobre o injustificado esquecimento de Sabina Spielrein pela história da psicanálise até final dos anos 1980.

Assim, o trabalho de Renata abre um campo de investigação ainda inexplorado - sobre os primórdios da psicanálise com crianças -, com vastas ramificações em campos que hoje se constituíram como autônomos uns em relação aos outros: a educação, o pensamento, a linguagem e a psicanálise.
Tudo indica que voltar a esses textos inaugurais pode favorecer o diálogo interdisciplinar, pois foram escritos numa época em que a fragmentação dos campos do conhecimento - que promoveu a grande proliferação de disciplinas que conhecemos atualmente - ainda não tinha se operado totalmente. Por essa mesma razão, o trabalho de Renata sobre Sabina Spielrein é do maior interesse e traz contribuições importantes para estudiosos de inúmeras áreas como fonoaudiologia, psicolinguística, pedagogia, estimulação precoce e psicanálise.


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