 voltar à primeira páginaAutor(es) Cecília Luiza Montag Hirchzon é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. voltar à primeira página
| | LEITURAA ventura de seguir a aventura com Marco Velloso e Marilucia Meireles[Seguir a aventura de Enrique Pichon-Rivière: uma biografia] The enture of following the adventure with Marco Velloso and Marilucia Meireles
Cecília Luiza Montag Hirchzon
Alicerçada em extensa e generosa referência bi bliográfica, eletrônica, depoimentos e relatos pessoais, matériaprima motivadora de inúme ras pesquisas que nela possam se inspirar, Mar co Aurélio e Marilucia nos brindam com essa biografia profunda, cuidadosa e abrangente de um dos psicanalistas mais instigantes da nossa época e, paradoxalmente, menos conhecido. A leitura do texto, além de um percurso con tínuo, oferece, a partir do índice remissivo, um le que de opções por múltiplas áreas de interesse, dando margem a investigações que vão desde di ferentes personalidades e acontecimentos vincula dos a Pichon, passando por indicações históricas, geográficas, institucionais, eventos científicos, pu blicações, até um vocabulário amplo, incluindo obviamente a terminologia própria do autor. A criteriosa reconstituição histórica, po lítica e social, coerente com o perfil ideológico de seus autores, nos conduz a uma viagem pela América Latina e também pelo panorama mundial da época, que fornece referencial para avaliar o contexto e o significado extremamente avança do das suas ideias. Os biógrafos dãonos a oportunidade de seguir genealogicamente os primeiros passos da introdução da Psicanálise na América Latina e avaliar entre outros fatos, por exemplo, o espíri to pioneiro de Durval Marcondes no Brasil, que se corresponde com Freud em 1928. Marilucia e Marco Aurélio evidenciam tam bém a psicanálise, desde o seu nascimento, como um campo aberto aos interesses do meio artístico e intelectual em suas tendências mais modernas, tais como o Surrealismo no ambiente europeu e a Semana de Arte Moderna de 22 em nosso meio. A localização de PichonRivière neste pano rama (nasce em Genebra em 25/6/1907 e chega à Argentina em 1909) juntamente com sua filia ção levam a antecipar em que direção se dará o desenvolvimento de suas concepções. Filho de franceses: o pai, Alphonse Pichon, mostrava in clinação desde cedo por uma ideologia socialista radical, sendo por esse motivo expulso da Acade mia Militar de SaintCyr a que pertencia; a mãe, Josephine de la Rivière, influência marcante em sua vida, pertencente a uma família da alta classe social francesa; embora formada num colégio ca tólico tradicional em Lyon, já mostrava, na épo ca, atitudes inaugurais, tais como ser a primeira mulher a fumar e a usar calças compridas. Chegando à Argentina, a família deslocase para o norte do país, interessada em desenvolver um projeto agrícola. Estabelecemse em Florên cia, pequena cidade habitada predominante mente por índios guaranis, com quem mantêm relações abertas e que dão a Enrique a oportu nidade de aprender o guarani, língua que falava fluentemente. Asatividades agrícolas fracassaram e em 1917 transferemse para Goya, onde Alphonse passa a lecionar francês e trabalhar em contabilidade. Jo sephine começa a dar aulas de francês e também de canto, terminando por fundar a Escola Profis sional e Colégio Nacional de Goya, onde o pró prio Enrique estuda até completar o colegial. Quando Pichon tinha 15 anos, morre seu pai. Aos 18, dirigese a Rosário, época em que ini cia o curso de Medicina. Em 1926 chega a Bue nos Aires, onde completa seus estudos e começa a exercer a profissão de psiquiatra e psicanalista. No dia 15 de dezembro de 1942, Enrique PichonRivière, juntamente com outros nomes importantes do meio psicanalítico, assinam a ata de fundação da Associação Psicanalítica Ar gentina, que será reconhecida pela ipa em 1949 no xiv Congresso Internacional de Psicanálise. Paralelamente às suas atividades na apa, Pichon desenvolvia seminários no Hospício de las Mercedes (entre 1936 e 1948), onde havia nesta época cerca de 4.500 pacientes interna dos. Dada a impossibilidade de atendêlos em sua maioria, sua primeira atitude foi a de tentar capacitar o corpo de enfermagem para a tarefa. Em outro momento, por ocasião de uma greve de enfermeiros, incumbe os próprios pacientes a desempenhar tais funções e começa a pensar em técnicas de trabalho grupal. Podemos vislum brar já nessas ações a antecipação dos avançosda antipsiquiatria e da luta antimanicomial. Na época o campo mais desenvolvido da psicologia social achavase nos Estados Unidos, representado principalmente por Kurt Lewin (da teoria da Gestalt) e George Mead, pensado res que tiveram influência marcante sobre a obra de Pichon. Também Gaston Bachelard na Fran ça, com seu conceito de obstáculo epistemológico e Henri Lefèvre, através da concepção históri co dialética, foram valiosas fontes inspiradoras. É também importante destacar a ligação do bio grafado com Melanie Klein, que conheceu em Londres em 1951 e com quem se supervisionou. No final da década de 40 trabalhou na Fa culdade de Medicina da uba como chefe da cadeira de psiquiatria, mas nunca dissociou a prática clínica do ensino e da pesquisa. A ênfa se na práxis sempre fez parte de suas colocações. Sua concepção de relação terapêutica partia da ideia de vínculo. O encontro acontecia na rela ção entre duas pessoas com suas respectivas re des vinculares internalizadas. O objetivo era a operatividade, a mudança. Seu modo de ouvir e interpretar na transferência desidealizava o lu gar do analista, tornandoo um copensor. Recu savase a estabelecer uma relação de poder na relação com seus pacientes. Por outro lado, não aceitava a prática terapêutica por profissionais que não tivessem feito a sua análise pessoal. A "autoridade" do analista era simplesmente a de ter percorrido antes o caminho de conhecimen to da sua própria subjetividade. A partir dessas referências, Pichon cria a concepção de ecro (Esquema Conceitual, Referencial e Operativo), um dos conceitos funda mentais pelo qual sua obra é conhecida. Suas contribuições se centrarão em dois pontos principais: de um lado, a investigação psicanalítica, principalmente na época do Hos pício de las Mercedes. De outro, seu pensamento marcado pela epistemologia históricodialética, que, levando à releitura da obra de Freud, resultará na teoria e técnica dos grupos operativos. É desse processo que advirá sua concep ção de que toda psicologia é psicologia social. Daí o conceito de vínculo ser pedra fundamen tal de sua obra. Para Pichon, sujeito e grupo são uma unidade dialética em constante trans formação. Foi casado com Arminda Aberastury, com quem teve três filhos. Arminda, que se tornou analista didata pela apa em 1953, principal in trodutora do pensamento kleiniano na Argen tina, tornouse referência internacionalmente conhecida, sobretudo no campo da psicoterapia de crianças, compartilhando com Pichon o inte resse e a prática nessa área. Divorciaramse em 1956, sendo o último pe ríodo em que viveram juntos muito conturbado. Nessa época Pichon fica bastante abalado, passa a consumir anfetaminas e tem o estado de saúde fra gilizado por sucessivas pneumonias e problemas neurológicos que, afetando a ingestão de alimentos, provocavam gastrites hemorrágicas. Arminda, por sua vez, casase novamente. Acometida por vitiligo nos últimos anos de sua vida, acaba por suicidarse em novembro de 1972, aos 62 anos de idade. Uma pessoa significativa na vida de Pichon, que depois se transformou em principal cola boradora, foi Ana Quiroga, a quem ele dedicou seu livro mais importante: Del Psicoanalisis a la Psicologia social. Auxiliouo a fundar a Primera Escuela Privada de Psicologia Social em 1967, da qual é diretora até os dias de hoje. Pichon afirmava a sua autonomia ao criar esse espaço de difusão das suas ideias. Ao denominála Escola de Psicologia Social, explicitava que a psica nálise só podia ser entendida a partir de vínculos, o que levava a concluir que, nesse sentido, toda psi cologia é psicologia social, inclusive a psicanálise. Além disso, ao redefinir a psicanálise como psicologia social e não mais como psiquiatria, tomava atitude avançada diante da questão da saúde mental e da importância da interdisciplinaridade. Fundou nessa época a Primera Escuela de Psiquiatria Dinâmica (também chamada Peque- na Salpêtrière), onde desenvolvia atividades pio neiras no campo da saúde mental e da psicologia social. No final dos anos 50 prevalecia em quase toda a América Latina uma ideologia de orien tação marxista. Esse período foi a época em que Pichon alcançou seu maior prestígio. Em 1958, criase, sob sua liderança, um experimento so cial que veio a ser conhecido como Experiência Rosário. Tratavase de um autêntico laboratório social, de um ato inaugural de intervenção psi cossocial, onde se pretendia validar as técnicas de grupos operativos, dando margem à publica ção do livro O processo grupal, escrito em cola boração com Bleger, Liberman e Rolla. Nesse momento, formulou o que ficou co nhecida como a Lei Fundamental dos Grupos Operativos: "Os grupos são tão mais produti vos quanto mais heterogêneos forem seus par ticipantes e mais homogênea for sua dedicação à tarefa" (p. 140). Em 1951, Pichon, entusiasmado por La can, vai a Paris. Embora não aderindo ao ponto de vista estruturalista, foi também através dele que o lacanismo chegou à Argentina. Em 1954, juntamente com Madeleine Baran ger, Bleger, Marie Langer, Gilou Reinoso, Emilio Rodrigué e outros funda a Asociación Argentina de Psicologia e Psicoterapia de Grupo, lugar de inter câmbio de experiências e produção teórica, que abria um espaço independente e criativo. Nesse período o país passava por uma efer vescência política, principalmente nos meios universitários e intelectuais. Paralelamente evi denciavamse conflitos entre diferentes grupos de psicanalistas dentro da apa. A instituição psica nalítica foi se fechando cada vez mais, impondose mais normas, tornando a hierarquia cada vez mais rígida, o que leva a uma cisão e à criação da apde ba (Associação Psicanalítica de Buenos Aires). Nos últimos vinte anos de vida, Pichon apresentava, junto do uso de anfetaminas, um quadro nítido de alcoolismo, que o levou a vá rias internações para se desintoxicar. Em 1966, a apa suspendeu sua função di dática, mas apesar disso ele nunca se desligou da instituição. A esse respeito, por ocasião do vi gésimo aniversário da morte de Pichon, Emilio Rodrigué escreve: "Como presidente determinei que fosse suspenso de sua condição de analista didata. Hoje em dia, custame crer que tomei esta decisão. Sem ânimo de desviar a culpa, creio que minha atitude revela como se pode pensar mal dentro do clima institucional" (p. 182). Elizabeth Roudinesco e Michel Plon tam bém se referem a esse episódio: Por volta de 1965 (Pichon) desinteressouse da análise didática, mas o seu seminário, para o qual acor ria a juventude, continua a lhe garantir um lugar incon testável de líder intelectual, apesar do álcool e dos me dicamentos (p. 183). Em 1972, no texto Del Psicoanálisis a la Psi- cologia social, escrito com Ana Quiroga, Pichon definese ao mesmo tempo como seguidor teó rico da psicanálise junto a uma leitura materialista histórica e dialética de seus fundamentos, rompendo com os fundamentos instin tivistas da teoria psicanalítica e propondo a constitui ção da subjetividade a partir de uma estrutura vincular alicerçada na emergência das necessidades (p. 196). Além do confronto com a apa, Pichon foi perseguido politicamente tanto no governo de Isabelita Perón, quanto na ditadura de Vide la. Em 1975 foi pressionado por um grupo de ultradireita que exigia o fechamento da Escola de Psicologia Social, mas não cedeu às ameaças. Anos depois, em Buenos Aires, a Escola cres ceu, chegando a contar com mais de mil alunos em seus quatro anos de formação de observado res e coordenadores de grupos operativos. No Brasil, a divulgação de suas ideias se de veu principalmente a Rodolfo Bohoslavsy (1942 - 1977), que deu um primeiro curso na usp em 1975, na área de Orientação Profissional. Nos últimos anos de vida, Pichon achavase fragilizado fisicamente, enquanto o ambiente político era o de uma ditadura das mais violen tas. Dentro desse clima eram proibidas reuniões de grupos, consideradas subversivas. A morte e a solidão o ameaçavam, mas não lhe faltou a companhia dos amigos mais fiéis, que também o auxiliavam materialmente. Pichon faleceu na noite de 15 de julho de 1977, deixando uma rica herança de concei tos que merecem ser ainda muito trabalhados. Fica a imagem de sua pessoa como uma figura humana, fascinante, libertária, criativa. Ficam também as imagens de Marco Aurélio e Marilu cia como discípulos profundamente identifica dos com os ensinamentos do mestre.
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