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Resumo
Este trabalho trata da necessidade e da tentativa de evitar o erro no processo analítico. Se, por um lado, o analista deve evitar o erro por meio da observação rigorosa dos fundamentos metapsicólogicos, por outro, precisa permitir-se errar no sentido de vaguear, de andar sem rumo certo, deixando-se levar pela errância decorrente da regra fundamental a que ele e seu analisando estão submetidos.


Palavras-chave
lugar de fronteira; campo de criação de subjetividade; comunidade de destino; clínica da tranquilização; sujeito em condição de análise.


Autor(es)
Sylvia Loeb


Notas

1 N. Abbagnano, Dicionário de filosofia.

2 Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, Novo Di- cionário da Língua Portuguesa.

3 S. Leclaire, El objecto del psicoanálisis, p. 12.

4 M. A. Coutinho Jorge, Fundamentos da Psicanálise - de Freud a Lacan.

5 S. Freud, "O inconsciente", Obras completas, v. xiv, p. 195.

6 J. Lacan, "A instância da letra no inconsciente  ou  a  razão  desde  Freud", in Escritos.

7 J. Birman, "Os jogos de verdade da Psicanálise".

8 L. C. Figueiredo, "Novos  fundamentos  para  a  clínica  da  Psicanálise ou a clínica em comunidade de destino".

9 A. Stopel de Gueller, em comunicação pessoal.

10 S. Bleichmar, "Del motivo de consulta a la razón de analisis".

11 J. Moscovitz e P. Grancher, Para que serve uma análise? - Conversas com um psicanalista, p. 12.




Referências bibliográficas

Abbagnano N. (1982). Dicionário de filosofia. São Paulo: Mestre Jou.

Birman J. (2002). Os jogos de verdade da Psicanálise, Revista Percurso n. 29, se­ gundo semestre.

Bleichmar S. (2001). Del motivo de consulta a la razón de analisis, n. 287, Bue­ nos Aires, jun.

         . (1990). De la impasse a la analisabilidad, Revistas Diários Clínicos n.2 - En los bordes de la Psicosis, Buenos Aires.

Coutinho Jorge M. A. Fundamentos da Psicanálise - de Freud a Lacan. Rio de Ja­ neiro: Jorge Zahar.

Ferreira A. B. H. (1975). Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

Figueiredo L. C. (2004). Novos fundamentos para a clínica da Psicanálise ou a clínica em comunidade de destino. Resenha do livro de Gilberto Safra, A poé- tica na clínica contemporânea. Aparecida: Ideias & Letras.

Freud S. (1972). O inconsciente. In: Edição standard brasileira das obras psicológi- cas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiv, p. 195.

Lacan J. (1998). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud. In:

Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Leclaire S. (1972). El objeto del psicoanálisis, Siglo xxi: Argentina Editores, p. 12.

Leminski P. (2004). La vie en close. São Paulo: Brasiliense, p. 46.

Moscovitz J.; Grancher P. (1991). Para que serve uma análise? - Conversas com um psicanalista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.

Stoppel de Gueller A. Comunicação pessoal.





Abstract
This work is about both the need to avoid mistakes and the possibility of doing so during the analytical process. On one hand, we should try to avoid errors by sticking as firmly as possible to the metapsychological foundations of the treatment; on the other, the analyst must not fear to be wrong, in the sense of wandering around, of not knowing where he is going, of allowing him/herself to be mis- led by the natural wandering that characterizes the fundamental rule to which both members of the couple are submitted.


Keywords
border; subjectivity; field of creation; community of destiny; soothing; analysability.

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 TEXTO

A capacidade de errar

The capacity to commit mistakes
Sylvia Loeb

Erra uma vez

nunca cometo o mesmo erro duas vezes

já cometo duas três

quatro cinco seis até esse erro aprender

que só o erro tem vez [Paulo Leminski]

 

O Dicionário de filosofia1 nos diz que o erro pertence à esfera do juízo, da avaliação, e que toda declaração de valor (seja ela moral, estética, política, econômica etc.) é baseada em regras ou critérios.

 

Seria erro julgar um objeto ou um comportamento com base em um critério estranho ao próprio objeto, ou melhor, es­ tranho ao campo do objeto a que ele pertence. Desse modo, pode­se chamar erro todo juízo ou avaliação que contrarie    o critério reconhecido como válido no campo a que se refere o juízo.

 

No Dicionário da Língua Portuguesa2, encontramos para erro vários significados: engano, mal entendido, falta, omissão, lacuna, escorregadela, lapso, ilusão, inverídico, incorreto, enganoso, irreal, imaginário, embuste, andar sem rumo certo, vaguear, percorrer.

 

E na Psicanálise? Onde se configura o erro?

Antes de tentar responder a essa questão, pensemos o que, a nosso ver, configura o campo da Psicanálise: o inconsciente como hipótese e o reconhecimento e manejo da transferência constituída pelas regras de abstinência, da associação livre e da atenção flutuante.

 

A Psicanálise assinala a incorporação de uma nova dimensão à vida cotidiana: o incons­ ciente. A alteridade dessa ordem é radical e a fantasia funciona como vaso comunicante entre os dois campos, consciente e inconsciente, como afirma Leclaire3.

 

A interpretação dos sonhos (1901), A psico- patologia da vida cotidiana (1901) e Os chistes e sua relação com o inconsciente (1905) são textos inaugurais que anunciam a descoberta do inconsciente e como este opera produzindo con­ densações e deslocamentos e todas as outras produções tão estranhas e surpreendentes.

 

Na sua pesquisa do inconsciente, Freud aborda fe­ nômenos que haviam sido relegados às abordagens obs­ curantistas como os sonhos e assim também os despro­ vidos de interesse para o discurso da ciência: os chistes, os atos falhos, os lapsos de linguagem, o esquecimento de nomes. E ainda os fenômenos incompreendidos pelo discurso médico: os sintomas neuróticos, as alucinações e delírios psicóticos e as chamadas perversões sexuais.4

 

O que se deve manter presente é que seu próprio objeto pertence a uma dimensão nova a que se pode chamar irracional. A sintaxe do inconsciente é radicalmente diferente da do consciente.

 

"Todos os atos e manifestações que noto em mim mesmo e que não sei ligar ao resto de minha vida mental devem ser julgados como se pertencessem a outrem; devem ser explicados por uma vida mental atribuída a essa outra pessoa." A cisão produzida na subjetividade pela psicanálise é uma cisão de regimes, de leis. "Obedecer a dois senhores", como diz Freud, é obedecer a leis diferentes5.

 

Considerando o inconsciente como um saber que não se sabe6, Lacan afirma que o ato fa­ lho é, com efeito, um ato bem sucedido - por meio dele a verdade do sujeito se desvela, ainda que à revelia do eu. O termo alemão que designa o inconsciente, Unbewusste, significa literal­ mente insabível: o consciente seria um saber que se sabe e o inconsciente um saber que não se sabe. Quando ele irrompe, por meio do retorno do reprimido, é quase sempre um recado do lado de lá, algo que demanda ser ouvido, que exige um lugar de presença.

 

Para Joel Birman7 o inconsciente, no entanto, não é alguma coisa que esteja dada e o analista, como um Sherlock Holmes, decifra o crime cometido ou sofrido. Para esse autor, o processo psicanalítico é um engendramento produtivo de determinadas experiências tanto do lado do pa­ ciente quanto do lado do analista e a experiência analítica, quando acontece, é uma experiência de produção de acontecimentos. Para que essa produção possa ocorrer é necessária uma condição de certa exterioridade, de certa excentricidade em relação às normas grupais estabelecidas, o que Birman chama de "lugar de fronteira". É o lugar de liberdade de escuta do inconsciente, é o lugar "entre", é o que se cria entre duas subjetividades. Trata­se de algo mais do que uma subjetividade em relação à outra, trata­se de um novo campo, um campo de criação, construído e constituído pelas regras do jogo e por seus participantes.

 

Atenção flutuante e associação livre, regras fundamentais do jogo psicanalítico. O paciente é convidado a se deixar levar, que tenha a coragem de errar, a tranquilidade de se enganar, de omitir, de imaginar, de cometer lapsos, de vaguear, de andar sem rumo certo. Enfim, um convite para deixar de lado o controle habitual da vida cotidiana e entrar num campo diferente, em que o que comanda é o que se passa... sabe-se lá onde... O que acontece nesse campo de ninguém é justamente o que o paciente deve relatar.

 

O mesmo do lado do analista quando autoriza que sua própria atividade inconsciente entre em ação no jogo da atenção flutuante. Em outras palavras, que o analista também obedeça à regra fundamental: que se deixe levar, que se permita errar, devanear, viajar, aventurar­se ao acaso. O pressuposto do jogo é que o inconsciente se faz presente quando menos se espera se a regra fundamental for obedecida.

 

Esse o material que interessa nesse trabalho, pois além de jogo é trabalho de criação, de novas possibilidades. É o que se espera do analista, para isso foi procurado, e para isso ele precisa reinventar­se, trabalho árduo e arriscado na medida em que põe em pauta seu suposto saber.

 

Pierre Fédida falava em "oco", o analista deixar­se penetrar por aquilo que vem do outro, suspendendo seus próprios parâmetros, colocando­se como testemunha/participante do drama do qual já participa. O que importa não é apenas o que vem de lá, mas o que surge entre ele e o paciente. É a noção freudiana de "espaço para a fantasia" que foi utilizada por vários autores, entre eles Winnicott, onde a "verdade" surge "entre" analisando e analista.

 

Trata­se de uma exigência ética relativa à prática do analista, o que protege o analisando de uma intervenção indevida. Groddeck radicaliza: é o paciente quem faz sua análise. A cura é ele quem faz, ou ele quem a dificulta.

 

Gilberto Safra chama esse campo de "co­ munidade de destino", expressão que implica ambos, analista e analisando, na singularidade irredutível feita do conjunto do múltiplo: o nós, o tempo, o outro e a história estão incrustados no ser em sua irredutível singularidade8.

 

Comunidade de destino, termo emprestado de Ecléa Bosi e redimensionado por Gilberto Safra, indica tanto uma meta como um meio da clínica psicanalítica contemporânea que se compromete com a restauração das condições ético­ontológicas da existência de todos os par­ ticipantes envolvidos no processo. Isso implica o analista poder perceber que tem diante de si um conjunto de manifestações das quais suas próprias categorias culturais e de pensamento não dão conta.

 

Ainda referente à construção do campo, Birman chama a atenção para o sintoma de normalização da psicanálise, a perda de um lugar de fronteira, onde a teoria vira doutrina, a singularidade do outro é apagada, a experiência do risco e da descoberta do novo e do outro é elidida. É quando a teoria analítica deixa de relacionar­ se com a análise e oferece apenas um corpo de regras estáveis, o que mata a emergência do novo. É preciso não esquecer que toda conceituação teórica tem origem na própria experiência; a originalidade desta deve ser preservada, sobretudo ao se colocar em dúvida a teoria, para que a experiência singular que gera desamparo e angústia não seja substituída pela clínica da tranquilização, o que acaba por produzir penúria simbólica no campo psicanalítico. O potencial de ousadia, de novas ideias, de hipóteses e conceitos torna­se infecundo quando não se corre risco por receio de errar, por medo de viver, por medo de psicanalisar, dado que psicanalisar é um risco que en­ volve tanto analista quanto analisando.

 

A função da teoria é fornecer instrumentação para que o analista propicie a seu analisando ultrapassar o que constitui obstáculo à sua evolução. Nesse sentido é que a psicanálise é entendida como um espaço de experimentação para si e para seu analisando, de experimentação de mo­ dos diferentes de pensamentos, de sentimentos e de enfrentamentos. O experimentar­se permite não só se (re)conhecer, como inventar outros estilos de ser. O processo psicanalítico é um pro­ cesso de construção, não apenas de reconstrução. Não se trata unicamente de retirar as camadas que encobrem determinados fenômenos - a metáfora das profundezas9 -, aquilo que está oculto e soterrado; não é apenas um processo de levantar o recalque e encontrar o que já estava lá, mas de criar novas possibilidades. Podemos pensar o processo psicanalítico como uma obra em aberto, uma obra em construção. É esse o processo desejante que se quer construir ou reconstruir na experiência analítica. Movimento que leva analista e analisando num compromisso de trabalho constante. Para isso o analista precisa estar na incerteza de sua escuta, de seus parâmetros e códigos, não ter medo do próprio não saber, ter coragem de enfrentar sua própria angústia, pois esse lugar exige trabalho. É o lugar da pulsão  de morte como exigência de trabalho, no sentido de ousar, de desafiar que o velho, o habitual mortífero e mortificante, o repetitivo paralisante seja desconstruído para a emergência do novo. É a afirmação da pulsão de morte como força de transmutação da ordem para a desordem, propiciadora de reconstrução, na emergência do aleatório e do acaso organizador.

 

É um risco, no qual o analista aposta se tiver coragem, para que seu analisando aposte também.

 

A experiência de se experimentar e de possibilitar ao outro que se experimente exige colocar em suspensão as próprias certezas. Isso é uma experiência de angústia para o analista. E é a condição da análise.

 

No entanto outra condição adicional deve ser cumprida para que a análise seja possível, a de o sujeito encontrar­se em condição de análise. O que isso quer dizer?

 

Silvia Bleichmar10 vem em nossa ajuda. Para ela, só se pode psicanalisar quando as condições estruturais estão dadas: começar uma análise sem que esteja claro se o inconsciente está constituído e o recalque estabelecido é correr alto risco, pois não sabemos se a interpretação será recebida como palavra capaz de desvelar conteúdos inconscientes ou como coisa que explode o psiquismo. Outro ponto a ser levado em conta é se o suposto sintoma é de fato um sintoma, ou seja, efeito do compromisso entre os sistemas psíquicos, o que leva a um tipo de intervenção. Ou simplesmente um modo de exercício pulsional que até então não conseguiu alcançar um destino no interior de um aparato ainda não completamente constituído, o que leva a outro tipo de intervenção.

 

Mais um ponto adicional de risco diz respeito à abstinência analítica, ou seja, avaliar se ela poderá precipitar o paciente ao ato, à emergência da raiva ou do furor não como produto da suspensão do recalque, mas como ativação desmedida de pulsões não ligadas. Essas condições estruturais constituem o lugar de onde o analista fala, onde ele se situa e o que matiza a qualidade da transferência. E serve de bússola  à intervenção analítica, assim como a resistência que é algo a ser valorizado, pois guarda emoções esquecidas que se reatualizam no presente. A teoria, no entanto, deve ser um instrumento a ser utilizado com sensibilidade clínica, pois a aplicação de procedimentos inapropriados leva ao fracasso do tratamento, consiste em erro, engano, inverdade.

 

Nesse sentido Bleichmar faz uma distinção importante entre constituição do aparato psíquico e produção de subjetividade.

 

A produção de subjetividade diz respeito ao modo como as sociedades determinam as formas que constituem sujeitos passíveis  de integrar­se a sistemas que lhe outorgam um lugar. É constituinte e instituinte e tem a ver com formas históricas. É o lugar onde se articulam os enunciados sociais a respeito do Eu. Nossas histéricas são bastante diferentes das histéricas freudianas!

 

No entanto, a produção de subjetividade não é todo o aparato psíquico; ele implica certas regras que excedem a produção de subjetividade, por exemplo, o recalque primário e as defesas. Isso tem a ver com o modo como se constitui o sujeito.

 

Há tempos reais, há tempos históricos de estruturação psíquica que devem servir de parâmetros para a intervenção do analista. Portanto, recuperar o caráter histórico da constituição psíquica e a partir daí situar a tópica em seus momentos de estruturação é um ancoradouro que pode ajudar o analista na abertura de perspectivas terapêuticas importantes.

 

Nesse sentido, nos diz ela, a função do ana­ lista não é a de recriar as leis do inconsciente, mas de conhecê­las para ajudar a transformar as relações que entrelaçam os sistemas psíquicos.

 

A vitalidade da Psicanálise depende de ela não se tornar uma intrincada armadura teórica afastada da experiência clínica, da escuta do sujeito em análise, a partir do qual sua teoria se fundou e da qual ela conti­ nua retirando sua força.11

 

Na prática analítica há continuamente uma espécie de duplo caminho: por um lado a es­ tratégia terapêutica pautada pela metapsicologia que requer manejo seguro a fim de orientar não apenas nossa escuta, mas também a eleição de determinados procedimentos. Por outro lado, um deixar­se levar, uma autorização de errância que pretende assegurar a emergência da verda­ de que se encontra na fala, no delírio, nos lapsos, enganos, esquecimentos tanto de nossos pacientes como de nós mesmos.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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