voltar ao sumárioResumo Sylvia Plath, em entrevista à BBC, disse considerar admissível e legítimo que um poeta use a própria biografia como fonte de inspiração, desde que essa seja elaborada metaforicamente. Autor(es) Purificacion Barcia Gomes é psicanalista e terapeuta de casal. Doutora em Ciência pela Escola Paulista de Medicina, pós-doutorado em Psicologia Clínica, Núcleo de Psicanálise da PUC-SP, professora do Instituto Sedes Sapientiae, autora de O método terapêutico de Scheerazade (Mil e uma histórias de loucura, desejo e cura); organizadora de Vínculos amorosos contemporâneos – psicodinâmica das novas estruturas familiares. Notas 1. Para comparar vivências e sentimentos suicidas, cf. Karen V. Kukil (ed.), Os Diários de Sylvia Plath- 1950-1962, trad. Celso Nogueira. S.Paulo, Globo, 2004, p. 176-179 e 216-218, Sylvia Plath. The Bell Jar. Toronto, Alfred A. Knopf, 1998, p. 20. 2. Kukil. op. cit., p. 203-204. (grifo no original). 3. Plath, op. cit., p. 210. 4. Ana Cecília Carvalho, A Poética do Suicídio em Sylvia Plath, Belo Horizonte, UFMG, 2003, p. 48- 58. 5. Diane Middlebrook. Her Husband: Hughes and Plath- A Marriage, Viking, London, 2003, p.76, 208, 215, 221, 227, 234, 239, 258. 6. Plath, op. cit., p. 20. 7. Kukil. op. cit., p. 518-519. 8. Sylvia Plath, Letters Home, Aurelia Schober Plath (ed. e sel.), London, Faber & Faber, 1999, p.146. (grifo no original). 9. Plath, op. cit, p. 132-134. 10. Middlebrook. op. cit., p. 216. 11. Sylvia Plath, A Senhora Lázaro, in Ariel, Maria Fernanda Borges (trad.), Lisboa, Relógio d’água, 1996, p. 23. 12. Sylvia Plath, “The Stones”, in The Collected Poems, USA, Harper, p. 136, (trad. livre da autora). 13. Carvalho, op. cit., p. 49. 14. William Shakespeare, “The Tempest”, in The Complete Works of William Shakespeare, NY, Gramercy Books, 1990. 15. Plath, The Collected Poems, op. cit., p. 92. 16. Plath, op. cit., p. 116. 17. Erica Wagner, Ariel’s gift: Ted Hughes, Sylvia Plath and the story of Birthday Letters, NY, London,W. W. Norton & Co., 2002, p. 145-157. 18. Plath, op. cit., p.129. 19. Borges, op. cit., p. 106-111. 20. Carvalho, op. cit. 21. Sylvia Plath, Crossing the Water, USA, Harper Perennial, 1971, p. 51 (tradução livre da autora) 22. Ted Hughes, (trad. Paulo Henrques Britto), Cartas de Aniversário, Rio de Janeiro, ABDR, 1999, cf.Wagner, op. cit., p. 254-256. 23. Hughes, op. cit., p. trofeu 24. Northrop Frye, The Great Code – the Bible and Literature, Toronto, Academic Press, 1982. 25. Borges, op. cit., p. 64-67. 26. Hughes, op. cit., p. 34-37. 27. Hughes, op.cit., p.322. 28. Borges, op, cit, p. 170-171. Abstract Having analysed Hughes’ psychic traits vis a vis this poetics, the author will focus in Sylvia Plath’s development as a poet and wife. The couple entertained a vision of art and existence that favoured the dissolution of the ego into mysticism and nature. Sylvia Plath’s identification with her husband’s mythical projections on her had both a devastating effect that induced her into suicide and a maniac excitement that erupted as overwhelming poetry. voltar ao sumário
| | TEXTOO casamento mitopoiético de Ted Hughes e Sylvia Plath (II):o sacrifício da Deusa. The mythopoetic marriage of Ted Hughes and Sylvia Plath (II): the sacrifice of the Goddess
Purificacion Barcia Gomes
Quando comparamos o romance The Bell Jar (A Campânula de Vidro) às anotações em seus diários, relativas ao mesmo período de vida, vemos que há quase total correspondência entre as vivências de desespero, desolamento e melancolia da personagem Esther Greenwood e as da jovem Sylvia. Ambas, criador e criatura, optam pelo suicídio por overdose de medicamentos, vencidas pelos sentimentos de fracasso e isolamento: “To the person in the bell jar, blank and stopped as a dead baby, the world itself is the bad dream.” (para a pessoa na campânula, vazia e imobilizada como um bebê morto, o próprio mundo é o pesadelo).
Aos 20 anos de idade, Sylvia voltava para casa após uma estada em Nova York como estagiária de uma revista feminina de moda e variedades. Fora finalista em um concurso nacional para jovens estudantes desejosas de uma experiência em redação jornalística. Ao chegar a Boston, recebida pela mãe e pelo irmão, deparou-se com a notícia, improvável dado seu histórico escolar, de que não fôra selecionada para um curso de verão de escrita criativa, em Harvard. Associada à experiência novaiorquina, na qual sentira-se pouco segura como mulher e jornalista, a recusa tornou-se insuportável.
Para uma aluna straight A, com uma auto-exigência desmedida, sem experiência prévia de fracasso acadêmico, a rejeição inesperada precipitou o colapso narcísico. A partir desse incidente Sylvia passou a entreter pensamentos suicidas, meticulosamente registrados em seus diários, que de 1950 a 1963, ano de morte, foram seus confidentes. Hughes só tomou conhecimento de seu conteúdo após o falecimento da esposa; permitiu a publicação dos escritos, com exceção do último bloco, que disse ter destruído para preservar os filhos do casal. [1]
A medicação psiquiátrica, inespecífica naquela época, seguida de uma torturante e ineficaz bateria de eletrochoques e, acima de tudo, a ausência de um interlocutor sensível, precipitaram o acting-out suicida. Sylvia foi encontrada desacordada no porão da casa, vários dias depois da ingestão dos comprimidos, com um ferimento na têmpora, que lhe valeu uma cicatriz, ocultada por uma onda de cabelo: “... your Veronica Lake bang” (sua franja em onda à moda de Veronica Lake), na lembrança carinhosa de Ted Hughes do encontro em que ela lhe revelou o motivo da cicatriz. Não queria ser encontrada: a nota lacônica deixada à mãe dizia que passaria a noite com uma amiga.
A jovem estudante foi internada em um hospital psiquiátrico público, e depois, graças ao auxílio financeiro de Olive Prouty, uma escritora de novelas românticas, que já havia sofrido um episódio de depressão, foi transferida para outro, mais moderno, onde conheceu a psicanalista Ruth Beuscher. Por meio do auxílio dessa profissional Sylvia pôde, repetidas vezes (por ocasião dessa primeira internação, e depois de casada com Ted Hughes, quando regressou com ele da Inglaterra e ambos lecionaram em Boston) elaborar angústias prementes, que a levavam a crises temporárias de depressão e irritabilidade.
Os temas mais recorrentes nos diários, à época da faculdade, foram: o conflito entre atender a expectativa social da preservação da virgindade versus seu desejo sexual intenso e a questão de sua ambição de se tornar uma escritora de sucesso. As fantasias de êxito na carreira eram invariavelmente acompanhadas pelo terror ao fracasso decorrente, ou da insuficiência de seu talento, ou pela sua exaustão nas obrigações matrimoniais, com o lar e os filhos.
A jovem estudante gastava horas fazendo conjecturas de como seria o marido ideal, e, ao ler as anotações nos diários, em retrospecto, não podemos deixar de louvarlhe a premonição: “...não tenho estômago para a flacidez e as carnes moles do homem efeminado”; “decidi que não posso me casar com um escritor ou artista... percebo quanto o conflito de egos pode ser perigoso – sobretudo se a esposa concentrar todos os êxitos; “deixei de ser a idealista fanática, capaz de passar o resto da vida comendo feijão em um conjunto habitacional: gosto de teatro, livros, concertos, pintura, viagens – tudo isso custa mais do que sonhos intangíveis podem comprar”; “para ele eu adoraria fazer, creio, as tarefas domésticas e comida, de acordo com seu paladar – enquanto continuaria a servir de impulso vital – estimulante e nutritiva tanto física quanto mentalmente.” [2]
No romance The Bell Jar, por meio de sua personagem e alter-ego Esther Greenwood (sobrenome próximo ao da avó materna; a escolha de “madeira verde”, que verga, não é casual), podemos apreciar a sensibilidade da psicanalista que a ajudou a recuperar-se, aqui chamada de Dra. Nolan. Ela é comparada a outros terapeutas e psiquiatras, mais convencionais e de menor ressonância afetiva, certamente observados em ação no dia-a-dia da clínica psiquiátrica: “A Dra. Quinn tinha uma qualidade abstrata que agradava a Joan, mas que em mim produzia calafrios polares. Joan não parava de conversar sobre Egos e Ids, e eu focalizei o pensamento em outra coisa, no pacote marrom, desembrulhado, na minha gaveta de baixo. Eu nunca falava de Egos e Ids com a Dra. Nolan. Eu não sabia exatamente sobre o quê eu conversava com a Dra. Nolan.” O pacote a que Esther se refere contém um dispositivo de contracepção – com a ajuda da analista ela vencera inibições, e agora, se arriscaria a iniciar uma vida sexual. [3]
A relação complicada de Sylvia Plath com a figura materna tem sido muito discutida e apontada como um dos fatores predisponentes da depressão da poeta. Aurelia Plath, de origem austríaca, após a morte do marido fez-se uma mulher inteiramente dedicada aos filhos, (Sylvia tinha então apenas oito anos). Apesar da escassez de recursos, em parte resultado da imprevidência de Otto, imigrante alemão que se tornou professor universitário e especialista em abelhas, Aurelia conseguiu educar os filhos nas escolas da elite norte-americana graças ao dinheiro suado das aulas de taquigrafia e à disciplina que lhes impunha. Sylvia e o irmão, Warren, tornaramse excelentes alunos, agraciados com bolsas e distinções. O pai não aparece como modelo identitário: não era mencionado; até se casar a filha jamais visitara seu túmulo.
“Mãe-Lua: pálida e reprovadora”
A onipresença da mãe na vida de Sylvia é sentida nos diários, nas cartas (Letters Home) que a filha lhe enviou, nas intromissões, supressões e comentários de Aurelia em sua edição das cartas, na impaciência educada de Ted Hughes quando se dirige a ela, na correspondência que trocaram, em sua inoportuna presença durante parte da lua-de-mel do casal na Europa, e em sua tentativa, frustrada, de adoção dos netos, por ocasião da morte da filha. [4], [5]
Em Sylvia, o contato com a riqueza, com a arrogância disfarçada e com os preconceitos sexuais e de classe das colegas de faculdade provocava sentimentos de inferioridade, de inadequação social e uma inveja amarga e despeitada. Para compensar esses sentimentos, a jovem tecia planos e estratégias de inserção social, os quais se realizariam por meio de um “bom” casamento e de respeitabilidade na profissão.
Em The Bell Jar, a personagem da mãe da jovem suicida é odiada pela filha pelo seu conservadorismo e pelo seu medo da discrepância e da vergonha social. Suas visitas ao hospital são sentidas como indesejáveis, não aportando nenhum consolo ou alegria à paciente: “O rosto de minha mãe me veio à mente, uma lua pálida, reprovadora, em sua última e primeira, visita ao sanatório, desde meu 20º aniversário. Uma filha internada em um sanatório! Eu tinha feito isso com ela.” [6]
Nos diários, entretanto, a representação materna que se desenha é menos polarizada. Ora benevolente, ora odiosa, é uma mãe que não consegue entrar em contato profundo com o desejo da filha, embora se esforce por ajudá-la. Mostra-se o tempo todo preocupada e torcendo para que as conseqüências deploráveis do incidente do suicídio sejam logo apagadas e não comprometam seu futuro e sua imagem. Não procura compreender a dor da jovem, apenas aplacá-la.
Mais tarde, quanto à escolha profissional, que tanta preocupação custou a Sylvia, tampouco consegue, de forma genuína, apoiá-la em sua tentativa de ser escritora, explicitando sua preferência por uma carreira mais segura e convencional, como a de professora. Sylvia ressente-se e confunde-se com a crítica materna: “Li ‘Luto e Melancolia’, de Freud, esta manhã... Uma descrição quase exata de meus sentimentos e motivos para o suicídio: um impulso assassino transferido de minha mãe para mim mesma: a metáfora do ‘vampiro’, usada por Freud, ‘sugando o ego’: é exatamente o que sinto que me bloqueia a escrita: o espectro de minha mãe... E a odeio, porque não escrever cai como uma luva para ela, mostra que tem razão, que eu sou irresponsável por ter abandonado a carreira de professora ou qualquer emprego seguro... Meu medo da rejeição está ligado ao medo de que isso signifique ser rejeitada por ela, por fracassar: talvez por isso esse medo seja tão terrível.” [7]
Nas cartas de Letters Home dirigidas a Aurelia, desde os tempos de faculdade e até mesmo nos dias que precederam sua morte, na segunda tentativa de suicídio, aos 30 anos de idade, e recém-separada, Sylvia demonstra uma preocupação excessiva com o bem-estar e a saúde da mãe, ou, inversamente, aparenta uma alegria esfuziante e um exagerado otimismo. Essas demonstrações amorosas exacerbadas sugerem, à leitura do analista treinado, culpas persecutórias seguidas de tentativas de reparação. Quando volta às aulas, depois da internação, escrevelhe, em tom culpado: “Seja boa com você mesma, querida mãe, e saiba o quanto anseio por vê-la bem e feliz quando voltar para casa no Dia de Ação de Graças – espero que este ano tenhamos todos nós um Dia de Ação de Graças sem nuvens!”. [8]
Em outra carta, recém refeita da depressão e referindo-se a um jovem vizinho que, como ela, tentara o suicídio, Sylvia revela-se extremamente sensível quanto à vulnerabilidade do suicida e exorta a mãe a ter delicadeza no trato com o rapaz: “Diga-lhe para ser ameno consigo próprio; mostre-lhe que as pessoas irão respeitá-lo e amá-lo sem jamais lhe perguntar que notas ele obteve... Não tente ser exageradamente otimista, pois isso apenas fará com que ele perca a confiança em você... Concorde com ele sobre o problema, mesmo que seja negro. Comece do fundo... se ele não estiver fracassando, já é bom... Diga-lhe... que eu pensei... que em meu caso não havia esperança... Eu penso que os psiquiatras estão, em geral, ocupados demais para devotar-se devidamente a casos como esses; raramente encontram tempo para se aprofundar nas questões da relação com pai e mãe, quando, um pouco de bom-senso, sólido aconselhamento sobre questões práticas e simples intuição humana poderiam conseguir o mesmo tanto.” [9]
Quando se refere a si própria, porém, o suicídio se torna um destino inexorável ou um tema lírico a ser explorado e debatido em discussões intelectualizadas com outros poetas, como Anne Sexton e Robert Lowell, que haviam passado por experiência semelhante. A partir dos encontros e conversas que teve com eles, em 1959, em uma oficina de escrita, Sylvia deixou de se sentir envergonhada e constrangida pelo ato cometido e passou a considerá-lo uma experiência rica e transformadora, não obstante admitir-lhe uma característica comum à da drogadição, ou seja, ser ato impulsivo e incontrolável.
O glamour do suicídio em certos meios artísticos da época era explícito: após ter notícia da morte da amiga, e, claro, do subseqüente estrondo de vendas de seus livros (até hoje insuperado por qualquer outro autor de poesia), Anne Sexton chegou a comentar, desgostosa, que Sylvia lhe roubara a idéia e se antecipara à forma de morte por ela planejada: “Essa morte era minha!” [10]
Em “Lady Lazarus”, seu mais conhecido poema, escrito no ano que precedeu sua morte, nota-se uma exibição sarcástica, na qual o eu lírico se vangloria por destroçarse e por recuperar-se com proficiência, a cada dez anos. O episódio da morte é um espetáculo ao qual acorrem, curiosos, os “comedores de amendoim” (The peanut-crunching crowd / Shoves in to see). As imagens de morte evocam o terror aniquilatório de um campo de concentração nazista, como a barra de sabão, a aliança de casamento, a obturação de ouro (A cake of soap, / A wedding ring, / A gold filling) e a redução do corpo a cinzas, que se movem e se atiçam (ash, ashyou poke and stir). O poema se encerra com uma morte seguida de renascimento; o sujeito do discurso é, no final, uma fênix rediviva, uma figura mítica que retorna vingativa. Lembremos que dez anos foi o exato tempo que decorreu entre a primeira tentativa de suicídio e sua morte:
I have done it again One year in every ten I manage it.
...And I a smiling woman. I am only thirty. And like the cat I have nine times to die.
...Dying Is an art, like everything else. I do it exceptionally well.
I do it so it feels like hell. I do it so it feels real. I guess you could say I’ve a call.
...Out of the ash I rise with my red hair And I eat men like air. [11]
(Voltei a fazê-lo. / Uma vez em cada dez anos / Lá consigo- / Mas eu sou uma mulher otimista. / Tenho apenas trinta anos. / E como os gatos tenho sete vidas para viver. / Morrer / É uma arte, como outra coisa qualquer. / E eu a executo, excepcionalmente bem. / Executoa de forma a parecer-se com o inferno. / Executo-a de forma a parecer real. / Acho que se podia dizer que tenho um dom. / Renasço das cinzas / Com o meu cabelo fulvo / E devoro homens como faço ao ar).
O tema do desmembramento e da dissolução, seguido da posterior e precária reunificação e soldagem das partes é onipresente na poética de Sylvia Plath, transmitindo ao leitor um percurso que vai do sofrimento até o esvaziamento do self, em suas repetitivas e fracassadas tentativas de reparação. No poema “The Stones” (as pedras), visitamos uma cidade fantasmagórica onde homens são desmantelados e reconstruídos como em uma descarnada linha de montagem, a qual faz referência aos horrores dos hospitais psiquiátricos onde esteve internada, aos eletrochoques (centelhas e luzes azuis são imagem freqüente) e ao estranhamento corporal e anímico do self remendado, mantido vivo por tubos, já em estado de semi-putrefação, onde líquens brotam e são removidos por esponjas – “The food tubes embrace me. Sponges lick my lichens away” :
This is the city where men are mended. I lie on a great anvil. The flat blue sky circle
Flew off like the hat of a doll When I fell out of the light. I entered The stomach of indiference, the wordless cupboard. [12]
(Esta é a cidade onde se consertam homens / Estou recostada sobre uma grande bigorna / O círculo plano e azul do céu / Voou para longe como um chapéu de boneca / Quando tombei na treva. / Eu penetrei o estômago da indiferença, o armário sem palavras.)
Nos escritos de Sylvia Plath, como ilustrado acima, pelas diferentes e contraditórias alusões à mãe, nota-se que ocorre um padrão tripartite de compartimentalização das emoções: o ódio, a paixão, a irritabilidade e a crítica acerba sobre si ou sobre pessoas próximas são reservados aos diários; o mesmo material é edulcorado e aplainado na correspondência (principalmente a endereçada à mãe); finalmente, nos poemas ou na ficção, as emoções aparecem poeticamente transformadas em um discurso que tem características grandiosas e épicas. Bonomia e êxtase nas cartas, catarse, nos diários, e, metáfora, nos poemas, essa é a seqüência de elaboração narrativa habitual, no que tange principalmente as figuras materna e paterna e as experiências afetivas importantes com Ted Hughes, mas inclui outros personagens e relações, como amigos e vizinhos e viagens. Só para citar as últimas, a famosa viagem de lua-de-mel em Benidorm, na Espanha, é apresentada em versões que variam do idílio ao horror.
Alguns analistas e exegetas da obra da poeta quiseram ver nesses movimentos expressivos, tão divergentes entre si, indícios da existência de sérias cisões de ego, que apontariam para uma personalidade de tipo psicótico. Outros acreditam que uma visão psicopatológica seria flagrante reducionismo, que desconsideraria a genialidade da transformação poética.
Em A Poética do Suicídio em Sylvia Plath, a autora Ana Cecília Carvalho comenta sobre essa transposição e mutação constante do lugar e da verdade do sujeito do discurso, mostrando que o que está implícito nas formas diversas de escrita de Plath é o caráter ficcional do eu, mesmo quando este é aparentemente descritivo e autobiográfico, como nas cartas e nos diários. [13]
Tendo a pensar que Sylvia Plath manipula diários e cartas como preâmbulos, isto é, como um exercício literário, prévio e consciente, de observar-se a si mesma sentindo, a partir de vértices lingüisticos e psicológicos distintos, até que sua escrita possa finalmente culminar na expressão de máxima concentração sensorial, que constitui o poema. Tudo se passaria como se Sylvia fosse um pintor de cenas da natureza, que escolhe uma paisagem e procura reproduzi-la em diferentes momentos de iluminação e em diferentes estações, para somente então recriá-la de modo fantasioso e pessoal. O que, de forma alguma, implicaria tomar como mais real uma ou outra cena.
Assim, a poeta seleciona, com intenção lírica, episódios de sua vida emocional, para debruçar-se sobre eles. A paisagem poética de Sylvia Plath é seu próprio mundo representacional. Ela se toma como tema: a vida a serviço da poética, sendo esta soberana e essencial.
Diferentemente de Ted Hughes, que procurava codificar as vivências pessoais usando símbolos arcaicos ou naturais, procurando inserir essas vivências em equações universais míticas, a poeta cria e desenvolve personagens, acredita neles e interage com eles, até o momento em que passam a povoar seu mundo interno, assombrandoo desde seu interior.
Penso que esse processo culminou em uma inversão catastrófica, na qual ela passa à condição de personagem, cindindo-se, e, no extremo, morrendo, de fato, em holocausto à própria obra. Os momentos de acelerada criatividade dão-se quando os personagens urdidos por Sylvia agigantam-se em importância, até ocupar todo o espaço representacional, sufocando-a. É na precisa captação desses momentos-limite, com sua materialidade e sensorialidade jamais intelectualizadas, apenas explodidas ao nosso olhar, que reside a genialidade da poeta. Este processo foi se incrementando e ganhando velocidade nos três meses subseqüentes ao abandono de Hughes, e que precederam sua morte, quando sua escrita, antes meticulosa e pouco espontânea, passou a jorrar, incessante e hemorrágica.
“A cinco léguas de profundeza jaz vosso pai”
Exemplificando o que afirmei acima, a indiscriminação entre self e personagem, quando o espaço interno é invadido por este, devo citar a criação e o desenvolvimento do importante personagem “pai”, que começa como uma ausência a ser recuperada, passa a ser uma ausência, ou culposa e odiosa, ou desejada como único consolo, para, finalmente, mutar-se em presença mortífera, que chamando a filha para o mar da morte.
A figura paterna transforma-se em um deus mítico submerso, à semelhança do personagem cantado pelo espírito do ar, Ariel, na peça A Tempestade, de Shakespeare, de onde Sylvia retira o título do poema: “Full Fathom Five” (a cinco léguas de profundeza). Vale a pena citar alguns versos do poema para compreendermos a emoção forte provocada por esta peça na adolescente Sylvia, que, repetidas vezes depois, a usou como fonte de inspiração:
Full fathom five thy father lies; Of his bones are coral made; Those are pearls that were his eyes: Nothing of him that doth fade, But doth suffer a sea-change Into something rich and strange.”
(A cinco léguas de profundeza jaz vosso pai / De seus ossos são os corais / Aquelas pérolas, seus olhos / O que dele se esvanece / Transformado pelo mar aparece / Em rica e estranha beleza).
Como no poema de Shakespeare, em “Full Fathom Five” o pai desaparecido, no mar é ressucitado de forma mágica. A filha, em adoração, anseia morrer para encontrá-lo:
Your shelled bed I remember. Father, this thick air is murderous. I would rather breathe water.
(Do teu leito de conchas me recordo. / Pai, este ar denso é mortífero. / Prefiro respirar água)”. [14], [15]
O “pai” personagem pode transmutar- se em herói trágico como o Agamenon de “Electra on Azalea Path” – a alameda de azaléas era o nome do caminho que levava ao túmulo de seu pai, no cemitério Winthrop, aonde a mãe jamais a trouxera para homenagear o pai morto, e, aonde, de forma significativa, ela vai pela primeira vez com Ted. O poema se endereça ao pai, pedindo-lhe perdão, em clara inversão da raiva e do desejo de verificar se realmente ele estava enterrado naquele local, os quais aparecem nos diários: “I felt cheated ” (senti-me ludibriada):
O pardon the one who knocks for pardon at Your gate, father – your houndbitch, daughter, friend. It was my love that did us both to death.
(Oh! Perdoa aquela que bate por perdão / a tua porta, pai – tua cadela, filha, amiga. / Meu amor levou- nos à morte, a ambos.). [16]
Plath vai compondo uma figura paterna poética que é um precipitado de carências e frustrações femininas, em um mundo de prevalência dos valores e vantagens masculinas. A esse mundo, começava a opor-se o movimento feminista. Como poeta, abrira mão da primazia e do destaque intelectual, para que Ted Hughes o fizesse, e durante anos aceitara sua ajuda e crítica, por acreditar que sua experiência em poesia fosse superior à dela. A defesa simbiótica, o casal unido pela arte, funcionara algum tempo, mas começara a falhar, com o aumento da responsabilidade doméstica, que a subtraía do trabalho, e a fama crescente de Ted Hughes, que se ausentava mais e mais.
Ela passou então a questionar seu papel diante do poder masculino, criando imagens em que se aglutinam pai, marido, patriarcalismo, machismo e violência. Surge, a partir desses sentimentos de ressentimento, uma figura mítica paterna, que se expressa tanto sob a forma de uma estátua gigantesca quebrada, que lhe suga as energias (o título do poema “Colossus” foi tomado da estátua onde os gregos pranteavam os mortos sem sepultura), quanto sob a figura nazista, militar e desprezível do poema “Daddy”, escrito no dia seguinte à partida do marido de casa, após sete anos de casamento.
A força desse poema reside em sua violência imagética associada à rima e ao ritmo de cantiga infantil ou popular: [17], [18], [19]
...I have always been scared of you With your Luftwaffe, your gobbledygoo. And your neat moustache And your Aryan eye, bright blue. Panzer man, panzer man, O You –
...If I’ve killed one man, I’ve killed two- The vampire who said he was you And drank my blood for a year, Seven years, if you want to know. Daddy, you can lie back now.
(Sempre tive medo de ti, / com a tua lenga-lenga. / O teu bigode aparado / E o teu olhar ariano, bem azul. / Homem-panzer, homem-panzer, Ó Tu- / Se já matei um homem, também posso matar dois- / O vampiro que disse que éras tu / E que bebeu meu sangue durante um ano, / Sete anos, se queres saber. / Paizinho, agora podes voltar a deitar-te.
Nesses três meses anteriores ao suicídio, por envenenamento de gás, vivências de desintegração e de aniquilamento foram o tema quase exclusivo de elaboração poética, trabalhado de forma pouco encoberta e com crueza impactante, o que confere à obra um caráter de modernidade temática e lingüística. Podemos pensar que Plath, nessa maneira de descarnar os versos de sentidos óbvios e as palavras, de significados usuais, chegando ao corpo como significante-limite, foi precursora da body-art, do corpo-instalação. As experiências formais introduzidas em sua poética para fazer face à necessidade de veicular essas experiências de desintegração egóica e o abandono do self primitivo ao oceano sem palavras da morte constituíram uma quebra conceitual e uma novidade na poesia do século XX. Sobre o enxugamento simbólico dos significantes em direção a um crescente vazio de sentido, culminando com uma segunda tentativa de suicídio, agora realizado, e acompanhado de poemas de uma sonoridade inquietante e intraduzível, leia-se o belo trabalho A Poética do Suicídio em Sylvia Plath, obra de referência em língua portuguesa. [20]
De uma jovem preocupada com a aceitação social e envergonhada de seu ato suicida à mulher que considerava o tema da própria morte como matéria-prima para sua produção artística, muito mudou em Sylvia Plath: muitas metamorfoses foram necessárias para que sua vida e obra culminassem nesse formato de tragédia. Ted Hughes exerceu grande influência nesse percurso: ressignificou os momentos de angústia da companheira, oferecendolhe temas, imagens e compreensibilidade, em um quadro de referência espiritual e transcendental, no qual a existência se desenrola em um tempo cíclico, onde a morte é apenas um estágio de aprimoramento no contínuo de transformações, dilaceramentos e renascimentos do self, rumo à teofania final.
Sylvia anunciou o início dessa metamorfose, a aceitação da identidade da Deusa, na coletânea Crossing the Water (que precede Ariel, sua derradeira obra). No poema “Maenad” (bacante, mênade, sacerdotisa em delírio), vemos a mutação a se dar:
Once I was ordinary: Sat by my father’s bean tree Eating the fingers of wisdom. The birds made milk ... Mother, keep out of my barnyard, I am becoming another.
(Já fui normal, umavez: / Sentavame ao pé da faveira de meu pai / comendo os dedos da sabedoria / Os pássaros davam leite... / Mãe, afasta-te do meu terreiro / Estou me transformando em outra.). [21]
“Ted e Sylvia: O casamento além da morte”
A partir de seu casamento com Ted, a figura masculina começa a ser revalorizada por Sylvia, não apenas como fora até então, uma repetida necessidade de validação pessoal e de adequação social, supostamente obtida por meio do amor de um homem (tema ubíquo em seus diários), mas agora como tentativa reparatória narcísica, com reais chances de sucesso.
Ao optar por Ted Hughes, ela teve de abrir mão de valores materialistas de sua primeira juventude, como dinheiro, inserção social, conforto, e, o mais importante, de valores afetivos, como a aprovação da figura materna e de seus substitutos (Ruth Beuscher, a psicanalista, Olive Prouty, a benfeitora, e, Mary Ellen Chase, a supervisora da faculdade). As três mulheres, devotadas a Sylvia, e preocupadas com os sinais de doença e de exaustão, em diferentes momentos insinuaram dúvidas quanto ao acerto de sua escolha de marido, e, no final de sua vida, insistiram com ela para que o deixasse, antes de sucumbir à tristeza.
Em Birthday Letters, Hughes lhes reserva acerbas e magoadas palavras, e se refere a essas mulheres como bruxas, cuja influência negativa teria pesado sobre o desfecho trágico da vida de Sylvia, dessa maneira defendendo- se pelo ataque. [22]
A personalidade transgressiva, ensimesmada, fanática na sua missão artística, e o físico descuidado, no asseio e no vestir – o caráter pouco convencional do poeta, em suma, impusera à frágil Sylvia sacrifícios pesados: residir em condições precárias em uma cidade estrangeira, Londres, no círculo hostil e crítico dos amigos dele, que a consideravam uma americana histriônica e dominadora, sem grandes talentos, ter filhos sem ajuda doméstica, sacrificando o precioso tempo de escrita, viver saudosa da paisagem marinha, limpa, translúcida e azul da cidade natal, e tolerar a sombra poética do marido, convivendo, a duras penas, com o ciúme enlouquecedor dirigido às colegas e admiradoras dele.
Em um primeiro momento, Sylvia sacrificou tudo de bom grado, acreditando ter encontrado alguém a sua altura, em sensibilidade e inteligência. Além das qualidades intelectuais de Ted, encantou-se com sua aparência física, forte e selvagem, arriscando-se a uma entrega amorosa e sexual intensa. Chamouo de corsário negro logo após conhecê- lo (oh, my black marauder!) e comportou-se de maneira atrevida e excitada na primeira apresentação, em um baile em Cambridge, aonde ele fora com a namorada: atraiu-o, pela declamação de versos da autoria dele e mordeu-lhe o rosto, quando ele tentou beijá-la. Ted Hughes, fascinado com a jovem americana, em um lance dramático, roubou-lhe a fita do cabelo e o brinco, e, passados 40 anos, descreve assim o encontro:
It’s jaws into my face. The tenacity Of the big cat’s claim On the one marked down and once disabled Is a chemical process – a combustion Of the stuff of judgement.
...Little did I know The shock attack of a big predator According to survivors numbs the target Into drunken euphoria. Still smiling As it carried me off I detached The hairband carefully from between its teeth And a ring from its ear, for my trophies. [23]
(Cravou suas presas no meu rosto. / A tenacidade / Da posse do felino enorme / Sobre a presa escolhida e estropiada / É um processo químico-combustão / Da matéria do juízo / Eu não sabia / Que o ataque de um predador de grande porte, / Dizem os sobreviventes, mergulha a vítima / Numa euforia de embriaguez. / Ainda sorrindo / Enquanto ela me arrastava, arranquei / Com cuidado / a faixa presa entre seus dentes / E um de seus brincos, para guardar como troféus).
No poema acima, “Trophies” (troféus), coalescem, de forma metafórica, várias das forças psíquicas que parecem atar esses personagens. A jovem americana, neófita naquele meio universitário inglês, estava insegura e ansiosa por agradar (ela acabara de saber que o poema que submetera à revista literária da universidade, St. Botolph’s, presidida por Hughes e seus amigos, fora recusado e ridicularizado. Isso a fizera sentir-se, na confissão ao inseparável diário, rejeitada e angustiada).
“We half jokingly concocted a dismemberment” (nós, de brincadeira, efetuamos um esquartejamento), lembra-se Ted, referindo-se ao episódio, com mal empregada leveza, e insistindo no uso do vocábulo dismemberment (esquartejamento), tão pleno de ressonâncias terríveis na obra, na vida e na morte de Plath.
Hughes, insensível à fragilidade dela, a descreve como uma fera perigosa, um felino enorme (aqui ocorre, certamente, um diálogo intertextual com o poema “Pursuit” (a perseguição), escrito por Sylvia logo que conhecera e se apaixonara pelo futuro marido, e no qual ele e seu desejo sexual são representados pela pantera.
Ted parece dizer que ele jamais foi a fera que Sylvia lhe atribuiu: ela era o felino do casal, e ele o apontado como caça, escolhido para morrer.
No poema, Ted vê-se como passivo receptáculo da lascívia e da ferocidade; apenas se deixa amar e morrer; submetendo-se aos desejos da Deusa da natureza, selvagem e incontida.
A equação mítica está devidamente preenchida: o herói acasalase com a divindade feminina, sem o saber, sem reconhecê-la em sua metamorfose animal.
Sylvia, ao longo do casamento, sem suspeitar sobre aonde esse script a conduzirá, aceita desempenhar esse papel de zeladora das paixões, da mulher forte que pode “receber” e “incorporar” as forças instintivas sexuais e agressivas: a xamã, a feiticeira, a sacerdotisa, que pode morrer e renascer em um ciclo infinito de reencarnações, até que o herói finalmente se dê conta da violência e do abandono em relação a ela, e venha, arrependido, prestar-lhe homenagem e pedir-lhe perdão. Lembremos que desde muito jovem fantasiava ser o impulso vital do marido, talvez em um movimento melancólico de falsa reparação de um pai morto dentro de si.
As inversões entre a realidade e o poema são chocantes: quem morre é ela, embora aqui seja denominada caçadora (como Diana, a deusa); quem leva os troféus é ele, embora ele se diga caça.
Lembremo-nos de um dos últimos poemas de Plath, “Ariel”, que deu nome à coletânea encerrada logo ao separar-se do marido. Nele, ela descreve, de forma entrecortada, as sensações de um momento de pânico e excitação, rumo à morte, em uma cavalgada fantasmática: Sam era o nome real de seu cavalo, em cujo dorso ela perdera os freios e temera a morte. O leitor facilmente se contagiará com o tom lúgubre e premonitório, com a respiração entrecortada de “alguém” que ora vê, ora agarra, ora se dissolve em prazer. “Ariel” também é o nome de uma leoa mítica, de cabelos de fogo, ou o altar sacrificial onde se imola uma vítima, no Antigo Testamento. Por último, e com mais imediatez associativa, “Ariel” é o espírito do ar, da peça “The Tempest”, como já mencionamos: o espírito que canta versos ao pai-deus submerso.
Ariel morte, Ariel leoa-deusa, Ariel Deus-Pai, reunidos no Sol (o olho-eu), a grelha máxima que consumirá a oferenda em cinzas. Aqui se dá o encontro com a divindade, em uma inversão da escada de Jacó (do Céu à Terra, na Bíblia, através dos anjos; da Terra ao Céu, na mitologia indígena norte-americana, através de flechas): [24], [25]
...God’s lioness, How one we grow, Pivot of heels and knees!... ...And I am the arrow, The dew that flies Suicidal, at one with the drive Into the red
Eye, the cauldron of morning.
(Leoa de Deus, / Fomos sendo uma só, / Eixo de calcanhares e joelhos! / E eu sou a seta, / O relento que voa / Suicida, à uma, em força / Em direção ao Olho / Vermelho, o caldeiro da manhã.)
Ted Hughes, postumamente, responde à mulher no poema “Sam”:
...How did you cling on?... What saved you? Maybe your poems Saved themselves, slung under that plunging net, ... How did you hang on? You couldn’t have done it. Something in you not you did it for itself... ...That gallop Was practice, but not enough, and quite useless. When I jumped a fence you strangled me One giddy moment, then fell off, Flung yourself off and under my feet to trip me And tripped me and lay dead. Over in a flash. [26]
(E como segurou-se? / O que a salvou? / Quem sabe os seus poemas / Souberam salvar-se, dependurados daquele pescoço impetuoso, / Como se agüentou? / Você não conseguiria. / Algo em você que lhe era alheio fez o que fez por si. / O galope foi para praticar, mas não bastou, e não serviu para nada. / Quando pulei a cerca, você me estrangulou / Por um instante tonto, e depois caiu, / Desprendeu-se de mim, jogou-se entre meus pés, / Me fez tropeçar e caiu morta. Tudo muito rápido.)
Como vemos, passados 40 anos, Ted Hughes nos informa que ele não se apercebera da força que a propelia para a morte: tudo se dera muito subitamente, e, ademais, ele sentira-se sufocado. Alguma entidade superior, possante e invencível, predestinara-a para a morte, não importa o quanto ela se esforçasse e praticasse o galope da vida. Algo maior que eles determinara que Sylvia estava fadada: ela pereceria, mas seus poemas se salvariam.
Os últimos tempos do casamento foram difíceis para ambos: Sylvia, expondo-se em cenas públicas de ciúme, constrangendo Ted e os amigos do casal: ele, crescentemente esquivo, envolvendose com Assia Wevill, a bela mulher de um professor canadense, inquilino do apartamento londrino do casal. Este mudara-se para Devon, no campo, para preparar o nascimento do segundo filho, Nicholas.
Quando se refere a Assia, no diálogo imaginário com Sylvia, novamente o vemos passivo, vítima do destino, todos os três, personagens encerrados em uma armadilha disposta maliciosamente pelos deuses:
The Fate she carried Sniffed us out And assembled us, inert ingredients For its experiment. The Fable she carried Requisioned you and me and her, Puppets for its performance.
(Seu Fado farejou o nosso rastro / E nos juntou, como quem combina ingredientes / Para um experimento. / Sua Fábula / Requisitou você, e a mim, e a ela própria, / Títeres para um espetáculo.).
O título do poema é sintomático: “Dreamers”. Não há chance contra o destino, somos todos sonâmbulos, reafirma Hughes. [27]
Sabe-se da importância regenerativa da experiência do casamento por ele representar uma oportunidade de emergência e de elaboração das vivências passadas e inacessíveis com os objetos primários. Ao revisitar papéis e fantasmas da primeira infância, ao reencenar velhos dramas, podem-se alterar tristes epílogos por meio da cumplicidade anímica de um parceiro amoroso. O casamento, no sentido do encontro físico e psíquico de dois seres, promete uma chance inédita de reformulação profunda do eu. Pelos mesmos motivos, também aporta riscos de desintegração, uma vez que as defesas narcísicas de um self delicado e precário poderão ser seriamente abaladas pela entrada, sem guarda, de um parceiro, forçosamente idealizado e recoberto pela libido sobre ele defletida.
Ted Hughes, nos últimos anos de vida, freqüentou a nobreza inglesa, na condição de poeta da corte de Sua Majestade, viveu bem financeiramente, de direitos autorais (seus e de Sylvia, de quem foi herdeiro), tornou-se famoso e respeitado como um dos maiores poetas contemporâneos de língua inglesa e recebeu a láurea máxima que um poeta britânico pode almejar: “poet laureate”. Sempre que se referiu a Sylvia Plath foi para cobri-la de elogios, como poeta com sensibilidades paranormais, alguém acima dos padrões humanos.
Durante algum tempo, Sylvia Plath subsistiu e lutou para que o casamento e a arte a ajudassem a atravessar as águas turbulentas de sua existência. Ao completar trinta anos e perder o amor de Ted Hughes, sucumbiu, encarnando o mito sagrado do poeta, que lhe fora designado, na ilusão de que, morrendo como Deusa, pudesse finalmente encontrar apoio em um marido-pai mítico, a sua espera, nas profundezas do além. Cansara-se, como mulher, de clamar em vão por socorro.
The woman is perfected. Her dead
Body wears the smile of accomplishment, The illusion of a Greek necessity Flows in the scrolls of her toga, Her bare
Feet seem to be saying: We have come so far, it is over.
“Edge” 5/2/1963
“Ponto-Limite”(A mulher chegou à perfeição. / O seu corpo / Morto veste o sorriso da realização, / A ilusão de uma fatalidade grega / Corre pelas pregas da sua toga, / Os seus pés / Nus parecem estar a dizer: / Viemos até tão longe, acabou- se.) [28]
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