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Resumo
O artigo aborda a questão do erro a partir de uma tradição dualista de pensamento que pretende se estruturar em pares antagônicos. O texto se encaminha no sentido de colocar em xeque tal dicotomia, relacionando essas vertentes com o advento da modernidade e a releitura do erro como possível desvelamento e posicionamento subjetivo. Desse encadeamento, ao final, interroga a possibilidade de estabelecimento de um estatuto de erro que serviria como limite real ao infinito jogo de oposições. Palavras-chave erro; psicanálise; dicotomia; complexidade; limite; Lacan.


Palavras-chave
escuta analítica; erro; o infantil.


Autor(es)
Maria Lucia Homem
é psicanalista, com pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII / Collège International de Philosophie, e pela FFLCHUSP. É professora nas áreas de Psicanálise, Cinema e Comunicação da FAAP e da PUC. Participou com capítulos nos livros Leitores e leituras de Clarice Lispector (Hedra, 2004) e Estranhas Travessias (Edifieo, 2004), entre outros.


Notas

REVER NOTAS
1 D. Francisco de Portugal, "Divinos e humanos versos", in N. P. Ferreira, Poesia barroca - antologia do séc. XVII em língua portuguesa, p. 65.

2 T. Pinto Brandão, "A um relógio de areia", in Poesia barroca..., op. cit., p. 181.

 3 F. de Quevedo, "Todas las cosas son aviso de la muerte", in J. Mas, 68 sonetos del siglo de oro, p. 93.

 4 F. M. de Melo, "Em dia de cinzas, sobre as palavras", in Poesia barroca..., op. cit., p. 61.

 5 G. Matos, in Poesia barroca..., op. cit., p. 123.

 6 A. Pinheiro, Aquém da identidade e da oposição; formas na cultura mestiça, p. 35.

 7 M. Cervantes, in 68 sonetos..., op. cit., p. 52.

 8 Lope de Vega, in 68 sonetos..., op. cit., p. 77.

 9 G. Deleuze, A dobra: Leibniz e o barroco, p. 45.

 10 G. Deleuze, Pourparles, p. 216.

 11 V. C. Moreira, Leibniz & a linguagem, p. 26.

 12 G. Deleuze, A dobra..., op. cit., p. 35.

 13 G. Deleuze, op. cit., p. 36.

 14 G. Deleuze, op. cit., p. 37.

 15 G. Deleuze, op. cit., p. 39.

 16 M. Foucault, Les mots et les choses, p. 20.

 17 G. Deleuze, op. cit., p. 38.

 18 G. Deleuze, op. cit.

 19 Cf. catálogo da exposição "Rembrandt e a arte da gravura", p. 46.

 20 G. Simões Gomes Jr., "Em torno da noção de barroco no Brasil", in Cultura brasileira: figuras da alteridade, p. 12.

 21 Op. cit, p. 19.

 22 Op. cit., p. 22.

 23 G. Deleuze, op. cit., p. 208.

 24 S. Sarduy, O barroco, p. 97.

 25 A. Ávila, A lógica do erro, p. 13.



Referências bibliográficas

Costa N. (2008). Ensaio sobre os fundamentos da lógica. 3. ed. São Paulo: Hucitec.
Frege G. (2002). Investigações lógicas. Porto Alegre: Edipucrs.
Freud S. (1976). A psicopatologia da vida cotidiana. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, vol. VI.
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Lacan J. (1998). Le séminaire, Livre V, Les formations de l'inconscient. Paris: Seuil.
_____. (2005). Le Séminaire, Livre XXIII, Le sinthome. Paris: Seuil.
Nietzsche F. (2005). Além do bem e do mal. São Paulo: Cia. das Letras.





Abstract
The paper focuses on the question of error from a dualist tradition of thinking which intends to symbolize itself in antagonic pairs. The text progresses in the sense of keeping in check this dichotomy, relating these paths to the arrival of Modernity and the rereading of error as possible unveiling and subjective positioning. From this concatenation enchaining, at the end, asks about the possibility of settlement of an error statute which could serve as real limit to the infinite interplay play of oppositions.


Keywords
error; mistake; Psychoanalysis; dichotomy; complexity; limit; Lacan.

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 TEXTO

O erro como desvelamento e limite

Error as unveiling and limit
Maria Lucia Homem

O erro faz parte de uma dessas categorias gêmeas, como de um ser que nasceu grudado em outro: pensar o erro traz em si, embutida e à espreita, a noção de acerto. A palavra errado carrega consigo o certo. Talvez desde muito pequenos temos colocado nos ombros tais pares e nos estruturado a partir dos certos e errados da língua falada pelos nossos pais, chegando aos certos e errados das inúmeras provas do chamado conhecimento, aquele acumulado em anos de bancos de vida e de escola.

Há algumas outras polaridades dicotômicas na língua e na história, que iremos sobrevoar na sequência, e talvez todas elas tenham um funcionamento semelhante, na medida de sua dependência de uma lógica de oposição que se constrói com o duplo no espelho invertido. Talvez tenhamos tido necessidade dessa estruturação para nos situar como seres simbólicos e lógicos dentro de um caótico universo, talvez ainda necessitemos dela para continuar a tentar dar conta do mesmo caos - tanto aquele que era natureza pura quanto o que o humano forjou por sobre o que lhe foi dado - sempre prenhe de significações construídas e valoradas.

Neste texto, pretende-se refletir sobre essa estrutura dual, ao mesmo tempo que, levando esse questionamento ao extremo, se irá esbarrar em um ponto negro - espécie de umbigo do sonho - que servirá como limite e opacidade para a argumentação dedutiva.

A falha e o sucesso

De uma certa perspectiva, para a psicanálise o ato falho é um ato de sucesso. Desde Freud, que o formalizou e analitizou , o ato que falha em seus objetivos pretendidos é revelação de um algo muito singular do sujeito que o enuncia ou executa e que, em última instância, desvela seu desejo inconsciente. Nesse sentido, o ato falho é o único do qual podemos afirmar com segurança ser um ato bem-sucedido, como diria Lacan. Abordando as formações do inconsciente , concede um lugar privilegiado ao lapso em sua discussão sobre o desejo.

O ato falho coloca em cena as moções inconscientes ligadas à carga que dá tonalidade às representações e também se coloca como saber. O inconsciente é saber, daquele gênero especial de saber que não sabe de si. No instante mesmo em que o ato falho vem à tona, essa porção de desconhecido pode vir a ser apropriada pelo consciente, justamente saber que se sabe um pouco mais. E, se o sujeito vier a querer saber e, eventualmente, se colocar numa posição de leitura de seu dizer a priori sem o sentido esperado, pode talvez alçar um voo um pouco mais arrojado na infinita espiral do dizer e vir a se apropriar da falha de seu ato, fazendo-se um pouco menos escravo do mestre que o conduz. O pedágio é justamente o de não situar seu dizer ou seu ato como falhos - a recusa do engano, erro, lapso como mero equívoco é que funda, afinal, o sujeito analítico, o que faz uma espécie de parceria com sua produção inconsciente e a recebe como fonte de luz e matéria para apreender de si.

Nessa posição, temos um sujeito que pode vir a empreender um processo de interrogação de sua história, justamente aquele que faz do erro um acerto e o escuta como produção de um outro eu - lugar de fato paradoxal, que desatrela o sujeito da consciência, rompendo uma identidade forjada há alguns séculos. Ou seja, o convite que se faz a um ser falante que busca um psicanalista não deixa de ser peculiar: exponha-se ao dispositivo que buscará em um emaranhado de não saber e não reconhecer aquela verdade em última instância moderna e perseguida pelos ideais das luzes: a consciência busca se ampliar. Afinal, aquele que se analisa quer sempre saber mais. Inclusive de seu erro que diz, e, nesse sentido, é discurso mais denso e revelador do que a acertada repetição usual com a qual forjamos nossos elos sociais de sentido.

Dessa maneira, portanto, quando a psicanálise afirma a essência do ato falhado como bem-sucedido e prenhe de significações a serem decifradas - mãe de inconsciente e pulsões reveladores - ela faz um elogio da subjetividade. Uma inescapável e talvez sedutora afirmação do desejo subjetivo que busca, sem cessar, sua expressão. E, mais do que isso, sua eventual realização. Nesse sentido, um movimento que caminha rente aos grandes eixos da modernidade, em sua inexorável afirmação do indivíduo e da possibilidade de sua subjetivação, no intrincado formato metodológico objetivista, ancorado, em última instância, numa separação sujeito versus objeto que instaura os lugares distintos da batalha científica.

Aquele que nos procura com seu gozo e seu sofrimento não precisa saber de nada disso, mas ele sabe que não está sabendo tudo o que poderia saber para tentar dar conta de sua vida de uma maneira mais interessante. Nesse momento, se dispõe a procurar e pagar alguém que supõe dispor desse saber: pacto moderno por excelência, ao mesmo tempo que subversão das antigas categorias de certo e errado, de consciente e inconsciente, de eu e outro e, ainda, de saber e não saber.


O clássico e o moderno

Cena de dança.

Havia um espetáculo do balé da cidade em cartaz. O século era o XXI e o repertório era híbrido: um número moderno, intervalo, um número clássico.

O moderno foi impactante em sua possibilidade de fronteira com o disforme, naquela forma fluida onde todos os movimentos, planos e figurinos eram permitidos.

O clássico chegou solene, com suas saias enrijecidas, corpos controlados e controlantes, sapatilhas de ponta: um outro tipo de beleza. Foi executado à perfeição, salvo pelo detalhe ao mesmo tempo temido e inesperado: uma bailarina escorregou. O tropeço foi visível. Esse tropeço foi visível. Não passou despercebido entre tantos seres em movimentos esparsos. Não, dessa vez o erro foi escancarado.

E a partir desse momento o espetáculo se transforma. Os bailarinos em cena vibram em outra frequência, nosso olhar como espectadores se altera.

O que o erro nos diz? Ao menos três planos se desenham.

O primeiro e mais basal é a consciência de que estamos imersos em um pacto ficcional. Uma obviedade: sabemos de maneira clara e cristalina que justamente pagamos o preço para usufruir de corpos em representação. Mas, como qualquer expressão do óbvio, é justamente desse cerne que nos ausentamos assim se inicia o processo. O esquecimento do acordo vem à tona para que possamos mergulhar na outra cena, ficção por excelência - aquela que tem que ser inconsciente de si, pois não estamos numa ruptura à la Brecht nem no trabalho da decifração analítica. O corpo que se mostra e movimenta é parceiro da ficção, fictio que, em sua matriz, é fingere, fingimento e imaginação. Ou seja, não se trata do corpo em seu uso cotidiano, em sua função usual de movimentos de suportar, mover e transformar os objetos do mundo. É corpo livre da materialidade do real, ao mesmo tempo que presa de códigos determinados e apriorísticos fundadores da prática de arte ficcional em questão, a dança. Mas no momento em que vejo esse corpo em cena, esqueço que ele não anda usualmente sobre uma ponta de madeira acetinada. Esqueço inclusive que jamais ele se equilibra durante longos minutos sobre esse apoio mínimo, colorido e artificial. Naquele instante ele me enganava e eu me deixava enganar por sua leveza bela e transcendental. O erro me fez recobrar essa consciência.

A segunda revelação se imbrica precisamente aí. Percebo que no balé clássico o erro é fatal, pois que a carga de artificialidade é alta. O erro é visível, pois que a coreografia é estritamente desenhada. O olho do público leigo se deixa enganar mais confortavelmente pelo jogo do corpo na dança moderna, aquela em que a queda pode fazer parte do jogo. Ou seja, estamos em um jogo metalinguístico, em que se faço paródia do clássico ou queda sutil, você não saberá os limites de minha intencionalidade, pois ela passa a se ocultar nas mais amplas possibilidades de uma representação que inclui o erro e a margem para dentro de suas fronteiras. O espectador, a partir de um simples e efêmero tropeço, se dá conta de onde está - frente a um palco - e da diferença de sua experiência no primeiro e no segundo atos do ritual de encenação. O moderno e o clássico se polarizam em sua percepção.

E ainda se alinha um terceiro vetor: a leveza da dança é fruto da dureza infindável de um trabalho árido. Aquela bailarina que está ali ensaiou muito para não errar. Ensaiou inúmeras vezes aquela coreografia, naquele verão em que se preparavam todos para o espetáculo. E, mais do que isso, seu corpo vem ensaiando desde muito jovem, pois aos quatro anos ela já começava a querer se equilibrar nas pontas dos pés se apoiando na barra em frente ao longo espelho de sua escola de balé.

Enfim, a leveza é falsa, a naturalidade é falsa, o passo é falso - artifício. A repetição é verdadeira. Tudo o que sabemos bastante bem. E nos esforçamos para, naqueles preciosos momentos, criar a arena na qual a outra cena se desenrolará. E quem me revela meu próprio desejo de engano? O outro engano, aquele do erro. Engano que revela engano, numa espiral de revelação que termina por consistir uma dialética mais complexa, do erro que vela e desvela, que faz ocultamento de esferas do real ao mesmo tempo que o revela em sua crueza e fragilidade.

Mas a oposição clássico/moderno ultrapassa adjetivações do universo da dança. Ela fornece um amplo campo semântico que opõe tradição e modernidade, antigo e atual - regimes, eras, paradigmas. De certa maneira sintética, poderíamos dizer que o moderno foi, no tocante ao tema em discussão, a afirmação mais radical de um eu pensante que, via racionalidade, constrói seus limites e preceitos. Nesse sentido, o moderno leva à possibilidade do método para buscar as explicitações do que sustenta a superfície: ela incorpora o engano em suas formas de fatura, dando-lhe um lugar protagonista. Afinal, não podemos esquecer que a Modernidade é fruto do caldeirão do Renascimento e luto de grandes equívocos: a Terra não é o centro do universo, a Europa não é o centro da Terra, o homem branco não é o centro da civilização, o homo sapiens não é o centro de quase nada além de sua convicção egoica.

A razão, no início do novo paradigma, parece ter se candidatado a novo centro. As luzes racionais, no entanto, não permaneceram tantos séculos assim no lugar do ideal. A crise em sua fé logo se fez sentir e o humano, atônito por ter que se expulsar do mais recente paraíso, passa a ter que lidar ao mesmo tempo com a cultuada razão assim como com seus avessos, tão logo sentidos.

A arte vai se apropriando dessa crise e acaba por incorporar os processos de seu fazer, que se explicitam de modo mais radical nas vanguardas da virada do XIX para o XX. O espírito do tempo se decanta: a dança moderna desconstrói o corpo de sua forma canonizada até então, assim como o cubismo expõe as formas de um ser cindido plano a plano, ambos irmãos do nascente cinema, que, fotograma a fotograma, opera num segundo nível de mímese, pois que filho da técnica industrial, com suas lentes, filtros, engrenagens, enfim, máquina daqui para a frente a grande mediadora do humano com o real. Todos eles primos contemporâneos da psicanálise que, também nesse momento histórico, incorpora à racionalidade algo que estava posto de fora dela e o coloca no cerne de sua experiência: o inconsciente e o não-sentido não são mais monstros ocultos das trevas interditas, mas massa de pão que deixamos fermentar e na qual molhamos nossas mãos todos os dias.

Imerso nessa outra razão que vai se consistindo no dia após dia da clínica, o sujeito falante reconstrói seu discurso, delimitando e, num segundo momento, dialetizando seus pares de oposição fundamentais. Na esteira do questionamento de modelos identificatórios constituintes, de consistentes objetos falicizados e marcas simbólicas fundamentais que se alternam entre positividades fetichizadas e resvalamento do contravalor, o analisante acabará por ir além das dicotomias que embasavam suas significações iniciais.

Aqui se desenha a configuração de um terceiro momento lógico do processo analítico: aquele em que o sujeito vai desvelando o "outro lado" dos adensamentos simbólicos que o constituíram, adjetivados com os predicativos idealizados ou esvaziados aos quais ele sempre deu crédito. E observa que por trás de todo grande sempre há o pequeno, assim como o pequeno caminha nos ombros do gigante e que talvez ambos sejam perspectivas mais ou menos levemente imaginárias que o fizeram ser o que sempre acreditou ser.


Além do bem e do mal

Caminhamos então para a perda da alta carga de verdade que sustentou as dicotomias estruturantes das sociedades humanas durante tão longo tempo. Chegou o momento em que certo e errado talvez não fizessem tanto o sentido consistente de antes, assim como o bem e o mal, o belo e o feio, o verdadeiro e o falso. Se por um lado essas foram (e talvez o sejam ainda, para vários) as categorias organizativas da cultura, por outro deixam de ser estritamente corretas a partir do momento em que o campo está mais aberto e o conceito de relação se revela em toda a sua potencialidade, abrindo o leque da era da relatividade. Além de os pares se ajustarem um em relação ao outro, eles se interpenetram.

Já Kant, no final do XVIII, e de dentro de um projeto que queria se constituir em torno da razão e sua crítica, busca ultrapassar a dualidade em torno do juízo estético, instaurando, para além do belo, a ideia de sublime. Ou ainda tornando mais complexas as noções de verdade que sustentam a ciência e as prerrogativas de uma razão pura, assim como a razão que busca a referência de sua prática no ato moral. Ao longo de todo o XIX, as categorias dicotômicas sofrerão abalos. É nesse sentido que Nietzsche, em um feliz achado, nomeia a aura da nova era: além do bem e do mal . Freud é filho desse tempo, e filho privilegiado, pois sua contribuição é central para a compreensão do humano como se situando no território da além-racionalidade estrita e buscando dar conta dos impulsos e simbolizações mais singulares e íntimos, ultrapassando as dualidades.

O processo analítico parece repetir o movimento histórico e, em determinado ponto, se vê obrigado a superar seus pares antitéticos. Nesse momento, uma brecha pode se abrir para uma nova espiral do movimento de um sujeito em análise. Aquele que fala já desconfia de seus adensamentos de sentido e valor, e acaba por colocar em xeque suas categorias classificatórias que norteavam suas escolhas e atos. Surgem, assim, as condições de possibilidade de ultrapassagem de estruturas dicotômicas fixas em direção a um processo de relativização. Não no sentido do relativismo como sintoma contemporâneo ligado à crise da função paterna e seus correlatos de suspensão de uma posição ética e consequente. Mas na direção de um processo de relacionar duas variáveis em processo, situando seus procedimentos no aglomerado aberto de núcleos antes dual e claramente estabelecidos. A metodologia é menos cristalina e o campo é operado a partir de sistemas complexos onde o caos medianamente organizado pode comparecer como elemento chave.

Daí o porquê de uma certa psicanálise ter se interessado por formas mais contemporâneas dos estudos lógicos, concentrando-se nas contribuições de Frege e, mais atualmente, de Newton da Costa, na direção de uma lógica paraconsistente , na qual o paradoxo passa a ser assimilável. Estamos ao mesmo tempo no cerne da teoria edípica freudiana e no além-Édipo, com o princípio do terceiro incluído operando como norteador. A conceituação de "quase verdade" passa a ser um operador fundamental na nova lógica dos sistemas abertos e complexos, apontando inclusive para uma nova concepção de verdade parcial que inevitavelmente deslocará o paradigma epistêmico da ciência.

Em termos psicanalíticos, e em poucas palavras: não estamos no domínio do certo ou errado, estamos no domínio da maior ou menor implicação subjetiva, no sentido de que a linha de uma análise trabalha com a crescente apropriação por parte de um sujeito dos vetores de sua história. Além do bem e do mal: então no campo da mais ampla consciência?

É aqui que o terreno se torna fértil para que a semente da peste se espalhe. A época pode passar a aceitar que o ato que falha pode revelar o acerto daquele que fala. Pode inclusive pesquisar formações em que essa estrutura se repete e faz sentido: todas as formações do inconsciente, em que, do sonho ao chiste, passando pelo sintoma e a arte, as produções do humano são revisitadas e recolocadas em valor. Não mais o erro ou o demônio puros, mas brechas onde o que fracassou pode dizer da verdade do sujeito ou do novo que se desvela, como no erro-descoberta. Se agora errar pode ser bom e aponta para criação, revelação e descoberta, as categorias anteriores perdem algo do seu sentido estrito. O mapa se abre, a criatura se perde.

O erro-limite

A sensação de vertigem é filha da perda de referências. Se o mal pode ser o bem, e o bem, mal; se o certo pode ser errado e o errado, certo; se o belo se faz feio e o feio, sublime, então qual o critério? Quem, afinal, sou eu e qual referência norteará meu ato?

Momento importante da história do humano e da história de um humano em processo analítico.

Teria fim essa linha interrogativa? Sim, por um lado - e simultaneamente -, talvez não, por outro. Já Freud trabalhara com essa dificuldade em um dos seus textos finais, sobre o terminável e o interminável da análise . Há algo do inconsciente que não cessa de produzir, e para sempre cifrará núcleos de significação em suas híbridas formações. Porém, estamos em busca daquele algo que durante o processo se decanta e serve de ponto de basta ao infindo processo de fala e decifração, ponto em torno do qual poderíamos articular uma montagem que permitiria ao sujeito situar-se em outra posição frente ao seu próprio fazer simbólico inconsciente. Onde talvez se possa dizer, simplesmente, e no limite do quase impossível: "é isto". Ponto.

Se a incorporação do erro e seus derivativos passa a se colocar como uma potencialidade rica e mesmo necessária, e vamos construindo cada vez mais claramente uma era em que a complexidade e a relatividade ganham espaço, uma questão, no entanto, se insurge: mas além das inúmeras possibilidades e releituras, não haveria um erro simplesmente errado? Um erro em si, que não pode ser reincorporado ao sistema como possível revelação ou acerto final?

Aqui duas vertentes de hipóteses se abrem.

A primeira toca o erro como repetição. O mesmo erro se repete quase ad infinitum, revelando uma estrutura de sintoma e de gozo do sujeito que não deixa de se reencenar. Aqui esbarramos numa descoberta central da psicanálise que situa o inconsciente em uma conexão com a pulsão de morte e que demanda o longo caminho que vai da repetição a uma possível transcendência perlaborativa. Este justamente o grosso do trabalho analítico, digamos. Eis aí o nosso fazer cotidiano, com os microdeslocamentos de sentidos e posicionamentos que vão no ritmo próprio e lento da vida se esculpindo em cada sessão e, em alguns momentos-chave, se oferecem como insights de mais ampla compreensão e transformação. O erro se oferece como repetição ao mesmo tempo que pode vir a ser limite da própria configuração pulsional repetitiva.

No entanto, algo resta da repetição que não se deixa desmanchar e, assim, não deixa de se repetir. Aqui deparamos com o resto que embasa o sinthome lacaniano , ponto de ancoragem possível de um eventual atravessamento ao mesmo tempo que núcleo opaco onde a palavra não mais faz entrada. Porém, se esse cerne carregará sempre sua opacidade, estamos num sistema instável, onde a sinuosa serpente poderá vez ou outra soltar as amarras de sua caixa de Pandora. Este o melhor que a psicanálise poderia nos trazer: um saber sobre a repetição? Um espaçamento tal da repetição sintomática de tal maneira que o viver se tornaria menos limitante? Talvez sim. De qualquer forma, a repetição aqui revela o erro em sua insistência menos criativa, e portanto em direção mortífera.

E assim desenha-se uma segunda linha de reflexão. O erro, do ponto de vista subjetivo, pode sim se colocar como revelação do desejo e do inconsciente de um ser falante. Mas pode, simultaneamente, portanto, "atacar" o que é vivo, atingir o objeto. O erro pode atingir a vida de forma a eliminá-la ou enfraquecê-la. Talvez aí se mapeie sua fronteira.

Três casos vêm à tona no tocante a essa ideia de um erro-limite.

Partindo do mais concreto e também metafórico: se o construtor erra em seus cálculos e materiais, a casa cai. E isso não pode acontecer. Ela pode ter ângulos retos ou somente paredes curvas, à la Waldorf; pode ter concreto aparente ou concreto oculto; ser minimalista ou ostentatória; ter espaços amplos ou recortados - cada um constrói a casa que quiser e bem lhe significar, mas não há a possibilidade de se construir a casa para desmoronar - o que implicaria a destruição do próprio objeto, além de tudo o que ele abriga. Tem-se aí a demarcação intrínseca do próprio ato de construir. Esse o limite, essa a referência que estabelece o erro puro.

Um segundo cenário, o jurídico. Aquele que julga um caso submetendo-o ao dizer genérico da lei necessariamente está sob a possibilidade do equívoco e, aqui, um erro pode ser fatal. Inúmeras são as discussões sobre o risco de a pena de morte vir a ser prática corrente na cultura dos humanos que - estamos nos rendendo a essa evidência - em grande medida não são objetivos em seus julgamentos e demonstrações, muitas vezes sendo levados por identificações inconscientes primárias e prenhes de certezas quanto a posição, caráter e comportamento do outro. Por mais que eventualmente a posteriori se revele o equívoco do meu voto como componente do júri e que, mais tarde ainda, e se eu me interessar em interrogar, se desvele o que de projetivo houve em meu julgamento e eu aprenda algo com isso, de qualquer maneira cometi um erro puro e simples. O outro esteve em minhas mãos e eu estive em posição de poder esmagá-lo mais do que deveria. Posso condená-lo à morte ou à injustiça da pena desmedida. Condenar o inocente é um dos fantasmas que rondam a cultura. É um erro limítrofe, fato.

Antes de desdobrar a questão, um último caso: o erro dito médico. Aquele que, por ignorância, incompetência, má-fé ou simples impossibilidade de construção de um saber confiável nesse momento histórico, pode cometer um erro que implicará a perda da vida ou de sua amplitude. A falta desse saber e sua ação correlata matam. Todo profissional da área de cuidados com a saúde opera nesse mesmo fio de navalha. Um trabalho analítico também pode patinar nas pulsões de repetição e deixar de se dirigir para o que de criação opera numa organização subjetiva.

Enfim, o erro pode levar a uma diminuição total ou parcial da potência da vida - esse o critério último que o coloca em um outro estatuto ontológico, diferente do enfocado até então, ligado à construção de um limite para o ato.

Desdobrando a reflexão, podemos interrogar a causalidade que opera aí. Uma hipótese trabalha com a relação entre o erro-limite e a falta, e isto de duas formas distintas.

A primeira tem no horizonte uma falta de saber. O erro se dá como efeito da falta de saber por parte de um sujeito: tanto o conhecimento sobre o objeto - e nesse caso estamos no âmbito de um erro dito técnico - como o conhecimento sobre o próprio sujeito - estilo de erro que poderíamos talvez nomear como analítico. Supõe-se aqui que o ato opera no escopo da boa-fé, expressão algo peculiar para expressar a intenção consciente de uma alma (uma estrutura psíquica) que não busca sub-repticiamente cometer o mal (usufruir do outro como objeto do meu prazer).

A segunda possibilidade lida com a situação em que haveria saber técnico e autoconhecimento mínimo para propiciar a realização do ato consequente, e, no entanto, isso não ocorreu. O sujeito não esteve disponível para tal pois assim não o desejou, mais ou menos consciente, mais ou menos displicentemente. Como nomear essa figura? Erro moral? Isto se dá quando a figura do outro não está inserida no sistema do sujeito de forma a fazer limite a seu gozo. Talvez estejamos falando de uma falta ligada à construção do conceito de alteridade como diferença para uma subjetividade já formada, isto é, que necessariamente opera a partir de uma matriz ética.

A partir daí, estabelece-se um critério para situar o erro limítrofe: não importam os ganhos relativos para o sujeito em questão, o ato performado retira ou diminui a potência da vida. O limite é dado pelo vivo. E esbarra na alteridade, mesmo que se trate da alteridade do próprio eu.

Enfim, se, por um lado, o erro revelou-se ao longo da história da civilização e da história de um sujeito em análise como possibilidade de descoberta, criação, desvelamento na direção de complexidade do processo subjetivo, por outro, pode operar também como ponto de opacidade que funciona como limite para as infinitas cadeias de simbolização e para a consideração radical da alteridade e da existência de vida como valor de referência no real.

O limite desenha os contornos dessa figura de referência. Assim, o processo de análise pode vir a encontrar seu limite e final. Critério de certa forma simbólico, mas que talvez seja de inevitável consideração se operamos com um campo onde sujeito e outro se colocam em interação, mediados pela operacionalidade da lei que delimita o campo de relações. E pensar sua graça e limite não deixa de ser o cerne do nosso trabalho.


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