voltar ao sumárioResumo Qual o papel da linguagem na divulgação do sentido técnico da análise? Essa questão é aqui discutida a partir de diferentes níveis de sustentação da fala, especialmente em situações de incapacidade associativa. Autor(es) Sandra Lorenzon Schaffa é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Notas 1. P. Fédida, Do sonho à linguagem, in Nome, Figura e Memória – A Linguagem na situação analítica, São Paulo, Editora Escuta, 1992. 2. P. Fédida, Modalidades da comunicação na transferência e momentos críticos da contratransferência, in Comunicação e Representação, São Paulo, Editora Escuta, 1989. 3. P. Fédida, “A Psicoterapia dentro da Psicanálise”, in Jornal de Psicanálise. 4. P. Fédida, op. cit., p. 103. 5. S. Freud, Manuscrit E, in La Naissance de la Psychanalyse, Paris, P. U. F., 1894. 6. Constructions dans l’analyse (1937) in Résultats, Idées, Problèmes Ii, Paris, P. U. F., 1985. 7. P. Fédida, “Do sonho ...”, p. 31 8. A. Green, Le langage dans la psychanalyse, in Langages, Paris, Les Belles Lettres, 1984. 9. J.-D. Nasio, L’hysterie ou l’enfant magnifique de la Psychanalyse, Paris, Payot, 1990, p. 69-70. 10. Idem, p. 107-109. 11. J. Lacan, Séminaire XI – Les quatre concepts fondamentaux de la psychanalyse, Paris, Seuil, 1964, p. 78. 12. P. Fédida, “Do sonho...”. 13. P. Fédida, “Do sonho...”, p. 18. 14. S. Freud, Psychologie des Masses et Analyse du Moi (1921), in Freud, S., Oeuvres Complètes, Tome XVI, Paris, P. U. F., 1991. 15. S. Freud, “De la sexualité féminine” (1931), in Freud, S., Oeuvres Complètes, Tome XIX, Paris, P. U. F., 1995. 16. J. M. Canelas Neto, Trabalho apresentado em reunião científica da SBPSP de 2002. 17. A. Green, Passions et destins des passions, in La Folie Privée, Paris, Gallimard, 1993. 18. J. P. Winter, Errants de la Chair –Études sur l’hystérie masculine, Paris, Payot, 1995. Como as citações provêm do mesmo texto, colocamos apenas as páginas de onde foram extraídas. 19. P. Fédida, “A doença sexual: a intolerável invasão”, conferência em São Paulo, 1990. 20. No Projeto, Freud escreve: “ O organismo humano, em seus estágios precoces, é incapaz de provocar essa ação específica, que não pode ser realizada senão com uma ajuda exterior e no momento em que a atenção de uma pessoa dirige- se ao estado da criança. Esta última a alertou por uma descarga produzindo-se pela via de modificações internas (pelos gritos da criança, por exemplo). A via da descarga adquire assim uma função secundária de extrema importância: a da compreensão mútua. A impotência original do ser humano torna-se assim a fonte primeira de todos os motivos morais.” 21. (Manuscrito F: “A tensão psíquica aumenta e atinge seu ponto culminante, podendo então suscitar um efeito psíquico, mas em tal caso e por uma razão qualquer, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente; o afeto psíquico não pode se produzir, pois certas condições psíquicas encontram- se parcialmente ausentes, o que ocasiona a transformação em angústia da tensão que não está psiquicamente ligada. Freud, 1984). 22. S. Fédida, Crise et contretransfert, PUF, 1992, p. 53 23. Supervisão de Pierre Fédida na SBPSP, Percurso, ano XVI, nº 31/32, 1º sem. 2004. 24. E. Lévinas, Éthique et infini, Paris, Le libre de poche Fayard, 1982, p. 64 e 49. Abstract The authors discuss the role of language in the technique of Psychoanalysis. States of incapacity to associate are related to traumas, and a case is brought to illustrate how speech can be sustained in different levels of the subject’s experience. voltar ao sumário
| | TEXTOA urgência e o poder da fala dentro da análise:trauma e construção da subjetividade. Urgency and the power of speech in analysis: trauma and the constitution of subjectivity.
Sandra Lorenzon Schaffa
O tempo então é mais que coisa: é coisa capaz de linguagem, e que ao passar vai expressando as formas que tem de passar-se. JOÃO CABRAL DE MELO NETO, 1994.
O poder da fala em análise advém da capaci dade do analista em habitar o lugar transferencial, que lhe é imposto sempre de manei ra única e singular, em cada análise. Esta consideração implica o sentido que, para nós, assume a função analítica pertinente ao terreno de uma discussão sobre o papel da linguagem dentro da análise na delimitação e na definição do seu sentido técnico.
Pierre Fédida retoma, a partir do Corpus hipocrático, o sentido da palavra anamnesis (relembrar, o lembrar remontado, reconstruído) para sublinhar um aspecto que torna o médico, mais do que simples médico, um terapeuta: é preciso que ele se coloque à justa distância que permita ao doente falar. Mais abaixo, no mesmo artigo, acrescenta: “o saber é necessário ao médico para que este se torne terapeuta, mas ele só será terapeuta se junto a ele se dispuser a fala do doente – fala em sofrimento de seu desejo de falar”. E é isso que ocorre quando a fala do terapeuta se forma em um questionamento singular e pessoal, “fala que não precisa nem mesmo ser pronunciada para ser fala que o doente escuta”. [1] (Fédida P., 1992, p. 14)
Abordar a doença psíquica, tendo a linguagem como horizonte técnico, é designar o ato da escuta como atenção dirigida à fala em sofrimento de seu desejo de falar. É, , em certos casos, ir ao encontro da fala no lugar onde ainda não pode ser pronunciada. Em nossa clínica encontramo-nos com freqüência diante de situações que reconhecemos como a de um impedimento da entrega da fala ao trabalho associativo. Essa resistência, que por vezes faz fracassar o esforço analítico, é também a fonte de um questionamento fortemente produtivo sobre os limites da escuta e a sua referência ao terreno da linguagem como próprio à instauração, em sua especificidade, do trabalho analítico.
Fédida enfrenta o desafio técnico de ampliar e fundamentar o sentido metapsicológico do trabalho elaborativo exigido do analista em sua atividade de escuta. Partindo de considerações de ordem psicopatológica que justificam um cuidado de natureza psicoterapêutica – a psicoterapia entendida como complicação [2] da ordem psicanalítica – reconhece o traumático na raiz de estados de incapacidade associativa. O reconhecimento do trauma é relativo ao aparecimento de um lugar psíquico de destruição da linguagem. Distintamente do valor atribuído ao acontecimento traumático, passível de reconstrução a partir dos restos que a fala transferencialmente conserva e que alimentam a atividade da fantasia (Freud), a escuta analítica por vezes se depara com estados de incapacitação rememorativa a denunciar uma ruptura dramática na capacidade associativa da fala. Evocaremos o caso de Roberto, no qual um estado de urgência em dizer denunciava a presença do traumático na transferência como terreno flagelado da linguagem.
Reconstituir um período dessa análise para evidenciar o papel da linguagem na direção do tratamento nos leva, antes de mais nada, a nos afastarmos de um ponto de vista norteado pela história pessoal do analisando, tal como poderia ser retirada do conteúdo de sua fala. Diríamos que o trabalho analítico foi se construindo a partir da fala, dos estados que a fala transferencial assumia na análise. A escuta analítica orientavase diante destes estados polarizados: urgência e poder (de sustentação simbólica da ausência), encontrando neles dois vetores do tratamento.
O primeiro contato com Roberto foi organizado por sua mãe, que ligou para o analista para marcar uma consulta para o filho. Por alguns minutos levou-o a pensar que se tratava de uma criança, o que não era o caso: Roberto era um adulto. Após esse ato da mãe, afinal seu filho havia assim sido entregue aos seus cuidados, o analista pediu a ela que dissesse a Roberto que ligasse para ele para que marcassem uma entrevista. O choque do encontro com o analista, contudo, faria surgir “um olhar de uma atenção singular”, o estabelecimento do ‘desenho interno da fala’: “desenho que a linguagem confia ao olhar, quando o olhar se deixa conduzir por aquilo que vê. Fédida pensava que o visível não diz nada à vista enquanto a linguagem não puder torná-lo... visível”. [3] (Fédida P., 1992, p. 15)
O início do percurso analítico com Roberto foi marcado por um grande esforço, da parte do analista, para manter uma “justa distância”, sem ficar fora da cena analítica. Em outras palavras, o delineamento, que a fala realiza no trânsito da escuta como desenho interno da fala em análise, foi conquistado com grande esforço para que se mantivesse a justa distância, na qual se forma a palavra analítica. Esse esforço poderia ser também definido como o de um cuidado com a linguagem que desse sustentação à cena analítica. Ficar fora da cena analítica é ter o olhar imobilizado, fascinado pelo visível que não diz nada à vista, congelado na atualidade da imagem considerada fora da linguagem, das ligações associativas às palavras.
O clima que se instalou desde o primeiro encontro analítico era intenso, carregado de muita angústia e de um peso tal que levava o analista a ver-se colado à poltrona. Roberto tinha uma excessiva urgência para falar, a qual desafiava a instauração de uma cena sustentada na linguagem. A urgência do analisando podia ser reconhecida pelo analista como fruto de uma necessidade imperiosa de assegurar a sua continuidade psíquica e, por meio desta, alicerçar sua identidade. Fora criada então uma possibilidade de ali estar, diante de um outro investido simbolicamente do poder de reconhecimento de sua singularidade. Falava de suas mais íntimas angústias, e, ao fazê-lo, captava o olhar e a atenção do analista, parecendo dirigi-lo para um ponto: poder ser único e sexuado.
Roberto impunha assim sua presença. Uma tal modalidade de presença, uma exigência de presença, coloca-se como questão técnica indo ao encontro de uma compreensão procurada, tal como a considera Fédida: “Sob a pressão do que vive – e cujo caráter transferencial atuado alucinatoriamente sobre um terceiro ele não percebe – o paciente faz de sua análise o exclusivo recurso de uma compreensão procurada. Sua palavra atribui-se imaginariamente à pessoa do analista como destinatário do que ela crê ter para comunicar-lhe. É nessas condições que o analista vê sua própria atenção ater-se ao conteúdo dramático da palavra que lhe é endereçada na sessão.” (...) “Esta atualização faz desaparecer toda associatividade de que a palavra seria capaz se a vivência fosse mantida naquilo que é, ou seja, uma formação alucinatória de desejo.” [4]
O problema que se coloca para o analista, de ficar fora da cena analítica, neste sentido, seria perder a capacidade de trânsito associativo da escuta , ficar capturado em toda a sua atenção na condição presente da imagem (afundado na poltrona: fechado no interior de uma formação alucinatória de desejo, numa situação tal como a do Huis clos descrito por Sartre). Ficar fora da cena analítica é permanecer suspenso fora da linguagem, suspenso no presente de uma imagem que condensa todos os sentidos numa atualidade plena, incapaz de se entregar à fragmentação exigida pelo trabalho associativo. Cuidar da linguagem é diagnosticar a doença da fala, de uma fala doente de sua avidez (de preenchimento). Como lembrava Fédida, evocando o Corpus hipocrático, trata- se de “uma fala em sofrimento de seu desejo de falar”.
Cuidar da linguagem é manter uma reserva silenciosa de perlaboração/elaboração das impressões vividas no encontro, que permita à fala analítica formar-se como capacidade de reconhecimento. Para tanto, é preciso que o analista encontre um intervalo para ouvir, ao mesmo tempo que sustenta a pressão (para responder de modo compreensivo) que o cola à poltrona.
O estado de angústia em que se encontrava o analisando ao chegar às sessões levava o analista a considerá-lo como o de um momento crítico. No Manuscrito E, Freud apresenta a angústia como não-afeto. Ela é designada como sinal de um momento crítico em que o afeto não se produz devido ao acréscimo da tensão interna. Como escreve Freud:
“A tensão psíquica aumenta e atinge seu ponto culminante, podendo então suscitar um efeito psíquico, mas em tal caso, e por uma razão qualquer, a conexão psíquica que lhe é oferecida permanece insuficiente; o afeto psíquico não pode se produzir, pois certas condições psíquicas encontram-se parcialmente ausentes, o que ocasiona a transformação em angústia da tensão que não está psiquicamente ligada”. [5] (Freud S., 1894, grifos nossos)
O reconhecimento desse momento crítico apresentado por Roberto ao chegar para a análise, coloca- nos diante da questão de como favorecer a transformação dessa tensão psíquica em psíquico.
Para Fédida, o questionamento singular e pessoal do analista participa da insistência porque há resistência. Assim fazendo, desperta a linguagem em sua “reserva de silêncio” para alcançar uma percepção singular do outro. Esse autor pensa a linguagem dentro da análise de uma maneira que nos parece de extremo interesse. Pensa que olhar e escutar não solicitam a linguagem se forem impacientes, e que a atenção do analista não pode ser ansiosa demais, nem erudita. A capacidade de escuta (não no sentido de continência) do terapeuta é colocada à prova no falar do paciente. O desafio trazido pela resistência é o de despojar o terapeuta dos esquemas teóricos pré-formados em sua percepção e de despedaçar as representações trazidas em sua fala.
A potência poética (no sentido da origem grega, de poïese: criação, fabricação, confecção) nasce de uma capacidade de espera que o analista pode constituir em cada análise (em cada sessão), espera necessária para deixar surgir, deixar vir à tona, naquilo em que sua linguagem, solicitada pela insistência da resistência, possa formar como olhar de uma atenção singular.
A análise de Roberto, desde o início, solicitava da intervenção analítica uma abertura de espaço de representação, uma brecha para encontrar esse olhar de uma atenção singular. Uma resposta do analista, numa circunstância que poderia ser tomada como exemplar, viria a constituir-se num momento inaugural do processo analítico.
Numa das primeiras sessões o analisando fala, desesperado, sentado no divã, como num momento crítico, de como sua mãe invade sua vida privada. Diz ao analista que este não sabe como sua mãe é com ele, e que ela vai “pegar no seu pé”; é totalmente impossível para ele contar para a mãe da existência de sua namorada, porque ela é morena. Isso vai deixá-la furiosa. Ela não quer que ele namore alguém de cor e de classe mais baixa. Roberto, muito angustiado, suando muito, olha então para o analista como se implorasse uma ajuda por meio de suas palavras. Diz o analista:
— Então vamos ter de enfrentar juntos sua mãe!
Essa resposta acalma Roberto. Poderíamos considerá-la como um ato psicoterapêutico de acolhimento da angústia do paciente a permitir o prosseguimento na busca de um espaço de representação. Nesse momento, parece ter-se criado um “espaço para a cena analítica”, no sentido da construção de um “espaço de sonho”. Condição a partir da qual o sintoma da urgência na fala, como sinal crítico de evidência do trauma, ganharia o valor psíquico de impressão ligada à repetição traumática e favorecendo o poder de memória da fala.
Freud fala da existência de duas cenas separadas numa análise. [6] Fédida fala do “corpo do analista como lugar de engendramento de espaços cênicos” (Fédida P., 1992, p. 30), no sentido do corpo-teatro-linguagem. A referência ao sonho tem um papel paradigmático na reflexão que este último desenvolve sobre a linguagem dentro da análise: “ao se afastar do paradigma do sonho, a psicanálise transforma-se rapidamente em psicologia dinâmica ou psicologia social, mesmo que qualificada de clínica.” Não bastaria um simples reconhecimento da importância da teoria do sonho para se tornar analista, mas aquilo que é importante é a capacidade da teoria do sonho “de pensar outros fenômenos e engendrar sua metapsicologia”. [7]
Na maior parte das sessões desde o início da análise, há um ano e meio, Roberto quase nunca fica deitado no divã. Deambula de um lado para o outro dentro da sala de análise, falando com paixão, num estilo épico e dramático, parecendo imerso na cena ali destinada ao analista ali presente. Às vezes, pára em frente do analista, em pé, e pergunta alguma coisa, fixando nele seu olhar, afoito na expectativa de receber seu olhar, suas palavras. A pressão imperiosa dessa demanda, na atualidade da situação, leva o analista, afundado em sua poltrona, a perguntar-se: “Mas quem sou eu aqui nesta cena para Roberto? O que represento dentro desse teatro vivo?”
Ao longo das sessões, vai percebendo que lhe cabe agüentar essa situação: metabolizar as emoções intensas, traumáticas, trazidas por Roberto. O analista via reforçada na transferência a função da presença, no sentido de presentificação dos devaneios do analisando a ele dirigidos, sentia que era difícil “escutar” o que falava o analisando, atraído para o que acontecia ali. Uma tal atração para o que acontecia no presente corresponderia a ficar fora da cena analítica, preso à cena atual (imobilizado na escuta), ao estado de uma visualidade material das aparências fora de toda ligação com a linguagem.
A atividade associativa opera uma fragmentação das imagens, que vão se dissolvendo, des-fascinando-se do domínio da vista, para ganhar poder de sustentação simbólica. No caso de Roberto, a solicitação associativa da fala constituía-se numa ameaça insustentável. Provocava na situação transferencial uma angústia de fragmentação dos alicerces identitários, reconhecidos pelo analista. A situação requeria um trabalho de elaboração e sustentação de regimes distintos de presença na cena analítica.
A abstenção, até este momento, de apresentar dados da história pessoal deste paciente, que no entanto não estiveram ausentes do conteúdo de sua fala (ao contrário: há nela uma enorme nostalgia da infância), deve-se ao nosso propósito de evitar uma elaboração psicológica sobre a “pessoa” de Roberto, evitando descrevê-lo com palavras estereotipadas demais. A essa altura, evocaremos alguns elementos da história pessoal, procurando, no momento mesmo da escrita do caso, transmiti-los num nível metapsicológico (que faça funcionar a psique do leitor-analista) na singularidade do processo analítico com esse sujeito e da transferência nesse encontro analítico.
Representar e ser
Talvez como Roberto, que um dia disse estar procurando em livrarias uma gramática compacta da língua portuguesa porque percebia que tinha muita dificuldade em encontrar a palavra certa para descrever as coisas, o cuidado no relato do caso porta a marca dessa exigência, da busca de uma gramática para achar a “palavra certa” que descrevesse o traço único que definiria esse encontro. Busca ilusória, pois sempre há um resto do qual a linguagem não pode dar conta, mas busca extremamente necessária para a construção por escrito das “coisas” que estão dentro da linguagem, sobre algo que dê uma direção aos sentidos possíveis a serem construídos sobre o sujeito do inconsciente de Roberto.
Pensamos que essa busca da “palavra certa” a que o analisando faz alusão reflete a ilusão de que a linguagem permitiria um (re-)encontro com um objeto primário da sensação perceptiva. Roberto explicou longamente, certo dia, ao analista que queria descrever exatamente como era uma certa madeira que havia numa casa antiga de uma rua por onde perambulava sozinho, sonhador, voltando ao tempo da infância. Costumava com freqüência andar sozinho pelo “bairro da infância”, tendo nisso um grande prazer solitário, como se estivesse num reencontro “em sonho” de sua infância. Podemos nos perguntar por que esse recolhimento no imaginário parecia tão essencial para ele.
Será então que nessa análise Roberto não estaria somente precisando entrar em contato com seus desejos, apresentando-os ali diante do analista? Mas sua maneira de fazê-lo é singular. Comparáveis, as sessões de Roberto, ao brincar da criança, a qual, quando brinca, é o herói fantasiado por ela, Roberto é , ali, o herói e não o representa. Ele apresenta, no sentido sobretudo de tornar presente, presentificar, o herói. Por exemplo, quando, freqüentemente, fala, em pé, de suas proezas com as mulheres. Ao descrever essas situações, – é como se estivesse revivendo, com intenso afeto, o que aconteceu – põe em cena seu drama pessoal.
Cabe perguntar se o fato de ficar em pé deambulando e olhando muito para o analista não seria também um jeito para ele de não se isolar num espaço onírico auto-erótico, como se a realidade de outra presença o puxasse para pôr os pés no chão. Podemos então dizer que a presença do analista muda o caráter e o sentido para Roberto de seus devaneios, até então solitários. Graças ao lugar simbólico que parece ocupar, ao olhar para essa “presentificação de seu imaginário”, é como se um espaço de representação estivesse sendo construído, aos poucos, em cada sessão, para o analisando.
Numa série de sessões, nos primeiros meses da análise, conta, nos mínimos detalhes, uma relação sexual com sua namorada. Mais tarde saberemos que era a sua primeira relação sexual. Essa namorada era recente, pois ao começar a análise tinha terminado com outra, com quem ficara por dois anos. Falou desse término de namoro com muita culpa, justificando-se pelo fato de ela não querer ter tido relações sexuais com ele.
Nessa sessão, sua fala endereçada ao analista, sobre seu ato sexual, era impregnada de muita emoção. Permitia ao interlocutor sentir que era de suma importância para Roberto poder estar ali, diante dele, falando desse acontecimento. É preciso insistir aqui sobre o próprio ato de falar para outro, terapeuta, que escuta. Havia nesse momento como que um halo sagrado ao se expor a esse “outro, que é muito mais outro do que qualquer outro, e, no entanto, como se fosse conhecido dele desde sempre”. [8] Roberto e este outro criavam assim uma peculiar relação de intimidade: a intimidade que a situação analítica propicia.
Cumpriria examinar, nesse contexto, uma peculiaridade provocada sobre atenção do analista pelo seu relato: ao escutá-lo, o analista sentia quase poder “ver” a cena sexual diante de si, tal era o sentimento de atualidade que Roberto transmitia com sua fala. Usava palavras precisas que expunham, por exemplo, sua angústia no momento da penetração, seu medo de não conseguir fazê-lo. Era como se descrevesse, de maneira quase obscena, uma batalha, sua batalha para se tornar homem-viril. O analista via a cena se desenrolando, ou melhor, sentia que era muito importante que a visse. Roberto é um apaixonado por teatro, tendo alimentado o sonho de ser ator. Esse relato, ele fez deitado no divã.
Virilidade, castração e função paterna
Nasio concebe a cena da fantasia visual do histérico como cena fictícia. Esta teria sido vivida pela criança na assim dita fase fálica de sua evolução libidinal. “A parte sexual que falta à mãe na imagem de seu corpo nu não é o pênis, mas o ídolo do pênis”, a ficção de um pênis poderoso, carregado de extrema tensão libidinal, um semblante do pênis que a psicanálise conceitua pelo vocábulo phallus.” [9] Na fase fálica o menino não adquiriu a noção da diferença dos sexos, entre sexo feminino e sexo masculino, mas os seres passam a ser divididos em dois: os que têm e os que não têm o falo. É pela ênfase na visão do corpo nu da mãe que a fascinação da linguagem pela vista se faz.
Para mostrar que a legitimação da fantasia de castração é teórica e prática, esse autor vai mais longe. As cenas descritas são um condensado abstrato do cenário fantasiado da castração, o qual vai tomar diferentes variantes imaginárias durante o tratamento. Desse modo, fala na existência de uma “escuta visual” do analista: “a escuta fica tão polarizada sobre o dizer do paciente, que o analista não somente esquece seu Ego, mas olha aquilo que escuta”. Escreve o autor: “Podemos supor que se operou uma singular identificação entre o analista e a materialidade sonora das palavras pronunciadas pelo analisando. Para que o analista olhe o que escuta, foi preciso que se tornasse a voz do enunciado que escuta; e mesmo mais do que a voz, foi preciso que ele fosse a sonoridade física da palavra falada”. [10] Mais abaixo nesse texto, Nasio aproxima esse “ver” do analista com o retorno do recalcado sob o modo da fantasia: “o analista olha o que o paciente deseja” (p. 109).
Com Roberto, isso ocorria de maneira quase alucinatória diante do interlocutor nos momentos em que se deitava no divã, embora, na maior parte das sessões ficasse de pé, andando sem parar; nessa condição, o analista não via o que escutava, mas ficava captado, como se a cena estivesse se desenrolando ali diante dele. Tudo se passaria, então, como se o olhar do outro se tornasse o objeto de seu desejo. Lacan, no Seminário XI, fala da relação escópica. Colocando a idéia de um olhar primordial, fala de uma pulsão escópica:
Na relação escópica, o objeto do qual depende a fantasia a que o sujeito está pendurado é o olhar. [11]
Assim, esses momentos em que Roberto, em sua fantasia, estaria pendurado no olhar do analista, que parece suprir para ele algo de primordial, permitem-lhe um dizer que exprime o poder de simbolização do imaginário, num ato simbólico que dá um lugar ao sujeito por meio de seu falar ali diante e para outro olhar. Retornemos, a partir desse ponto, à questão antes levantada e marcantemente presente nessa análise da fascinação da linguagem pela vista:
“Tornar visível é atribuir sensação, sensorialidade, ao visual desfascinado da vista” [12]
À medida que o analisando fala de teatro ou de cenas de sua lembrança da infância, vai a escuta, aos poucos, encontrando um lugar e uma reserva de silêncio. Opera-se em Roberto, aos poucos, uma mudança no sentido de uma des-fascinação da linguagem à vista. Não somente na direção de um imaginário próprio, mas da transformação de seu apego fascinado pela vista. Talvez a origem de sua paixão pelo teatro e, mais ainda, por seu “teatro interior” seja a marca dessa fascinação pelas “aparências do rosto” (Fédida). É freqüente que Roberto traga sonhos que, como costuma dizer, são como peças épicas, e neles ele é o herói perseguido de diferentes maneiras, mas vencendo a batalha final. Não são sonhos que levem a um trabalho associativo. Parecem ter mais uma função auto-erótica e de restauração narcísica.
Deitar-se no divã, “recolher seu rosto à sombra para deixar seu sonho se contar, depois falar” [13], eis o que Roberto raramente pode fazer na análise. No divã há uma mudança de temporalidade da fala – quando Roberto se deita e esboça um trabalho associativo por alguns minutos – que ocorre em momentos “depressivos”. Nesses momentos, como na sessão em que conta seu primeiro ato sexual, o analista vê e pode reconhecer que haveria aí um potencial de simbolização. Na atividade associativa, ocorre fragmentação das imagens que vão se dissolvendo (des-fascinando), e é preciso suportar a angústia do vazio que a fala pressente quando não sabe o que vai dizer, como num salto no desconhecido. Esses momentos são escassos nas sessões. A vivência da alteridade, durante períodos mais associativos, traz a Roberto um sentimento de profunda solidão e um medo do vazio que o desanimam, e logo ele se levanta para reencarnar, no “aqui e agora” da sua narração, um de seus heróis conhecidos.
Salto no desconhecido, solidão e vazio que Roberto viveu intensa e penosamente num momento de sua história que é preciso relatar agora. Façamos, finalmente, a essa altura, um parêntese para falar um pouco de sua história pessoal.
Roberto é de uma cidade do interior, sendo filho temporão de uma família rica. Fez faculdade em outro país, longe de seu núcleo familiar. Nos dois primeiros anos apresentou um quadro depressivo e de isolamento, tendo recebido por parte de colegas um apelido que o desqualifica e que, preservando sua atualidade, lhe dá raiva até hoje.
Quando começou a análise, tinha acabado de chegar a São Paulo. Aqui obteve ótima reputação em seu trabalho, tendo mudado completamente a imagem que dá aos outros. O relato dessa história convém aqui para mostrar o quanto Roberto é pego e fica paralisado numa espécie de captura imaginária, como mostra a atualidade de sua raiva. Preso num jogo das “aparências do rosto”, segundo a expressão de Fédida.
Gostaríamos de fazer uma ligação entre essa idéia da fascinação pelas aparências do rosto e a idéia do falo como significante da falta. Nesse sentido, talvez pudéssemos dizer que o próprio da “mãe fálica” é ser um rosto que preenche e completa o espaço mental do bebê.
A existência do rosto, e também do sonho, encontra-se no princípio da linguagem em oposição ao que Freud chama de “formações em massa a dois.” [14] Dessa maneira talvez poderíamos dizer que Roberto, no decorrer do processo de análise, muda aos poucos seu foco do rosto da mãe fálica para seu próprio falo, agora mostrado para outro, buscando nesse olhar o reconhecimento de sua potência.
Ao longo desse primeiro ano e meio de análise, Roberto fala bastante de suas conquistas masculinas. Desenvolve em detalhes, nas sessões, suas hipóteses sobre cada nova mulher que encontra, sobre seu desejo sexual e suas estratégias de sedução. Mostra que agora adota uma atitude de desconfiança prudente, pois, como repete sempre ao analista, “você sabe como são as mulheres, né, não dá pra confiar de cara, não é?” Agora já não se deixa mais iludir facilmente, não sendo mais “o romântico como de antes, que dava flores a elas, antes mesmo de as ter comido”. Por meio dessas falas, endereçadas à atenção singular de um outro na escuta, pode viver e falar de sua potência viril, sob um fundo de um saber sobre as mulheres, o qual atribui a outro. Um outro reconhecido num lugar de aliado seu, enquanto possuidor, ao mesmo tempo, do falo e de um suposto saber sobre as mulheres e sua sexualidade. Isto dá sentido de ato simbólico a seu dizer. Também aparece um temor quanto à opinião de sua mãe sobre cada nova potencial namorada sua.
Freud evoca, no texto sobre a sexualidade feminina (Freud, S., 1931), que a menina, ao se afastar da mãe e da tormenta da relação com ela, encontra um “porto seguro” no pai, que passa então a ser o objeto idealizado como bom por ter o pênis. “A menina entra no Édipo como num porto.” [15] (Freud, S., 1931). Essa problemática da mudança de objeto na sexualidade feminina foi abordada em trabalho apresentado na SBPSP, o caso de Ana. [16] Podemos talvez nos interrogar sobre se a concepção de Freud, para as meninas, seria aplicável aos meninos. Nesse caso, o menino deve “dissolver” seu complexo de Édipo, destruí-lo. Por quê? Em termos freudianos, devido à ameaça de castração. Mas, por outro lado, pensando no caso de Roberto, há essa transferência para o analista destes pressupostos: possuir o falo e o saber sobre o desejo feminino. Desta maneira, o analista oferece, pela sua presença, um porto seguro para fugir da tempestade da “loucura materna.” [17]
Numa leitura inspirada em Lacan, Jean-Pierre Winter (1995) considera a castração como aceitação de um limite de si-mesmo: “aceitação não somente do que sou, mas sobretudo do que não sou. E, em primeiro lugar, o que não sou é o Outro sexo.” Assim, prossegue esse autor: “ser castrado é renunciar, por um ato psíquico, à identificação com o outro sexo que não temos, e substituir sua filiação reconstituída ao romance familiar que a ela preferimos.” (p. 18) Como conseqüência disso é preciso também “renunciar ao saber do Outro sexo. Qual saber? Saber sobre o gozo”. [18] (p. 18)
Reflitamos agora sobre esse momento do processo analítico em que o analisando dirige o olhar do analista para sua potência fálica. Apresenta-lhe intensamente seus desejos sexuais de ir possuindo e conquistando “uma a uma” as mulheres que se apresentam a ele. Em seu relato vibra e parece viver um personagem de um Don Juan buscando sua integridade narcísica.
Don Juan encarna o mito da virilidade realizada, embora, como mostra muito bem Winter (p. 22-44), apresente os traços de caráter considerados como femininos, sobretudo entre os séculos XVI e XIX: identificação sob o modo da ironia, incapacidade de amar, fascinação pela morte, separação do órgão sexual e do ser, gosto pela mentira e pela manipulação, etc. Para resumir, Don Juan é “o homem sem nome, que é um homem e uma mulher”. (p. 24) Mas ele diz mais: “sob o nome que não é o meu, posso bem agir ao meu modo e sem culpa, uma vez que ele não me representa” (p. 30)
Na ópera de Mozart, o texto de Da Ponte mostra a estrutura por detrás do mito de Don Juan: cada mulher que Don Juan conquista para “porla in lista” lhe dá o sentimento sempre renovado de uma vitória. Mas, acrescenta Winter, não se trata aqui de um gozo de colecionador, ao contrário, para Don Juan, cada mulher inscrita em sua lista não é “uma a mais”, mas “uma a menos”! (p. 36) Don Juan nunca pode estar satisfeito. Estar satisfeito não seria para ele poder aceitar a idéia de um fim? Trata-se, enfim, de toda uma estratégia de vitória sobre o tempo.
Como Don Juan, Roberto parece só distinguir dois tempos: o passado, que é realidade, e o futuro, que é sonho. A posição adotada por Don Juan é a de ser a causa do desejo das mulheres, embora ele se iluda imaginando que são elas a causa do seu desejo. “Assim, continuando em suas conquistas, Don Juan sabe que elas repetem a ausência da única e inacessível mulher”. (p. 112)
Essa comparação com o mito de Don Juan, para descrever esse momento atual desse processo de análise, conduz-nos a uma reflexão sobre a questão do pai na análise de Roberto. Questão da função paterna que se cria com a entrada em análise. Seguindo um esquema lacaniano, o qual tem a limitação de todo esquema, mas pode nos ajudar a refletir sobre certas questões do nosso caso, poderíamos falar de três pais: o real (que mantém o coito com a mãe), o imaginário (o do mundo psíquico do sujeito) e o simbólico (o pai morto, o pai enquanto ele foi assassinado, o Nome-do-Pai).
Primeiramente tomemos o pai real de Roberto, do qual quase nunca fala, como se não houvesse palavra proveniente dele e para ele. Tudo parece remeter ao universo materno.
Em seguida, o pai imaginário, que é aquele ao qual o sujeito vai se endereçar em sua vida psíquica, aqui presente nas figuras de outros dois membros homens da família do paciente, mas sobretudo no seu gosto pelas histórias de heróis da mitologia grega ou do teatro.
Por último, o pai simbólico, que é “aquele que permite ao sujeito simbolizar, no momento em que a mãe se ausenta e separa da criança. É aquele que permite que, do lugar mesmo de onde a mãe se retira, venha um significante que faz com que o sujeito não caia no vazio”. (Winter, p. 203).
Seguindo nesse esquema, poderíamos dizer que a transferência que se organizou nessa análise se fez no esteio da separação em relação à mãe (que o entregara ao analista). Neste sentido, esse instaura a função paterna como pai simbólico, permitindo um primeiro nível de simbolização da ausência da mãe, introduzindo assim o significante falo, como significante da ausência da mãe. Assim é abordada a demanda atual desse sujeito em dirigir o olhar do analista para seu narcisismo fálico. Pois, no início o narcisismo consiste nisto: “querer se dar um lugar no mundo , pensando o pai fora do mundo. Isso porque o pai é aquele que faz com que não sejamos tudo.” ... “O pai não está fora do mundo, ele está dentro do mundo. Quando ele é mantido fora do mundo, abre-se o espaço da psicose, ou, a mínima, quando o fora do mundo é fantasiado, o espaço da histeria” (Winter, p. 193)
Poderíamos talvez pensar o analista como pai real (enquanto aliado real do analisando), como pai imaginário (investido de um poder e de um suposto saber) e como pai simbólico (enquanto instaurador e guardião do enquadre analítico).
Nesse sentido, poderíamos fazer a hipótese de que Roberto está construindo com a análise sua separação e organização psíquicas, organizando-se no momento atual do processo como uma histeria masculina. O histérico busca figuras que sejam detentoras do falo e que sua mãe possa autorizar. Essa é a fonte do “romance familiar do neurótico” (Lacan) e de vários outros modos fantasiados de funcionar, como a lembrança encobridora, a fantasia consciente, o devaneio, etc. Roberto, desde muito cedo, interessava- se muito pelos heróis da mitologia grega e também pelos heróis do cinema, sobretudo os dos filmes de faroeste. Desse modo, buscava um falo, numa busca em que o devaneio (“rêverie”) aparece como uma poderosa arma contra a fusão, con-fusão, que o espreitava do lado da “loucura materna”, onde a linguagem se aliena na fascinação pela vista.
Fazendo um breve parêntese sobre essa questão do devaneio, a qual foi examinada por Fédida numa conferência proferida em São Paulo, em 1990 [19] (Fédida, P., 1991), lembramos todo o interesse desse autor em aprofundar nossas concepções sobre o auto-erotismo, presente com vigor na primeira tópica freudiana. Citemos Fédida:
“No nascimento da sexualidade humana, no momento em que se constitui o auto-erotismo, é necessário supor, acima de tudo, que a mãe não procure invadir o filho, especialmente por um excesso de excitação, um excesso de solicitação.” E o autor avança: “Conseqüentemente, o momento em que a criança rejeita o seio, o desmame, é um tempo que implica virtualmente as condições de um outro, a possibilidade de um outro como suporte de constituição de formas de si”.
Interpretação, presença e ausência
Voltando ao caso de Roberto, após essas reflexões sobre a função paterna dentro da análise, gostaríamos de avançar uma hipótese: não teria ocorrido, para esse sujeito, uma inflação do pai imaginário, associada ao lugar em que ocupa dentro de seus sonhos e fantasias pessoais, seu “teatro”, inflação essa que tenta compensar uma falta tanto do pai real (o que evoca a importância para sua vista de presença “real” do analista como seu aliado), quanto do pai simbólico, como aquele que, com sua palavra, inscreve marcas ?
Será que, no caso dessa análise, ao menos nesse início de processo, o lugar transferencial que se estabeleceu coloca o interlocutor, à medida que tolera nele ficar, simultaneamente, nesses dois lugares que chamaríamos do “pai real” e do “pai simbólico”’? Talvez só assim, nessa fala viva para o outro, algumas marcas se façam, como potência simbólica, construindo uma subjetividade singular. [20] Para tal, é preciso que haja um espaço onde o dizer seja mais importante do que o dito.
Nossa reflexão sobre esse percurso analítico pára aqui, onde estamos agora, sendo o nosso intuito o de contribuir para a discussão sobre o papel da linguagem dentro da análise, tema que julgamos fundamental na delimitação e na definição do que seria uma técnica analítica. Gostaríamos de sublinhar a implicação desse ponto de vista numa concepção do fazer analítico pertinente de modo único e estrito a cada par analisando-analista, à medida que retira seu valor de referência da interpretação do sonho.
À essa altura de nossas considerações, voltamos a apreciar esta sentença do analista: “Então vamos ter de enfrentar juntos sua mãe!”. Seria suficiente reconhecê-la, como fizemos inicialmente, puramente como ato terapêutico, no sentido de uma “compreensão procurada?” Tratar- se-ia de favorecer um efeito psíquico pela presença, isto é, as condições psíquicas por meio de uma atenção dirigida ao estado crítico de uma tensão que não está psiquicamente ligada [21], acolhimento da angústia para prosseguir na busca de um espaço de representação; momento de criação de um espaço para a cena analítica, no sentido da construção de um “espaço de sonho”. Mas, não caberia, ainda, reconhecer nessa fala, pelo seu caráter profundamente ambíguo, sua capacidade de ressonância ao longo da análise, uma interpretação em sentido próprio? Essa ambigüidade da fala analítica, que corresponde ao seu poder interpretativo (pela faculdade de harmonização de opostos, Freud a designou, precisamente pelo seu caráter ambíguo, como analítica, em seu comentário à Gradiva). Nessa fala do analista conjugam-se: ser e não ser o suposto saber ; ser o que está presente e a condição de sustentação da ausência.
O trabalho da interpretação inscreve- se neste duplo registro: presença- ausência; olhar-escutar. Em meio à tendência a formação de massa a dois, sobre a qual Freud nos alertou (a resistência da fala de Roberto em se deixar ouvir pela sua própria urgência), o trabalho de escuta do analista cunha um intervalo para ouvir. Trata-se de aceder a um regime temporal em que o afeto se possa formar enquanto modalidade qualitativa, psiquicamente ligada da tensão psíquica maciçamente presente na sessão. Este trabalho de ligação é o que se pode considerar como trabalho de construção de um espaço do sonho, antes mencionado. Trabalho de metabolização da tensão excessiva contratransferencialmente testemunhada pelo analista. A impressão do analista, de estar afundado na poltrona, testemunha seu contato emocional com um estado crítico, e é trabalho perlaborativo de dar linguagem. Afundar na poltrona seria o gesto que inscreve a vivência de estar submetido ao domínio de uma atualidade temporal massificada (“formação de massa a dois”), que força o desaparecimento de toda associatividade de que a palavra pode ser capaz. Não seria este o poder da fala: de, pela condição associativa, capacitar-se simbolicamente da continuidade psíquica implicada nos tempos psíquicos da história singular do analisando?
A noção de trauma, tal como a aborda Fédida, a partir de Freud, Ferenczi, Winnicott, pertence a um registro temporal que não poderia ser o da infância, por exemplo, e se é tomado transferencialmente no presente é porque “ele nunca deixou de estar aí, isto é, de ter lugar, em um sentido, de não ter ainda acontecido.” (Fédida, Crise et Contretransfert). É essa evidência e inominável presença do acontecimento que só pode ser apreendida por meio dos restos que a fala entrega à escuta analítica como esperança de reconhecimento.
As condições do trabalho analítico envolvem a fragmentação da imagem e entrega ao regime associativo próprias da análise do sonho: não é ao sonho, como mostrou Ferenczi, que confiamos a possibilidade de elaboração do traumático? “O sonho, sobrevindo como uma crise na paralisia do sono, escreve Fédida retomando Ferenczi, restabelece a condição de uma percepção em imagem fortemente sensorializada das impressões traumáticas da vida psíquica.” [22] Para que isso seja possível, na análise de Roberto, é preciso que o trabalho se realize, antes de mais nada, como trabalho de metabolização (do excesso de tensão) favorável à “transformação dessa tensão psíquica em psíquico.” Dito de outro modo, que o analista participe da formação dos restos diurnos, permitindo, com sua presença, a formação “de impressões de vida tendo linguagem possíveis de se colocar pré-conscientemente como metaforizáveis.”
A análise de Roberto exige que o trabalho de interpretação se faça do acolher e sustentar uma atividade de formação da imagem tal que ela venha-a-ser suporte da realização alucinatória que se liga a pensamentos latentes. Para que a fala se cure de sua captura pela imagem e tome posse da fragmentação em que se recuperam tempos e lugares psíquicos aí condensados, para que o traumático possa aceder a um estado de figura onírica na cena da análise, é preciso, como afirmou Fédida diante de nós, que o analista se abstenha de toda a pressa teórica: “terrorismo interpretativo.” [23]
O sofrimento de Roberto, cujo testemunho mais veemente é o da sua urgência, é reconhecido pelo analista em ligação a uma espécie de onipresença materna, não apenas porque, desde o primeiro contato, é a mãe quem telefona para marcar a consulta, ou porque o tema da invasão materna é colocado dramaticamente pelo analisando, mas, principalmente, pelo reconhecimento do estado de dominação pela imagem que marca a fala do analisando. Esse estado poderia ser identificado como um estado matriarcal da imagem. Fédida usou essa expressão para caracterizar “uma condição autística do mito onde as palavras colocadas sob a dominação das sombras não alcançam a consistência de nominação. (...) Uma tal condição autística do mito – segundo a qual se representaria o inconsciente das representações- coisas – é o inferno matriarcal de uma luz do informe no sentido de uma espécie de visualidade das sombras que Bataille dava a essa palavra.”
O trabalho analítico sustenta-se sobre uma condição transicional entre os registros em que a fala do analista reverbera como fala paterna. O pai simbólico é aquele que não se presentifica numa fala interpretativa, mas lhe dá as condições de inscrição. Diríamos, também, que ele é poder de metáfora. É aquele que se dá como ausência, como margem à formação do sonho como fonte de linguagem da qual a fala retira o seu poder. Talvez no fundo possamos dizer que, para Roberto, assim como para cada um de nós, o fundamental é “ser visto” e “reconhecido” por um outro investido de um valor simbólico para podermos tolerar a solidão do existir. Passo inicial para a constante transformação da “miséria neurótica em infelicidade comum” a cada etapa da vida.
As palavras de um filósofo, Emmanuel Lévinas, que coloca a função paterna em estreita relação com a alteridade e o tempo cabem ainda:
A paternidade é uma relação com um estrangeiro que, embora sendo outro, é Eu. A relação do eu com um si-mesmo que no entanto é estranho a mim.
O tempo não é obra de um sujeito isolado e só, mas ele é a relação mesma do sujeito com um outro. [24]
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