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Resumo
Resenha de "Anorexia e bulimia nervosa, uma visão multiprofissional" - Henriette Abramides Bucaretchi (org.). São Paulo, Casa do Psicólogo, 2003, 183 p.


Autor(es)
Eva Wongtschowski
é psicóloga, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.


Abstract
By Eva Wongtschowski – review of Henriette A. Bucaretchi (org.), "Anorexia e bulimia nervosa: uma visão multiprofissional". The treatment of these alimentary disorders in a public hospital is here discussed. Both are becoming more and more common in our societies, therefore demanding new approaches in theorization and in treatment. Authors address the difficulties involved in a variety of levels, from the history of eating disorders since Antiquity to the problems faced by the families of patients suffering from these disorders. Public polices that could diminish the risks of pandemic eating disorders are also suggested. A case is examined in detail, offering in-depth insights on the mental and emotional organization of the disorder.

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 LEITURA

Anorexia e bulimia nervosas: um desafio clínico

Anorexia and nervous bulimia: a clinical challenge
Eva Wongtschowski


A iniciativa de publicar um livro em que se relata uma experiência de atendimento em uma instituição hospitalar pública já é por si só preciosa. Primeiro, porque, ao expor dificuldades, erros e acertos, colabora com aqueles que estão iniciando sua prática clínica. Segundo, porque implica na disposição de relatar resultados de pesquisa da prática clínica mesmo quando há dúvidas e titubeios. Terceiro, porque se dedica a duas das expressões do mal-estar na cultura de difícil tratamento e resultados desproporcionais ao esforço empregado: a bulimia e a anorexia nervosas.Finalmente porque mostra a possibilidade de manter um trabalho multidisciplinar apesar das diferenças teóricas, que vão sendo explicitadas nos diferentes capítulos.

Uma tese de doutorado inspirou o início dessa atividade clínica que reuniu dez profissionais: psicólogos, psiquiatra, terapeuta ocupacional, nutricionista, alunos estagiários. A atividade clínica foi além da tese que a inspirou; encorpou, cresceu, atraiu interesse de pesquisadores e clínicos, e principalmente pacientes de todos os cantos do país. E se tornou simplesmente necessária. Sua história é contada pela organizadora Henriette Bucaretchi na apresentação. Os trabalhos se iniciaram em 1993 com a criação do Ambulim, e Henriette foi convidada a integrar a equipe em 1993, e permanece na coordenação do “trabalho psicológico” até 2001. A "Apresentação" mostra os caminhos que a experiência foi tomando e é pano de fundo para a leitura dos textos que vêm a seguir; descreve as vicissitudes deste trabalho institucional, que não são poucas, e explicita o contexto em que foi realizado. Cada um dos textos se torna mais interessante e compreensível à luz dessa "Apresentação" porque ela revela a complexidade da tarefa, a busca por um modo de operar que trouxesse mais resultados para o paciente e sua família, da perplexidade e sobressaltos que estes pacientes com transtorno alimentar trouxeram para a equipe. Nunca é demais insistir no fato que este livro tão bem evidencia: o interesse que a atividade clínica na instituição pública suscita entre os profissionais da área de saúde, com o que se explica a permanência de tantos colaboradores voluntários neste trabalho. De um lado fornece um campo para estudo e pesquisa, e por outro, alimenta o campo teórico, propõe novas questões e pede novos desenvolvimentos.

Um livro no qual vários autores escrevem sobre o mesmo tema – no caso, distúrbios alimentares – põe em evidência uma questão bastante interessante: não só as respostas que os autores dão às questões são diferentes, mas as perguntas, elas mesmas, são outras.

A “Apresentação" nos indica o lugar da atividade dos profissionais na instituição, e o texto que vem a seguir, escrito por Henriette Bucaretchi e Cybelle Weinberg, situa os distúrbios alimentares na história. Ele abrange os primeiros relatos conhecidos sobre estes distúrbios contidos no Talmud passando pela Idade Média, século XIII até o ano de 2002, data mais recente das referências bibliográficas correspondentes a este capítulo. O entrelaçamento entre a afecção individual e o momento cultural em que ela se manifesta é um dos recortes propostos pelas autoras: seria uma das expressões femininas em resposta à condição da mulher num dado momento histórico.

A descrição dos sintomas tal como eles aparecem na clínica, as falas tão características dos pacientes e familiares, principalmente das mães, as hipóteses teóricas sobre a constituição subjetiva e sua relação com o aparecimento dos transtornos alimentares, as propostas terapêuticas e suas vicissitudes na prática clínica, a lenta e difícil evolução dos pacientes, a brutal proximidade com a morte são temas aos quais todos os textos se dedicam. A tensão que envolve o atendimento desses pacientes e seus familiares está, sem exceção, explícita em todos os capítulos. A ênfase dada pelos autores à necessidade do atendimento multidisciplinar tem uma dupla face: a gravidade e a complexidade dos quadros com transtornos alimentares exigem a atenção de diferentes profissionais, mas, além disso, a tensão da prática clínica pede a divisão de responsabilidades. Trata-se menos de uma questão ética, tal como proposta por Marle Alvarenga, mas mais de uma solução, ou de um encaminhamento possível a tal desafio. Segundo Marle, “utilizar apenas a intervenção nutricional sem os devidos acompanhamentos psiquiátricos, psicológicos e terapêuticos seria uma imperdoável falha ética” (p. 96). Seria uma falha ética apenas no sentido de que não funciona. Assim como apenas um atendimento médico também não funciona. Ester Schomer, psicanalista e terapeuta familiar, escreve: “O espetáculo de horror que as famílias atravessam e do qual participam como personagens sensibiliza os profissionais para a dor que esses transtornos acarretam” (p. 55). Ismênia Camargo, psicanalista, se inspira na teoria do “Campo Negativo” e, ao se referir às dores da subjetivação, observa: “são essas as dores de nossa pacientes anoréxicas e bulímicas. Estamos na clínica do vazio, dos buracos psíquicos nunca preenchidos, da angústia da não-existência, da ordem do não ser” (p. 115). Patrícia Hochgraf, psiquiatra, constrói um texto sensível, em que descreve as possíveis complicações clínicas dos pacientes anoréxicos. O texto impressiona e dá sentido à necessidade do trabalho em equipe. Mas, ao se referir às hipóteses etiológicas, Patrícia lamentavelmente desconsidera os achados da psicanálise, discutidos em outros capítulos do livro. Os autores concordam entre si com o valor terapêutico que a multidisciplinariedade tem na atividade clínica. Segundo Henriette Bucaretchi, “a equipe integrada oferece um modelo de relacionamento discriminado, entre pessoas diferentes” (p. 41).

Ismênia de Camargo exerceu uma função complexa e delicada na instituição médica: responsabilizou-se pela supervisão e discussão clínica dos casos atendidos por profissionais com diferentes formações teóricas: cognitivistas, psicodramatistas, terapeutas corporais, psicanalistas. Vale a pena transcrever suas ponderações: “seria possível haver construção de conhecimento sobre essas doenças, a partir dos dados recolhidos nos relatos das diversas sessões?... os relatos são resultantes da interpretação de vários narradores, segundo óticas constituídas pela subjetividade de cada um...” (p. 112). Subjetividade entendida aqui como resultado da formação profissional e assim das diferentes visões de como se constitui o psiquismo, ou mesmo do que é o psiquismo. Acrescenta: “nosso objetivo (...) é compreender o campo comum das configurações conflitivas das pacientes. Nesse campo os fenômenos adquirem significados em virtude das relações que guardam entre si.... Os relatos permitem observar certas estruturas que, por manterem alguma regularidade, nos levam a pensar em alguns denominadores comuns às histórias das vidas das pacientes” (p. 112). De fato os textos dos psicólogos conversam e se complementam de modo interessante. A descrição dos sintomas ao longo dos capítulos, por sua repetição, torna a leitura cansativa. Mas cada autor privilegia um aspecto desta descrição justificado pela escolha do método terapêutico escolhido. Assim Cybelle Weinberg, num texto inquietante, nos convida a pensar sobre uma questão que é cara à psicanálise: “por que elas (as pacientes anoréxicas) pioram quando melhoram?” (p. 125). Através de um relato de caso, enfatiza o paradoxo que o tratamento analítico de pacientes anoréxicos propõe: “o objetivo (...) é (...) refletir sobre o sentido inconsciente da anorexia nervosa, uma vez que a prática nos mostra que essas pacientes, abandonando a contagem obsessiva de calorias, queixam- se de um vazio profundo e são tomadas, segundo elas, por um ‘desejo de morte’ (p. 125) (...) ganhar peso seria perder a identidade adquirida a duras penas” (p. 132). E ela se pergunta então o que fazer. Cybelle evidentemente já faz, e o texto é a prova disso. Mas a perplexidade e a urgência que esta clínica provoca não só propõe perguntas como a sua, como pede respostas e assim ela chama a equipe multidisciplinar e sugere um atendimento com a técnica cognitiva, embora a solução não a encante, pois a longo prazo é pouco efetiva. Vivan Behar, psicóloga cognitivista, num texto bem escrito, concorda com honestidade que de fato esta técnica terapêutica é eficiente para intervenções em situação de crise, mas nada está comprovado quanto a sua eficiência na manutenção do comportamento, no caso em que os pacientes passem a se alimentar regularmente, na quantidade e qualidade nutricionais suficientes para preservarem sua saúde.Faz observações curiosas para uma cognitivista: ao se referir à noção de corpo diz: “o corpo é sentido subjetivamente (...) como cada pessoa sente seu próprio corpo não é algo observável (...) o distúrbio da imagem corporal só pode ser inferido pelo discurso da paciente ou por alguns comportamentos” (p. 157). Propõe, como Cybelle, que o tratamento deve ser multidisciplinar: “apenas o trabalho verbal não produz necessariamente o efeito desejado” (p. 157).

São atendimentos grupais indicados para pacientes com distúrbios alimentares? Filomena Russo se propõe o desafio de fazer uma experiência grupal na instituição, embora relate no seu texto a opinião de autores contrários à sua prática. Depois de um breve estudo sobre a evolução das terapias grupais, analisa as condições necessárias para que seu uso possa ter um efeito psicoterápico, mas não fica clara sua posição quanto ao uso da técnica no caso de pacientes com transtornos alimentares. Mariângela Bicudo, psicóloga, acredita que a técnica psicodramática apresenta algumas vantagens sobre a terapia individual, mas é cuidadosa quando a indica apenas para pacientes bulímicos. Ao mesmo tempo refere-se aos riscos que seu uso pode implicar quando mal utilizada e aponta as condições necessárias do funcionamento grupal para obtenção de um resultado terapêutico. Ismênia Camargo defende seu uso porque favorece a mobilização de identificações múltiplas. Adriana Esturaro, terapeuta ocupacional, usa a atividade dirigida como recurso terapêutico no atendimento grupal. Sua preocupação central é com as vicissitudes da imagem corporal. Curiosamente, usa como critério de avaliação para seu trabalho não o resultado (que envolve a questão da alimentação), mas a escolha do trabalho pelos pacientes. Também é um critério.

No último capítulo, escrito a seis mãos, os autores ponderam sobre a multiplicação e o modo de potencializar os conhecimentos adquiridos durante oito anos de trabalho conjunto. Adquiriram autoridade para oferecer recomendações de caráter urgente e preventivo, dado o aumento assustador das patologias alimentares nas estatísticas brasileiras. Este capítulo é uma síntese do conjunto dos textos: os transtornos alimentares não são apenas um problema médico, ou psíquico, ou social, ou nutricional. Sua complexidade não é nenhum momento subestimada. Ismênia Camargo, ao relembrar que o Grupo de Trabalho do Ambulim, constituído tal como descrito no início do livro, foi desfeito, observa que as questões institucionais também merecem análise. Aguardemos.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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