voltar à primeira páginaResumo Resenha de "Obsessiva neurose" - Manoel Tosta Berlinck (org.). São Paulo, Escuta, 2005, 448 p. Autor(es) Renata Udler Cromberg é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo. Notas 1. Mezan, Renato, "Figura e fundo: notas sobre o campo psicanalítico no Brasil", in Interfaces da psicanálise, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. 2. Mezan, Renato, Freud, pensador da cultura, São Paulo, Brasiliense, 1985, a ser relançado pela Companhia das Letras em 2006. 3. Leclaire, Serge, Escritos clínicos, Rio de Janeiro, Zahar, 2003. Abstract By Renata Udler Cromberg – review of Manuel Tosta Berlinck (org.), "Obsessiva Neurose."
The author situates the pioneering work of Mr. Berlinck as a publisher specializing in Psychoanalysis in the broader context of Brazilian analytic landscape since the mid-eighties. From this, she proceeds to comment on the papers reunited in this collection, which, she feels, are a good sample – even if concentrated on a specific subject, obsessive neurosis – of what has been done in on field in the last two decades. It presents some classics on this disease (Abraham, Jones, Green, among others) and eight essays by leading Brazilian analysts, which tackle different aspects of the subject and, in their connection, offer a good metapsychologic and clinical portrait of this still puzzling pathology. voltar à primeira página
| | LEITURANeurose que insiste... psicanálise que resisteA neurosis that insists – and a Psychoanalysis that resists
Renata Udler Cromberg
Situando a obra
Escrever uma resenha neste espaço, em comemoração aos 20 anos do Departamento de Psicanálise e no relançamento do número 1 da revista, traz inevitavelmente o desejo de refletir sobre o que mudou de 1988 a 2005 no panorama editorial do país.
Segundo Mezan [1], o ano de 1988 marca o início do boom de publicações psicanalíticas e, acompanhando o que se passou, podemos dizer que a seção de resenhas de Percurso foi crescendo em importância e quantidade de resenhas, junto com a escrita psicanalítica brasileira e o mercado editorial que a publica. Os psicanalistas não são muitos em todo o Brasil. Além disso, segundo pesquisa recente do Conselho Federal de Psicologia, apenas sete por cento dos psicólogos tem referência em Freud e a maioria não tem referência em nenhum autor. Um livro como Freud, pensador da cultura, de Renato Mezan [2] – que completa também este ano vinte anos de seu lançamento e que fez um estrondoso sucesso pelo seu ineditismo e originalidade, tornando-se um livro de referência para todo pesquisador e professor de psicanálise e de outros campos –, vendeu em torno de quinze mil livros. Trago estes dados numéricos para dizer que não é no plano quantitativo que devemos medir a mudança no quadro das publicações nos últimos vinte anos e as suas conseqüências, já que nenhum livro de psicanálise tem tiragem e vendagem de best-seller, ainda que o significativo aumento de títulos lançados tenha um impacto grande na contínua formação da psicanálise brasileira.
O que foi mudando no panorama editorial de psicanálise se deve a vários fatores. Só em 1974, completa-se a tradução e publicação das obras completas de Freud em português, pela Imago. A partir de 1980, retornam vários psicanalistas brasileiros formados na Inglaterra e na França e começam a escrever; “discretamente a princípio, depois em volume maior, começam a surgir trabalhos originais que vêm alimentar a demanda por informação dos que então se aproximavam da psicanálise” (p.237). Fabio Hermann (Andaimes do real, 1979), Jurandir Freire Costa (Violência e psicanálise, 1983), Renato Mezan (A trama dos conceitos, 1982, e Freud, pensador da cultura, 1985), Garcia Rosa (Freud e o inconsciente, 1983), Miriam Chnaiderman (O hiato convexo, 1989), Joel Birman (Freud e a experiência psicanalítica, 1989), além de Sérvulo Figueira, Chaim Samuel Katz, Oscar Cesarotto, Marcio Peter Souza Leite, Alduízio Moreira e Alfredo Jerusalinsky são esses autores pioneiros. Em 1987, surge a editora Escuta, pioneira na edição exclusiva de textos psicanalíticos, que começa a publicar a brilhante geração francesa que surge por volta de 1968, influenciada por Lacan no “retorno a Freud”, porém diferenciada dele, cujas “contribuições irão marcar de modo decisivo a evolução da psicanálise brasileira” (p. 229). Pierre Fédida, André Green, Piera Aulaigner, Conrad Stein, Le Guen, além de Leclaire, Laplanche, e Joyce MacDougall, são publicados por esta e outras editoras. Muitos destes analistas fazem visitas regulares ao Brasil, marcando e influenciando a formação e o pensamento psicanalítico local. A Escuta edita também trabalhos de nomes destacados da psicanálise argentina que, desde a década de 60 até “a brutal interrupção imposta pelo golpe de 1976” (p. 236), publicam seu pensamento original. No final dos anos noventa, são publicados os importantes livros resultantes dos colóquios e jornadas de psicanálise realizadas pelo Departamento de Psicanálise do Sedes, também pela Editora Escuta. A editora Imago especializa-se na publicação do pensamento kleiniano. Em 1999, publica a importante trilogia organizada por Giovana Bartucci, membro do nosso Departamento, que reúne o pensamento transdisciplinar em psicanálise, cinema, literatura e estéticas da subjetivação; a Zahar publica o pensamento lacaniano e Artes Médicas e Martins Fontes o pensamento freudiano e também lacaniano, sem contar outras editoras como a Relume- Dumará, que editaram importantes revistas, coletâneas e traduções inéditas do final dos anos oitenta e década de noventa.
Também merece destaque a implantação, a partir da década de oitenta, dos programas de pós-graduação em psicanálise nas universidades brasileiras, que “vem se ampliando de modo impressionante, com a abertura de cursos de especialização e de pós-graduação em diversos pontos do país, assim como em várias instituições das cidades maiores” (p. 239) e inserindo os psicanalistas numa rede de pesquisa e de produção científica que já existia antes deles e da qual vêm se beneficiando amplamente. As teses e dissertações vão encontrando oportunidades no espaço editorial e se desdobrando em artigos promissores, publicados nas várias revistas de psicanálise que começam a surgir. Duas editoras destacam-se na publicação deste material: a Editora Escuta e a Casa do Psicólogo, editora inicialmente de testes e livros de psicologia e educação, e que passa a publicar livros psicanalíticos nos anos 90. É dela a edição de livros das importantes jornadas organizadas pelo curso de especialização em psicossomática do Sedes (Psicossoma I,II e III), além de outras organizadas pela Sociedade de Psicanálise, bem como de importantes livros lançados por membros do nosso Departamento, como os de Renato Mezan, Luis Carlos Menezes, Mara Selaibe, Décio Gurfinkel, Maria Cristina Ocariz, Eliana Borges Pereira Leite, Sérgio Telles, Leda Barone, Carla Segre Faiman, Bernardo Tanis e Paulina Cymrot.
Nesta editora, surge, no ano 2000, a coleção Clínica Psicanalítica, concebida e dirigida por Flávio Carvalho Ferraz, membro do nosso Departamento de Psicanálise do Sedes e, então, já um autor conhecido pela publicação de A eternidade da maçã e de Andarilhos da imaginação. Esta passa a ser rapidamente um acontecimento editorial. Primeiramente, pela sua proposta de apresentar temas psicopatológicos e específicos sob a ótica freudiana e pós-freudiana. A este matiz didático, acrescenta-se o convite a apresentar o pensamento clínico e teórico original de cada autor. As teses universitárias que se encaixam neste perfil são também publicadas. São 31 livros publicados e mais 44 por publicar. É com satisfação que vemos mais da metade dos autores serem oriundos do nosso Departamento – muitos deles autores de artigos publicados em Percurso, ao longo destes anos – o que mostra a valorização e a capacitação crescente para a escrita, que o curso de formação e o trabalho no Departamento de Psicanálise, sobretudo em Percurso, ajudaram a consolidar. Em segundo lugar, porque o sucesso de vendas que as rápidas reedições de livros comprovam (o excelente livro Psicossomática do psicanalista Rubens M. Volich, segundo volume da coleção, já está na quarta edição), aponta para um público crescente de livros acessíveis, embora não simples, e de custo barato. Em terceiro lugar, uma conseqüência não menos significativa, é a rede de referência mútua entre os autores que a publicação numa mesma coleção propicia. A coleção permite um raro sentimento de comunidade por parte de autores que nem sequer se conhecem todos, mas que se sentem pertencentes a um mesmo valioso projeto, que permite a conexão com o prazer da escrita e da leitura, dirigido de maneira ética e apaixonada pelo editor. As resenhas mútuas de livros em revistas de psicanálise, da qual Percurso foi o principal veículo, só reforçaram esta sensação de comunidade virtual. O que mais se poderia querer, para a continuidade da formação de uma tradição psicanalítica brasileira, do que um pensamento que afeta o outro e é por ele afetado?
Mas será que o autor brasileiro de psicanálise, apesar de estar sendo muito publicado, é lido? Será que ele é indicado nas universidades e cursos de psicanálise ou haveria uma acomodação, muitas vezes subserviente, aos autores estrangeiros, e, como tal, obstáculo para a continuidade da formação de uma tradição literária psicanalítica brasileira? A questão se coloca do seguinte modo: como integrar uma tradição psicanalítica de autores estrangeiros clássicos, que laboriosamente foram construindo redes de pensamento psicanalítico ao longo do séc. XX, com a criativa literatura nacional que, apesar de tomar os clássicos por referência, não fica apenas neles, relançando- os em indagações que atravessam a especificidade da clínica realizada no Brasil, bem como o entorno político institucional?
Obsessiva neurose
Obsessiva neurose é um exemplo de como pode se dar uma conciliação. Projeto acalentado por sete anos, seu editor Manoel Tosta Berlinck pediu indicações de textos para várias pessoas, uma abertura que só contribuiu para a obra de fôlego que resultou, mais que uma coletânea, a apresentação de uma perspectiva metapsicológica dessa manifestação patológica, como nos esclarece o editor em seu curto e precioso prefácio. Os textos de Freud sobre o tema são o pressuposto e a referência inaugural de todos os artigos, que foram escritos entre 1918 e 2004, seja nos seis ensaios de autores clássicos (Karl Abraham, Ernest Jones, Maurice Bouvet e André Green), seja nos oito ensaios de autores nacionais (Vera Stella Telles, Décio Gurfinkel, Flávio Carvalho Ferraz, Sérgio de Gouveia Franco, Urânia Tourinho Peres, María Lucrecia Rovaletti, Maria Anita Carneiro Ribeiro, Vera Lopes Besset e Susane Vasconcelos Zanotti). O resultado é a constituição de profunda metapsicologia da clínica.
A face taciturna da pintura de Dürer, em close na capa do livro, é impactante. Traz em primeiro plano o olhar revelador dos tormentos da alma, as minúcias dos ritornelos da barba e do cabelo que o pintor laboriosamente construiu e convida-nos a entrar num universo complexo e enigmático. A inversão do título é certeira: é a neurose que insiste. E após a leitura, percebemos o seu efeito político, pois é a psicanálise que resiste à extensa operação de apagamento de si que a psiquiatrização neurobiológica tenta fazer, por meio de sua nova nomenclatura e seus procedimentos generalizantes. Para novos usos das medicações anti-depressivas, foi criada a doença mental da moda, TOC, transtornos obsessivos compulsivos, substituta da Neurose Obsessiva. É necessário bem mais do que uma mágica pílula eliminadora de pensamentos intrusivos para dar conta de um sofrimento que aponta para o mal-estar constituinte da nossa civilização. É a isso que parece visar Berlinck, em seu prefácio, ao escolher realçar apenas um aspecto, que funciona como um enquadre para os demais textos do livro: a diferença feita por Freud entre obsessividade e neurose obsessiva. A afirmação de Freud, presente no manuscrito descoberto no final do séc XX, Visão de conjunto das neuroses de transferência, escrito entre 1914 e 1915, de que o que hoje é denominado “neurose foi, no passado, um conjunto de maravilhosas invenções do humano para protegê-lo de catástrofes ambientais” (p.8), um conjunto de fases do estado de humanidade, aponta para essa diferença. Assim, enquanto a obsessividade é voltada para o entendimento e controle do mundo hostil por meio do pensamento, da pesquisa, da linguagem e da criatividade técnica, é, portanto, manifestação civilizadora, a neurose obsessiva, na repetição empobrecida desses traços, é uma tragédia. Há, porém, já nessa grande invenção, a continuada perda de contato com a regularidade e com o objeto da satisfação sexual, bem como um desvio da energia vital denominada libido para outros fins, distantes do prazer. Na neurose, tais conquistas perdem a plasticidade e passam a ser “defesas repetitivas e padronizadas que servem não mais aos desígnios da sexualidade, mas de evitação do erotismo, mais ainda, de regressão e cultivo, de forma recalcada, de um erotismo anal-sádico, típico de nossa civilização" (p.10). Mas se o obsessivo é alguém que sofre de seus pensamentos, como apontam Besset e Zanotti, ao menos o pensamento está presente, tematizado, mesmo enquanto intrusão que precisa ser eliminada como nos TOC, trazendo uma certa esperança de que ele ainda sirva para alguma coisa, numa sociedade que parecia estar se encaminhando para a obsolescência, imersa que está na pura impulsão do ato de consumir tudo e a todos, para os mais absurdos e inúteis fins.
À maneira de um aperitivo, tracemos um dos inúmeros fios de conexão que se estabelecem entre os ensaios.
O artigo de Jones, “Traços do caráter anal-erótico” (1918), e os de Abraham, “Contribuições a uma teoria do caráter anal” (1921) e A valoração narcísica dos processos excretórios nos sonhos e na neurose (1920), constituem uma verdadeira fenomenologia psicanalítica do quadro clínico da neurose obsessiva. É interessante perceber como, por volta dos anos vinte, existiu uma reflexão clínica rica e avançada por parte dos discípulos de Freud, como mostram os numerosos artigos sobre neurose obsessiva de Abraham, Jones, Ferenczi e Sadger, que não apenas se referenciam em Freud, mas dialogam entre si, através de referências e citações mútuas. A fenomenologia psicanalítica que esses textos constituem dá ênfase à vida pulsional, localizando o erotismo anal e o sadismo como constituintes de um modo de relação com o mundo, que determina a constituição do caráter anal com seus traços característicos, seja nos aspectos positivos sublimatórios, seja nas formações reativas defensivas. Há nesses textos um verdadeiro esmiuçamento dos estados de alma, traços de caráter, modos de estar no mundo, a partir da maneira como o indivíduo viveu sua educação para o controle dos esfíncteres que regulam as excreções, bem como o seu interesse infantil pela defecação e pelas fezes e como tudo isso contribuiu para a constituição narcísica de si. A ênfase no prazer de reter ou em soltar, nas mucosas anais ou no produto excretório determina diferentes traços de caráter. Jones elenca também uma longa lista de símbolos coprofílicos inconscientes.
Continuando as reflexões de Abraham, mas dialogando com Glover e Lacan, temos o longo ensaio também clássico de Maurice Bouvet, “O ego na neurose obsessiva. Relação de objeto e mecanismo de defesa” (1952). Aí, o ego obsessivo será tematizado menos na sua constituição e mais nas relações do sujeito com o mundo exterior, as relações de objeto que o ego obsessivo estabelece com seu meio.
Um percurso cronológico e detalhado dos textos que tratam da neurose obsessiva em Freud e na leitura lacaniana, através de seus escritos e seminários, pode ser lido em Notas sobre a neurose obsessiva em Freud e Lacan, de Urânia Tourinho Peres, texto claro, didático e consistente.
A tematização da religião particular do neurótico através de seus atos obsessivos que são constituídos por uma verdadeira enfermidade de tabus está presente nos ensaios A enfermidade dos tabus: do querer gozar ao querer dizer, de Besset e Zanotti, “A ‘religião particular’ do neurótico: notas comparativas sobre neurose obsessiva e perversão”, de Flávio Carvalho Ferraz, “Pensando a neurose obsessiva a partir de ‘Atos obsessivos e práticas religiosas’”, de Freud, de Sérgio de Gouvêa Franco e a Metapsicologia da Neurose Obsessiva, de André Green.
O denso ensaio da argentina Maria Lucrecia Rovaletti, “A objetivação do tempo no mundo obsessivo” (2003) trata da temporalidade programática e aprisionada do obsessivo, onde ele suspende o tempo, imobiliza-se, dá a si a aparência da morte, para proteger-se dela.
O estudo comparativo entre a neurose obsessiva e outras patologias é dos mais interessantes no livro. Ele aparece, em relação à histeria, no ensaio clássico de André Green, “Neurose obsessiva e histeria: suas relações em Freud e a partir de Freud – estudo clínico, crítico e estrutural” (1964) e no ensaio “A mulher obsessiva entre a tragédia e o humor”, de Maria Anita Carneiro Ribeiro. Mas é sobretudo em dois ensaios que aparecem as contribuições mais instigantes do ponto de vista clínico-teórico, pois trabalham o eixo pensamento, ato e acting out, com várias referências em comum entre si, embora com desdobramentos diferentes. No ensaio já citado de Ferraz, há a comparação diferencial entre neurose obsessiva e perversão. Ele tira ricos desdobramentos da equação que liga a neurose obsessiva à religião e a perversão à gnose. A partir daí, vai encaminhando sua reflexão para a distinção entre o estatuto da ação obsessiva, um ato psíquico, e do ato perverso, um acting out, que pressupõe “insuficiência do processo de pensamento” (p.141). No longo e imprescindível ensaio de Décio Gurfinkel, “Ódio e inação: o negativo na neurose obsessiva”, a comparação entre a neurose obsessiva enquanto patologia da inação, onde haveria uma hipertrofia da reflexão em detrimento da ação, e as neuroses impulsivas – enquanto patologias da impulsão – traz uma clínica do acting out, a partir do modelo da adicção “compreendida como um campo psicopatológico marcado pela tendência a ação” (p. 268), onde haveria uma hipertrofia da ação em detrimento da reflexão. Se na neurose obsessiva há uma intensa e hiperinvestida atividade psíquica, que perverte a função do pensamento ao perder o elo de sua articulação com a ação desejada e planejada, na neurose impulsiva há a atuação do impulso, o desejo morrendo “no nascedouro mesmo de um funcionamento psíquico que poderia fazer dele trabalho de simbolização”, tornando-se “um vaguear sem rumo e sem leme” (p.270). Há, neste ensaio, toda uma retomada do trabalho do pensamento psicanaliticamente concebido e sua função simbolizante, de uma maneira original e rica para compreender e tornar possível a clínica dessas patologias.
O já clássico ensaio de Vera Stella Telles, “Mecanismos de defesa na neurose obsessiva: formação reativa, anulação e isolamento” (1979), fecha o livro. Tais mecanismos de defesa servem para manter sob controle o terreno afetivo- emocional, zona de horror típica, pois o obsessivo teme tudo que o desorganiza. Daí o horror à mudança, à surpresa, ao desconhecido serem constantes nele. Mas é trazendo, sobretudo, o paciente do célebre texto de Leclaire (Jerome ou a morte na vida do obsessivo), que Telles alerta para que o “drama do obsessivo em todo o seu pungente e doloroso significado é absolutamente incaptável e definitivamente perdido quando se descreve de fora, também detrás de uma muralha, um obsessivo, em vez de Jerome” (p. 431). É a consideração da singularidade de cada vida que pode romper as muralhas que transformam a vida em morte e delicadamente permitir ao psicanalista que retire as bandagens da múmia, reanimando-a para a vida e a capacidade de amar.
A conexão com Serge Leclaire o inclui no livro, ele que tematizou a neurose obsessiva em estudos magistrais. Dá o gancho para terminar esta resenha com um comentário sobre a publicação póstuma de uma reunião de ensaios seus em Escritos clínicos [3]. Ora, toda a primeira parte do livro (“Esboço de uma teoria psicanalítica sobre a diferença entre os sexos”) se compõe de textos inéditos retirados de conferências proferidas por ele no Rio de Janeiro, em 1978. Não é o primeiro autor psicanalista estrangeiro a fazer surgir belas criações em território nacional. Ele aborda a diferença sexual de maneira original, radicalmente respeitosa em relação a impossibilidade de falar por uma mulher ou no lugar desta, o que apenas renovaria a dominância do discurso do homem. Lendo-o, pensamos que é preciso uma desconstrução e uma saída da neurose obsessiva para poder aceder à radicalidade da diferença e à construção do amor possível entre os sexos. Apenas seis anos após Lacan – seu antecessor no estudo das armadilhas da neurose obsessiva e do gozo do supereu – ter tematizado o gozo feminino em seu seminário Mais, ainda, Leclaire desconcerta: não há homem-estátua, não há modelo de homem, não há modelo de pai. Há que desconstruir o ídolo-falo no interior do homem. Mas não ter status garantido, não ter segurança garantida produz uma angústia insuportável. Então é mais fácil fazer uma imagem segura de mãe, fabricar a mulher-mãe. O homem está sempre por ser inventado.E a mulher? "Uma mulher não é o que ela tem a fazer, ou o que lhe resta. O que ela teria a produzir realmente é diferença, é sexo, e não apenas filhos; algo de diferente daquilo ao qual ela é culturalmente submetida. Ela tem a produzir o outro e não o mesmo, como faz o homem com a cumplicidade das mães. Produzir o outro, o diferente, é tornar possível que haja, um dia, sexo entre os seres falantes e não apenas sexo natural” (p. 33).
O narcisismo da mulher está por vir, ainda não existe, já que ele é um problema de homem, como a castração. A mulher narcísica é uma projeção, uma forma de resposta às fantasias do homem. “Insistam, sobretudo, no trabalho que deve ser feito quanto ao homem, que se refere precisamente à sua angústia narcísica. A resistência mais forte à mudança de regime, no sentido de regime político, consiste no medo do homem de reconhecer que não tem modelo e que deve renunciar à sua organização narcísica dominante, ou seja, que ele supere sua angústia de castração. Esse é o trabalho mais importante, a chave da situação... Nada impede que uma mulher faça ao mesmo tempo um outro trabalho e aproveite essa situação – por pouco que o homem renuncie a seu poder – para ‘dizer-se e fazer-se’ como mulher, isto é, diferente” (p. 33-4).
De manifestações literárias esporádicas a um conjunto de livros que começam a fazer relação entre si, criando referências múltiplas, da troca com o estrangeiro, troca que já é de mão dupla, temos o processo da formação de uma literatura psicanalítica brasileira. Para que esta não fique na indiferença de uma receptividade morna e impressionista, o que pode fazer diferença é a problematização do pensamento e escrita entre os autores, numa função de abertura em espiral, interminável, para que sempre se possa pensar diferente.
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