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Resumo
Resenha de "Lacan, a formação do conceito de sujeito" (1932-1949) - Bertrand Ogilvie Rio de Janeiro, Zahar, 136 p. Este texto foi publicado no jornal Folha de S. Paulo, em maio de 1988, e na revista Percurso, n.1.


Autor(es)
Renata Udler Cromberg
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanalise do Instituto Sedes Sapientiae, doutora pelo Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Professora dos cursos de especialização de Psicopatologia e Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo e Teoria Psicanalítica da Pontifíca Universidade Católica de São Paulo. Autora dos livros Cena Incestuosa e Paranóia, da coleção Clínica Psicanlítica da Editora Casa do Psicólogo.


Abstract
By Renata Udler Cromberg – review of Bertrand Ogilvie, Lacan: a formação do conceito de sujeito. The book examines Lacan’s formative years, from his doctoral thesis though the paper on the mirror phase to his work on aggression. Philosophy and psychiatry are the main sources of this highly original elaboration, which would change the landscape of Psychoanalysis in the years to come.

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 LEITURA

Lacan rumo à psicanálise

Lacan’s way to Psychoanalysis (1988)
Renata Udler Cromberg


Obra de Jacques Lacan é daquelas que não podem ser ignoradas. Seus efeitos estão longe de poder ser reduzidos meramente aos consultórios psicanalíticos e à entourage institucional que os cerca. Através da sua penetração cultural, criou-se uma poeira mitológica que, se é o desdobramento inevitável de um pensamento contundente, faz obscurecer, pelos efeitos que produz, a própria obra do autor. Será que há algo no movimento que percorre o pensamento de Lacan que produza efeitos tão dogmáticos como os que produziu?

Neste contexto, a tradução do livro de Bertrand Olgivie, Lacan, a formação do conceito de sujeito (1939-1949) é muito bem-vinda. Como o próprio título aponta, este filósofo francês nascido em 1952 faz um recorte do início da obra de Lacan. A leitura da tese de medicina (“Da psicose paranóica em suas relações com a personalidade”) e dos trabalhos que dela dependem se impôs como decisiva tanto por esclarecer o contexto teórico no qual Lacan efetuava certas escolhas, devolvendo-lhe assim sua significação histórica, como porque já continham o essencial da problemática por vir, podendo, portanto, ser considerados tanto uma via de acesso à obra como uma chave de leitura.

Arqueologia

Olgivie faz uma arqueo-logia das questões que animaram Lacan. Seu percurso é, ao mesmo tempo, histórico e conceitual. Se Lacan vai inicialmente se dedicar a responder questões colocadas antes dele pela psiquiatria, é a partir deste e da filosofia que vai formulando suas próprias questões. Sua relação inicial com a psicanálise é apenas lateral, o que marcará nos seus trabalhos posteriores uma problemática e um estilo de questões bastante peculiares.

Assim, a exposição segue uma dupla direção: por um lado, tentar restituir a história do percurso lacaniano; e, por outro, apenas em filigrana, colocar alguns marcos referentes à significação para a filosofia da teoria lacaniana. Mas que não se assustem os que olham com desconfiança a conjunção da psicanálise com a filosofia, pois não se trata, no caso do livro, de discussões empoleiradas sobre a psicanálise em geral ou a obra de Lacan em particular. Olgivie repudia a idéia de um privilégio ordenador da filosofia sobre a psicanálise. Neste sentido, seu estilo claro ajuda a impedir mal-entendidos. Os filósofos são convocados no seu texto de duas maneiras: para historiar as questões de Lacan, colocá-las no contexto teórico em que este efetuava suas escolhas ou, na medida em que é Lacan mesmo quem os convoca para formular suas próprias questões, buscar o vocabulário que precisa, livre para fazer dele um uso muito pessoal.

Apesar de ser muito mais interessante deixar a psicanálise colocar suas próprias questões, Olgivie procura saber o que ela faz quando encontra problemas de uma semelhança espantosa com os dos filósofos. É o caso da questão do sujeito, que Lacan repõe com meios próprios na busca de identificar a causalidade psíquica em particular.

Assim Foucault e Canguilhem auxiliam o autor a situar o contexto onde emerge a palavra delirante. Incompreendida pelo olhar organicista, ela será ouvida atentamente por Lacan, que buscará o que ainda o sujeito falante, ativo, reivindica. Inventando novos conceitos rumo a uma “objetividade do subjetivo”, é num terreno novo que a psicose vai aparecer, necessitando ser compreendida no contexto social que lhe dá significação e pelo conflito vital disposto pela família em sua tensão original.

Mas para abrir um novo continente e aplicar-lhe um modo de conceitualização diferente, é preciso uma “revolução teórica na antropologia”. Esta será remanejada e mobilizada para apoiar a teorização da estrutura psíquica do indivíduo, e constitui o horizonte de inteligibilidade da psicologia concreta que Lacan quer afirmar. Os elementos deste remanejamento são extraídos da sociologia, etologia, lingüística e da própria filosofia política.

Encontro com Freud

É somente na terceira parte do texto que Olgivie descortina o encontro de Lacan com Freud. Antes, porém, faz questão de destacar a originalidade do projeto lacaniano, que consiste em abordar a questão da determinação própria do psiquismo pelo viés da trama filosófica que ela representa. É este ponto de vista, do qual Freud se manteve cuidadosamente à distância, que vai dar o aspecto particular da obra de Lacan, indissoluvelmente técnica e filosófica. Ele nunca elabora conceitos destinados à compreensão do que se passa nas curas e sua condução sem destacar, ao mesmo tempo, as repercussões no campo filosófico. A invenção do conceito de “estádio do espelho” é o ponto fixo que Lacan precisa para se engajar num caminho que o fará retomar pouco a pouco a obra de Freud, deslocando-a. A partir daí torna-se possível o retorno a Freud. Entre 1932 e 1949, Lacan procura de alguma forma tornar-se freudiano. Se, até a tese, ele demonstra que a gênese do sujeito parte do exterior, “o estádio do espelho” mostra que a questão do sujeito se inaugura nele mesmo.

Se o trabalho efetuado por Olgivie faz emergir a necessidade intrínseca do dogmatismo, do materialismo e do determinismo no pensamento lacaniano, a clareza do seu estilo de análise, problematizador e nada dogmático, concede ao leitor o privilégio de encontrar um terreno profícuo para articular suas próprias questões, sem estar preso a dogmatismos, sem necessitar estar “por dentro” de modismos da escola. Olgivie recupera a velha idéia de que o rigor de um pensamento se segue pela trajetória das questões que o animam. Pois “ele não surge do nada e seu destino não é o milagre”. Trata-se, pois, de baixar a poeira mitológica para que a palavra possa recuperar sua luz essencial.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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