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Resumo
Em comemoração aos vinte anos de fundação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, entrevistamos, no último mês de junho, os integrantes de sua Primeira Comissão de Implantação, remanescentes na qualidade de membros participativos até os dias atuais. Para o leitor incluído diretamente na história transcorrida desde o ato de fundação do Departamento, os depoimentos e as opiniões virão revolver sua memória e estimular a retomada de muitos aspectos e pontos instigantes, por vezes mesmo conflitivos, merecedores de sua reflexão. Para o leitor interessado em conhecer e em apreender essa parte importante da implantação da psicanálise em São Paulo, esperamos contribuir ao dar voz a uma trama de marcas, pensamentos, avaliações e esclarecimentos. Dela podemos ressaltar a construção coletiva e seus princípios políticos sustentados desde a criação do próprio curso de psicanálise, em 1976. Se a trajetória coletiva enfrentou – e enfrenta – conflitos paradoxais específicos e pertinentes a uma vida ativa, relatados em trechos a seguir, o trabalho de constituição do Departamento segue, nessas duas décadas, as trilhas propostas pelos pioneiros sem deixar de acolher certas mudanças exigidas pelo contingente de novos integrantes a cada ano. Talvez possamos mesmo arriscar dizer que uma entrevista deste porte carrega com ela a chance de catalisar diálogos e se prolongar no além de sua leitura. Isso interessa a todo o coletivo atual.


Autor(es)
Andréa Carvalho Mendes de Almeida

Bela M. Sister
é psicanalista, integrante do grupo de Entrevistas da revista Percurso, coautora de Isaías Melsohn: a psicanálise e a vida (Escuta, 1996).

Cristiane Sammarone

Mara Selaibe
é psicanalista, aluna do curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e Mestre em Psicologia Social.

Silvio Hotimsky


Notas

1. Entrevista com Maria Ângela Santa Cruz, Maria Auxiliadora Vidigal (Pituca), Maria Cristina Ocariz, Maria de Fátima Vicente, Maria Laurinda Ribeiro de Lima, Miriam Chnaiderman, Sílvia Leonor Alonso e Tera Leopoldi – todas psicanalistas, membros integrantes de setores do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde sua fundação.

2. A primeira Comissão foi composta por Ana Maria D. Rodrigues da Costa, João Luiz Cintra Sesso, Luciana F. Sadala de Ávila, Maria Ângela Santa Cruz, Maria Auxiliadora Vidigal, Maria Cristina Ocariz, Maria de Fátima Vicente, Maria Laurinda Ribeiro de Souza, Miriam Chnaiderman, Silvia Leonor Alonso, Tera Leopoldi e Wilson de Campos Vieira. A segunda por Eva Wongtchosky, Helena Grinover, João Luiz Cintra Sesso, Luciana Sadala, Luiza Helena Pinheiro, Maria Ângela Santa Cruz, Maria Auxiliadora Vidigal, Maria Cristina Ocariz, Maria de Fátima Vicente, Maria Laurinda Ribeiro de Souza, Marina Massi, Miriam Chnaiderman, Renata Cromberg, Stella Maris Schebli e Tera Leopoldi. E a provisória por João Luiz Cintra Sesso, Maria Auxiliadora Vidigal, Maria de Fátima Vicente, Maria Laurinda Ribeiro de Souza, Renato Mezan, Tera Leopoldi e Mary Ono.

3. Acontecimento Estético na Clínica Psicanalítica, ocorrido em setembro de 1996.



Abstract
The members of the first Board reminisce about the conditions in which the Department was founded, reflecting on its achievements (and failures). It was created as a space for mutual recognition of colleagues, something that could not happen in a training program in which there were only teachers and students. Its engagement with a politically progressive position in the Brazilian scene and with a permanent questioning of received ideas is stressed. The rules that would govern it were democratically discussed and approved. An appraisal of what has been achieved is presented, together with ideas and discussions on the future of our association.

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 ENTREVISTA

Vinte anos de Departamento de Psicanálise: para onde vamos?

Twenty years of our Department – where are we heading?
Andréa Carvalho Mendes de Almeida
Bela M. Sister
Cristiane Sammarone
Mara Selaibe
Silvio Hotimsky


Realização:
Andréa Carvalho Mendes de Almeida, Bela Sister, Cristiane Sammarone, Mara Selaibe, Silvio Hotimsky e Susan Markushower.

Maria Ângela Santa Cruz
Maria Auxiliadora Vidigal
Maria Cristina Ocariz
Maria de Fátima Vicente
Maria Laurinda Ribeiro de Souza
Miriam Chnaiderman
Silvia Leonor Alonso
Tera Leopoldi


Em comemoração aos vinte anos de fundação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, entrevistamos, no último mês de junho, os integrantes de sua Primeira Comissão de Implantação, remanescentes na qualidade de membros participativos até os dias atuais. Para o leitor incluído diretamente na história transcorrida desde o ato de fundação do Departamento, os depoimentos e as opiniões virão revolver sua memória e estimular a retomada de muitos aspectos e pontos instigantes, por vezes mesmo conflitivos, merecedores de sua reflexão. Para o leitor interessado em conhecer e em apreender essa parte importante da implantação da psicanálise em São Paulo, esperamos contribuir ao dar voz a uma trama de marcas, pensamentos, avaliações e esclarecimentos. Dela podemos ressaltar a construção coletiva e seus princípios políticos sustentados desde a criação do próprio curso de psicanálise, em 1976. Se a trajetória coletiva enfrentou – e enfrenta – conflitos paradoxais específicos e pertinentes a uma vida ativa, relatados em trechos a seguir, o trabalho de constituição do Departamento segue, nessas duas décadas, as trilhas propostas pelos pioneiros sem deixar de acolher certas mudanças exigidas pelo contingente de novos integrantes a cada ano. Talvez possamos mesmo arriscar dizer que uma entrevista deste porte carrega com ela a chance de catalisar diálogos e se prolongar no além de sua leitura. Isso interessa a todo o coletivo atual.


Percurso: Gostaríamos que vocês fizessem um breve apanhado sobre a fundação do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae.
Miriam Chnaiderman: O Departamento de Psicanálise era um antigo sonho de minha mãe, Regina Schnaiderman, desde a fundação do Curso de Psicanálise, quando ainda se chamava Psicoterapia de Base Analítica. Ela tinha uma demanda: queria ter um lugar de pertinência e de troca e foi nesse espírito que ela, já de cadeira de rodas, pois estava com câncer em sua fase terminal, numa assembléia do curso, em novembro de 1984, fez um gesto – ela era dos grandes gestos, de grande eloqüência – e fundou o Departamento como um último gesto de doação daquilo tudo que tinha construído. Foi quase um ato de afirmação de vida no momento em que ela sabia que ia morrer. Mas é claro que a idéia do Departamento já vinha sendo alimentada havia tempos, pois ocorriam muitas crises no curso em função da inexistência de um outro espaço que não ele mesmo. A partir desse ato fundador, uma comissão foi eleita na assembléia e passou a se encontrar, um mês ou um mês e meio depois da morte dela, que aconteceu em janeiro de 85. Nesse movimento foram assentadas as bases do que hoje é o Departamento.
Tera Leopoldi: Sim, aquele foi mesmo um ato fundante. Preciso contar um detalhe curioso, mas importante: coube aos alunos do curso convocar a primeira reunião do Departamento – uma vez que isso não podia ser feito por um professor nem pela própria Regina. Quero ressaltar a possibilidade intensa de participação que era dada aos alunos e assinalar o quanto o Departamento era voltado para o coletivo.
Silvia Leonor Alonso: Certamente o projeto partilhado entre Regina e todos que ali estavam era um projeto para o coletivo que incluía os alunos e os ex-alunos. O tempo todo ela se mostrava preocupada com que a permanência de cada qual não se reduzisse à passagem pelo curso e que a formação de psicanalista pudesse continuar. A fundação do Departamento foi uma das coisas em que ela realmente apostou e investiu.
Maria de Fátima Vicente: As primeiras reuniões da comissão foram muito significativas. Eu estava no segundo ano e me lembro que nos reunimos em dezembro. Não havia mais aula, não tinha mais ninguém no Sedes: éramos como uns fantasmas e ríamos: “só nós para acreditarmos no Departamento nessas circunstâncias!...” e foi a partir dessa reunião que decidimos convocar uma assembléia.
Maria Cristina Ocariz: Gostaria de fazer um acréscimo. Fui convidada, em dezembro de 1984, pelo Curso de Psicanálise para ser professora. Comecei a trabalhar em março de 1985 e participei da assembléia que foi feita no primeiro dia de aula. Foi uma assembléia plena, no auditório do Sedes e nela se constituiu uma comissão de implantação do Departamento à qual eu me incorporei imediatamente.
Miriam Chnaiderman: Considero importante situar a origem do Departamento numa crise grande que atravessávamos relativa à forma de direção do curso. Havia uma questão a propósito da Comissão Paritária e havia o Conselho de Alunos. Não era isso?
Maria de Fátima Vicente: Naquele momento a coordenadora do curso era a Regina; o Mario Fuks havia entregado a coordenação para ela em meados de 1983. Na ocasião houve um grande questionamento por parte dos alunos em relação à forma de gestão do curso. Eles consideravam que essa comissão não era verdadeiramente participativa apesar de paritária, formada por representantes de alunos e de professores. Vários aspectos demandavam ser repensados: a forma de gestão para a produção de psicanálise, a participação dos alunos, o lugar dos ex-alunos... Era necessário modificar a relação professor- aluno e considerar a inserção dos analistas que circulavam pelo curso, por exemplo. Devo dizer que meus três anos de curso foram anos de produção política! O foco era a produção de uma instituição psicanalítica.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: Gostaria de marcar algo para além dessa forte experiência interna e que concerne à experiência externa, igualmente forte, de discussão política sobre a abertura e a anistia. Isso ocorria desde 1978/1980. E em 1980 já surgira um projeto provisório de criação do Departamento. A proibição dos espaços coletivos e de circulação da palavra durante a ditadura teve uma incidência muito forte no desejo de se construir um espaço de discussão política e de pertinência da psicanálise no qual se processassem questões mais abrangentes do campo social. É, pois, importante frisar que a maioria das pessoas que transitava pela instituição Sedes, naquele momento, e especialmente no Curso de Psicanálise, tinha uma inserção político-institucional em outros lugares. Essa é a marca do Sedes e o Departamento se instalou com esse espírito.
Miriam Chnaiderman: Isso foi um resgate daquilo que envolveu a fundação do próprio curso no ano de 1976.
Maria Ângela Santa Cruz: Eu pertenço à turma que ingressou no Curso em 1984 – exatamente o ano de sua discussão e reformulação – e também participei de seminários que abordavam a militância. Houve um amplo engajamento dos professores e dos alunos dos diversos anos, tanto que nem sei direito de que ano era quem. Foi um processo que transversalizou as categorias seja de professor/aluno seja a do ano de entrada no curso. E isso aconteceu para além das brigas de poder internas do Departamento que sempre existiram, continuam existindo, nunca deixarão de existir – uma vez que são parte da condição humana. É importante cartografar as forças que estão em ação, mas elas existem e sempre existiram. Era um momento político de muita efervescência no Brasil, era o ano das Diretas já!. Muitos de nós escolhemos o Sedes justamente por sua marca histórico-política de militância. Não pleiteamos a Sociedade Brasileira de Psicanálise porque não quisemos; fizemos uma opção. Assim, a contextualização feita acima pela Laurinda amplia e despersonaliza o aspecto da fundação do Departamento: o desejo da Regina foi fundamental, mas me parece que serviu como agenciador de forças que buscavam criar possibilidades de coletivos diferentes, com uma produção mais inserida e mais ligada com o campo social, o qual, por sua vez, estava refazendo seu tecido.

Percurso: Haveria algo mais que vocês considerem relevante na estruturação do Departamento?
Maria Ângela Santa Cruz: No decorrer de todo o ano de 1984 discutiu-se longamente o currículo do curso. A assembléia do final de 1984 foi o ponto culminante de toda efervescência anterior. Nela Regina declarou a criação do Departamento e nomeamos uma comissão a partir do desejo das pessoas que se candidatavam e tinham seus nomes escritos na lousa. Pensei que minha participação tinha se esgotado ali porque eu estava no primeiro ano, mas a Regina me convidou para integrar a comissão e trabalhar nela foi uma verdadeira escola para mim. Essa comissão foi muito persistente: reuníamo-nos durante todo o ano de 1985. Por fim a comissão se modificou. Não sei se temos atas dessas reuniões ou se existe algum registro de quem precisamente a integrava. Houve duas comissões que se reuniram em 1985. A primeira apresentou seu trabalho na assembléia de agosto, quando foi dissolvida. A que se formou em seguida era uma comissão composta pelos integrantes da anterior e outros que se agregaram.
Maria Auxiliadora Vidigal: Temos um caderno de atas que ficou no meu consultório por muitos anos. A comissão não era fechada. As pessoas iam e vinham. Entretanto um núcleo do grupo estava sempre presente de modo que a cada encontro se sabia o que tinha acontecido na reunião anterior. Em geral as pessoas vinham quando tinham alguma questão que as mobilizava. Valeria revermos essas atas.
Maria Cristina Ocariz: Retomo o que falei no começo para esclarecer a cronologia: houve o ato de fundação pronunciado por Regina em novembro de 1984. Em março de 1985 foi instituída uma Comissão de Implantação do Departamento e os membros dessa comissão figuram no documento que foi apresentado na assembléia realizada no Sedes, em 10 de agosto de 1985. Essa primeira comissão reuniu-se de modo sistemático durante todo o primeiro semestre de 1985. A segunda comissão trabalhou entre 10 de agosto e 29 de setembro do mesmo ano – data de uma nova assembléia. Na última assembléia de 1985, realizada no dia 7 de dezembro, foi nomeada uma Comissão Provisória incumbida de reescrever os itens do regimento interno, discutidos e aprovados até então. Finalmente, em 26 de abril de 1986 o regimento interno foi votado e aprovado em assembléia. No transcorrer desses vinte anos de Departamento algumas das pessoas destas comissões foram se afastando por diversas circunstâncias [2].
Tera Leopoldi: Além dessas comissões oficiais, muitas pessoas ajudaram o Departamento extra-oficialmente.
Silvia Leonor Alonso: Sem dúvida, muitas pessoas que não estavam na comissão participaram, uma vez que essa comissão não era o Departamento. Contávamos amplamente com alunos, ex-alunos e todo o grupo de professores. Foi essa comissão que, de alguma forma, tomou nas mãos o trabalho de elaborar o projeto levado para ser discutido na assembléia. Porém o desejo, a participação e a alimentação da idéia eram amplos.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: Havia um coletivo com o desejo de implantar um espaço, o qual, por sua vez, era difícil de especificar naquele momento. Tanto que na hora de concretizar e formalizar o Departamento nós tivemos muito trabalho.

Percurso: Quais foram as diretrizes básicas que nortearam a fundação do Departamento?
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: As diretrizes básicas estavam implícitas no desenvolvimento anterior: o desejo de formar um espaço menos hierarquizado de poder, uma forma de gestão mais igualitária na qual se abolissem as diferenças hierárquicas entre alunos, ex-alunos e professores – as grandes categorias reconhecidas. Tratava-se de uma tentativa de formalizar um espaço de reconhecimento que lidasse com as exclusões e no qual se processasse o atravessamento dos narcisismos implicados na criação de uma instituição.
Maria de Fátima Vicente: Além das questões de hierarquia consideradas incompatíveis com a formação de psicanalistas, as diretrizes também contemplavam a produção psicanalítica que levasse em conta a realidade social do país e reconhecesse o trabalho do psicanalista no campo social. Apesar de considerar importantes as diretrizes relativas à forma de gestão, acredito que, de alguma maneira, elas dificultaram esse aspecto de produção. Isso ficou evidente quando da instauração da clínica do Departamento nos anos 90. Fiz parte do grupo que trabalhou na elaboração desse projeto durante mais de um ano, e desde o primeiro momento tivemos de lidar com uma contradição básica: se a clínica seria um serviço voltado à população, lugar onde o psicanalista ofereceria seu trabalho, ou se seria uma clínica para a formação de alunos do curso – o que já é paradoxal em si, pois não se formam psicanalistas em um curso. Apostamos numa clínica de serviços. Não que fôssemos todos analistas que não precisavam mais de formação, muito pelo contrário, por entender que a formação é conti nuada e se faz na clínica. O importante era produzir uma psicanálise que levasse em conta as contradições sociais, as determinações políticas e econômicas da subjetividade, determinações que as instituições oficiais de psicanálise, em geral, não levavam em consideração.
Maria Ângela Santa Cruz: Nessa direção, o Departamento, ainda que não existisse formalmente, iniciou uma parceria muito interessante com o Estado, em 1984, quando foi assinado o Convênio do Departamento de Psicanálise com a Secretaria de Saúde do Estado de São Paulo. Foi a primeira atividade que aconteceu no Departamento de Psicanálise antes mesmo da sua fundação efetiva. Esse convênio se deu no campo da saúde mental – uma das questões que nos mobilizava. O setor Saúde Mental e Instituições , do qual participei muitos anos, realizou, em 1986 e 1987, duas jornadas com pessoas que tinham algum tipo de trabalho institucional e editou duas apostilas com esse material. Era a época do governo Montoro e da implantação de um serviço de saúde mental diferenciado. Ainda não se tratava propriamente da eclosão da reforma psiquiátrica, mas estávamos dentro desse espírito que criou os centros comunitários e os ambulatórios de saúde mental. Ou seja, havia uma experimentação no campo das práticas públicas de saúde mental que nos convocava, como psicanalistas, a produzir uma teoria e uma clínica que pudesse ter efeitos na rede pública de saúde. Foi uma convocatória social muito clara e tentamos de várias maneiras responder a ela.
Maria de Fátima Vicente: Gostaria de lembrar que a clínica do Departamento foi o único projeto de setor que foi discutido e aprovado pelo coletivo e está detalhado, integralmente, no segundo número da revista Percurso. Foi também o lugar onde apareceu o primeiro embate com a organização hierárquica do Sedes, a qual, na verdade, nos submetia ao enquadre professor/aluno. Essa clínica funcionou por cerca de dois anos e foi extinta por diversas razões, mas suas diretrizes foram incorporadas na reformulação da Clínica Psicológica do Instituto Sedes.

Percurso: O que foi proposto em 1985 em relação aos princípios e finalidades do Departamento?
Maria Cristina Ocariz: Lerei alguns trechos do documento que a comissão de implantação apresentou na assembléia de 10 de agosto de 1985. No ponto Princípios e Finalidades está escrito: “O Departamento de Psicanálise é concebido como um espaço no qual um grupo de psicanalistas preocupados com a produção no âmbito da psicanálise, concordantes com os princípios fundamentais que regem a instituição Sedes, se reúnem a fim de trocar idéias que enriqueçam sua formação teórica e revertam em beneficio de sua prática clínica. Partindo de que a formação do analista é complexa e interminável, concebemos o Departamento como um espaço no qual caibam atividades diversas. (...) O Departamento se propõe um lugar de pertinência para seus membros. A idéia é que essa pertinência não seja apenas uma simples filiação, senão que seus membros sejam membros ativos e participantes”. A polaridade entre produção ou filiação (como se fosse um clube) provocou muita discussão e foi conflitante.

Continuo lendo o documento: “A produção é o princípio fundamental em torno do qual o Departamento deve organizar-se. É na produção constante que a psicanálise realiza seu desenvolvimento teórico, a reflexão sobre a prática clínica, o repensar nosso lugar como psicanalistas, assim como o repensar permanente da instituição à qual pertencemos. O Departamento não se propõe autorizar ninguém a ser psicanalista (...), mas o Departamento propiciará um espaço que possibilite esse reconhecimento entre os colegas. O Departamento não será um espaço definido por nenhuma linha teórica. Pelo contrário, um espaço no qual a convivência de teorizações diferentes evite as filiações dogmáticas. O confronto das diferenças teóricas daria movimento a um espaço de constante revisão da teoria psicanalítica e de desenvolvimento dos suportes teóricos que sustentam nossa prática clínica. Falamos do desenvolvimento partindo do pressuposto de que a psicanálise é aberta à retificação de seus conceitos a partir de sua instrumentação na prática e que não é uma teoria cristalizada”.

Finalmente encontra-se sublinhado que o Departamento tem de ser coerente com a Carta de Princípios do Sedes e “levar em conta o contexto histórico social no qual a prática psicanalítica se inscreve (...) [ser] um centro multidisciplinar de reflexão, um lugar permanente de formação”.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: A ênfase na produção conectava-se com a necessidade de um momento instituinte. Precisávamos criar formas para o Departamento e, portanto, era necessário o trabalho, e não uma simples filiação. Era também um momento em que se descortinavam todos os trabalhos alternativos. Assim a marca de alternativo, nesse momento, surgia como uma necessidade de efetivação instituinte.
Silvia Leonor Alonso: Tal momento instituinte implicava duas funções: primeiro efetivar o que a Cristina acabou de nos ler. Segundo, criar dispositivos de reconhecimento institucional para o trabalho que já acontecia entre o Setor de Saúde mental e Instituições e a Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo, e ainda outras atividades relativas a eventos tais como conferências e seminários clínicos e teóricos de psicanalistas estrangeiros que passavam por São Paulo, os quais contribuíam na continuidade das nossas formações. Lembro-me, por exemplo, das visitas de Piera Aulagnier, René Major e Herbert Rosenfeld, entre outros.

Percurso: O primeiro setor do Departamento foi o de Saúde Mental e Instituições?
Maria Cristina Ocariz: Não. Todos os setores foram fundados simultaneamente. Depois da discussão sobre princípios e finalidades, definição de membros, forma de gestão, etc., produzimos um documento escrito. Em 21 de setembro de 1985 nos reunimos e inventamos uma maneira artesanal de nos organizarmos e nos manifestarmos: colocamos cartolinas espalhadas nas paredes, uma para cada setor: Grupo de Estudos, Saúde Mental e Instituições, Publicações, Clínica, Curso e Eventos. Éramos aproximadamente 70 pessoas e cada uma escolhia um setor, colocava seu nome na cartolina correspondente e fazia seu pedido de pertinência ao Departamento de Psicanálise. Era um pedido de pertinência desejante – tinha de ser desejante –, não um pedido por “dever ser”.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: Tratava-se do desejo articulado ao compromisso.

Percurso: Quais são os momentos que vocês consideram mais significativos nestes 20 anos de funcionamento?
Maria Auxiliadora Vidigal: A primeira assembléia, em novembro de 1984, na qual Regina Schnaiderman fundou o Departamento de Psicanálise.
Maria Ângela Santa Cruz: A assembléia de agosto de 1985, resultante de uma parte do trabalho significativo desse momento instituinte. Havia grande força de criação de realidades dentro do Sedes. Nosso Departamento foi um dos primeiros a ser criado ali. Na sua esteira outros foram criados. O Sedes sempre foi palco para vários momentos importantes da história brasileira, desde a resistência da Madre Cristina até o movimento da Rede Alternativa da Psiquiatria: sua primeira reunião aconteceu lá!
Silvia Leonor Alonso: Foram muitos os momentos marcantes. Lembro, por exemplo, da fundação da revista Percurso. Inicialmente um grupo começou a discutir a possibilidade de se fazer uma publicação do Departamento. Chegou-se à conclusão de se fazer um boletim. Eu achava interessante este boletim de circulação interna, mas considerava importante que se fizesse também uma publicação voltada para fora. Miriam Chnaiderman, Renato Mezan, Janete Frochtengarten, Renata Cromberg e eu formamos, nesse momento, o primeiro Conselho da revista, e passamos a ter um trabalho imenso porque vínhamos do nada. Nas reuniões discutíamos muito sobre o tipo de publicação que queríamos: a revista responderia a que tipo de grupo de analistas? Que implicações teria na formação? Ou seja, cada setor que ia se fazendo, ia reinstituindo o Departamento, porque no bojo de cada atividade se rediscutiam novamente todos os princípios.

A fundação da Percurso preservou a mesma visão da clínica por ter estabelecido que a revista não deveria ser apenas de textos teórico- clínicos, mas uma revista que permitisse levar, para o interior e para o exterior, o que estava acontecendo de importante na vida ativa no Departamento. Tanto que em seu primeiro número publicamos o setor de Saúde Mental e Instituições e no segundo número, o projeto da clínica.

Maria Cristina Ocariz: O Boletim interno vigorou entre os anos de 1990 e 1999. Sua primeira equipe era formada por Anna Correia, Carlos Videira, Eva Wongtschowski, Maria de Lourdes Caleiro Costa, Sonia Maria Neves e Vera Rita de Melo Ferreira.
Tera Leopoldi: Criamos no Departamento um pensamento voltado para o coletivo. Aconteceram mudanças muito grandes. Saímos de setores, partimos para outras coisas, para outra forma de gestão e tudo isso é muito importante. Hoje somos de outro jeito. Não quer dizer que seja melhor ou pior. Entretanto em nenhum momento as questões inicialmente colocadas foram esquecidas. Discutimos as questões da psicanálise, as questões relativas ao meio social, à política.

Um momento marcante foi a fundação do Setor Grupo de Estudos. Foi um processo difícil, mas as pessoas o compuseram e, em certo momento, instaurou-se um setor especial que opera hoje de modo vigoroso e é importantíssimo no Departamento.
Silvia Leonor Alonso: Vale lembrar a realização do Congresso Interno, em 1994. Nele discutimos intensamente o que permanecia e o que não permanecia do projeto inicial.

Ressaltaria ainda a abertura do Departamento para pessoas que não tenham feito o nosso curso. Foi um longo processo que demandou tempo para, enfim, adquirir consistência e se efetivar. A abertura ocorreu em 1995 e, do mesmo modo que tivemos uma assembléia fundando o Departamento com a fala da Regina, houve outra assembléia na qual dissemos: “O Departamento está aberto”. Com a abertura algo se transformou de vez na relação Departamento/ curso na medida em que até ali a entrada só era possível como aluno ou professor do curso.
Maria Ângela Santa Cruz: A realização do livro dos vinte anos do Departamento também deve ser destacada. A comissão que está coordenando este processo está de parabéns pela iniciativa.

Percurso: Vocês pensariam que ocorre uma carência de funcionamento democrático no Departamento, ainda que estejam contemplados dispositivos que visam a participação de todos os membros no sentido de garantir o revezamento do exercício do poder e do saber?
Maria de Fátima Vicente: A dialética entre o que é personalizado e o que é coletivizado é um problema presente no Departamento. Entendo que seja um problema relacionado com a estrutura do Sedes em função de seu lugar político na sociedade brasileira. O Departamento e o Curso de Psicanálise eram um coletivo de confiança, mas de qual confiança? Uma coisa é o personalismo e outra é a necessidade de confiança em acreditar-se e reconhecer-se apostando numa mesma ideologia política de resistência. A relação de confiança na oposição a uma ditadura totalitária é muito importante e isto marcou a entrada de algumas pessoas no Sedes – as iniciais. Por volta de 1976 e 1977 isso foi delegado a tais pessoas, numa espécie de parâmetro de verificação de afinidade ideológica, em termos do risco que poderiam oferecer ao projeto-instituição. A dinâmica e o requisito da confiança pessoal faz parte do Sedes e não só por uma centralização hierárquica do poder, que, aliás, ocorre e é preciso ser dialetizada; há um núcleo de verdade histórica nessa loucura que se baseia no pressuposto de saber em quem posso confiar numa situação de combate a um regime totalitário de risco. Essas passagens têm sido muito gradativas dentro do Sedes. Alguns professores do Curso de Psicanálise, nos quais a Madre Cristina confiava, tinham esse lugar privilegiado e, portanto, ela ia lhes atribuindo os lugares. Em relação à diretoria isso foi mudando, mas até hoje as chapas de diretoria têm ao menos um membro do Departamento de Psicanálise. Isso não é aleatório nem diz respeito só a uma questão democrática, mas a uma democracia possível, na qual a relação de confiança no outro é fundamental. Eu penso que certas exigências e privilégios pleiteados para a categoria de membro fundador são formações reativas à ausência do reconhecimento disso. É uma confiança conquistada, construída em decorrência de uma opção política compartilhada e correndo riscos juntos.
Silvia Leonor Alonso: Eu não entrei no Sedes pela via do Curso de Psicanálise, e, sim, com um grupo de pessoas que fundou um curso que se chamava Psicoprofilaxia. Nessa ocasião tive que conversar com a Madre Cristina para podermos abrir o curso e a conversa foi absolutamente em termos de confiança pessoal e história política. Apenas depois de uma conversa de três horas recebemos autorização para abrir o curso no Sedes.
Maria Ângela Santa Cruz: Este ponto é fundamental para o entendimento de muitas coisas gestadas nas relações de confiança sobreviventes ao fascismo instaurado no tecido social nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Mas penso que também seja fundamental reconhecer que tal forma de cristalização de lugares de poder hoje, em 2005, precisa ser analisada para que o Departamento possa, de fato, fazer a produção para a qual foi fundado. A vocação do Departamento é produzir pensamento psicanalítico a partir de uma clínica que é diferencial. Espanta-me que colegas recém-formados pelo Curso de Psicanálise, pessoas que chegam ao estágio da Clínica Psicológica do Instituto Sedes Sapientiae e são meus estagiários – sou coordenadora de equipe na clínica – cheguem defendendo uma psicanálise três ou quatro vezes por semana, com divã. Quer dizer, qual é a contribuição que nós do Departamento estamos fazendo para uma psicanálise retrógrada? Toda a força que produzimos na década de 1980, até 1995 na verdade, parece que se perdeu e hoje o modelo de consultório particular está de novo colocado. Existe uma psicanálise dogmatizada na palavra de muitos dos nossos colegas recém- formados. Deveríamos ter condições de problematizar isso: que cristalizações estão acontecendo? Temos um espaço rico na clínica, uma clínica institucional que de fato problematiza a psicanálise. Temos que poder falar das problematizações que faz a teoria psicanalítica se produzir. Essas coisas estão todas ligadas, não tenho respostas, só as vejo acontecerem.
Maria Cristina Ocariz: Como professora do Curso de Psicanálise-Teoria e Clínica costumo falar nos seminários e supervisões que coordeno que muitas vezes me sinto frustrada depois de 27 anos exercendo a prática clínica e a transmissão da psicanálise no Brasil, e oito anos na Argentina, e continuar escutando esse tipo de idealização instituída em relação ao que é a psicanálise. Não responsabilizo os cursos e nem o Departamento por não problematizar essa questão, uma vez que vivemos continuamente trabalhando nesse sentido; nesse ponto existe homogeneidade entre os professores. Embora possamos ter diferenças singulares e/ou de linhas teóricas, todos transmitimos o principio ético freudiano de que a prática psicanalítica não é padronizada. O problema descrito acima pela Ângela é um fenômeno social complicado que cristalizou a psicanálise em um ideal utópico, um ideal egóico, um ideal narcísico que insiste morbidamente nas pessoas em formação psicanalítica. Esse ideal afirma que a psicanálise verdadeira, pura, é exercida nos consultórios, com regras fixas e honorários altos. Muitos, se não a maioria de nós que temos algum lugar na formação dessas pessoas, tentamos trabalhar na direção da desconstrução dessa maneira estereotipada de conceber a psicanálise.

Em relação à questão do funcionamento interno, podemos nos reportar a vários informativos do Departamento, os quais recebemos no cotidiano via correio, para pensar que temos de brecar a queixa de que o poder não circula, de que as pessoas não têm lugar. Se prestarmos atenção a todas as correspondências, observaremos quantas pessoas entraram no Departamento e membros do Departamento foram convidados a ser professores do curso depois dos anos 1990, assim como pessoas que circulam como articuladoras no Conselho de Direção do Departamento.
Tera Leopoldi: Há uma circulação muito diferenciada de poder. As primeiras coordenações não tinham nem sequer voz ativa, não sabíamos o que estávamos fazendo lá, e esperávamos os professores darem ordens. Essa é a grande verdade das várias comissões iniciais. Ou os alunos brigavam com os professores ou pediam para eles: “Por favor, o que eu faço agora?”. Hoje não é assim. Convenhamos que a Coordenação Geral, hoje, tem autonomia, tem confiança, tem poder e decide coisas contrárias a quem quer que seja. Houve uma necessidade de construir esses lugares. Antes a coordenação perguntava “Por que só os professores mandam aqui? Por que os alunos fazem transferência apenas com os professores?”. Ora, a transferência ocorre através do nome, do sobrenome, da fundação, etc.

Percurso: A partir das considerações a respeito da circulação de lugares e exercício de poder, parece que podemos determinar momentos marcantes dentro do processo?
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: Os momentos marcantes têm a ver com o momento da fundação, com a jornada que fizemos e com os eventos. A primeira comissão coordenadora insistiu muito na organização dos eventos, os quais tinham também o propósito de convidar psicanalistas de fora e criar um espaço de troca com o que se construía internamente no Departamento. Certo tempo depois, quando se dissolveu a Comissão de Eventos, a idéia era romper as esferas hierarquizadas: cada um lançava uma proposta, quando a tivesse. Eu organizei um evento. Mas é preciso reconhecer o quanto é difícil solitariamente organizar eventos.

Houve um tempo em que os eventos diminuíram ou mesmo cessaram porque era muito complicado fazê-los; criava-se muita rivalidade, muitos questionamentos: “por que estão chamando tal pessoa e não outra?”, “o que isso tem a ver com a política do Departamento?”. Foi sintomático que o Departamento ficasse um tempo sem uma organização de eventos. Essa ausência respondia em parte a esse dilema. Mais tarde ocorreu outra tentativa de criação de um articulador de eventos e é o que vivemos hoje.
Maria Cristina Ocariz: Em relação à organização de eventos, eu tive a experiência das conferências de Roudinesco (2004) e de Calligaris (2005) que foram muito satisfatórias. É necessário trabalhar: encaminhar uma carta para o Conselho de Direção, esperar a autorização, discutir orçamento, organizar a divulgação e a tradução – se for necessário. Qualquer um pode contatar a articuladora de eventos (atualmente Cristina Parada Franch). Eu não encontrei resistências. Penso que as portas do Departamento estão abertas para quem deseje organizar qualquer tipo de atividade.

Algo mais a ressaltar diz respeito ao último Ciclo de Debates, “O sintoma e suas faces”, ocorrido entre 17 e 18 de junho de 2005. Este foi fruto de uma iniciativa coletiva dos três cursos do Departamento. Na programação constam trabalhos dos membros fundadores do primeiro curso, dos professores intermediários, assim como de jovens professores que circulam nesses três cursos.
Maria Laurinda Ribeiro de Souza: Outra questão importante na problemática do poder permanece desde a origem. Trata-se da questão da resistência. Se não temos mais resistência à ditadura, nos perguntamos a que resistimos?, resistimos uns aos outros?

A questão dos membros continua como marca e atravessa todos os nossos anos de trabalho – algo sintomático também. Queríamos questionar quem eram os membros, e em várias assembléias, repetitivamente nos perguntamos “quem são os membros?”. Isso nos atravessa e deixa algo como resto, como questões que demandam trabalho e até, talvez, como algo que depois de vinte anos nos inquieta tal como a questão do setting ideal. Seria interessante que construíssemos um outro modo de funcionamento menos conflitivo. Temos que repensar que o lugar do poder é sempre um lugar para ser questionado.
Maria de Fátima Vicente: Momentos marcantes foram todas as assembléias nas quais se discutiam as questões que regiam o Departamento e, com muita freqüência, discutíamos a respeito da manutenção ou da transformação da forma de gestão. Um momento marcante foi a mudança da forma de gestão, de coordenação coletiva, por representação de setores para uma comissão diretiva. Coincidentemente, desde essa mudança deixou de haver assembléias suficientemente freqüentes como eram para que se processassem as questões coletivas. Essa é uma mudança importante. Não sei se isso diz respeito ao funcionamento democrático ou não-democrático, mas diz dos percalços que a democracia tem. Seus momentos de maior possibilidade de abertura e seus momentos de maior fechamento. O que temos em nosso Departamento, e no Sedes em geral, é um exercício muito ativo de combate ao adversário, e pode ser entendido como uma democracia bastante intensa.

Muitos setores concluem seu trabalho e se esvaziam em função da desistência das pessoas. Já as pessoas que detêm o poder têm o mérito de não desistirem jamais; são pessoas que perseveram. Nossa pergunta poderia ser então: “a democracia no nosso contexto é trabalhosa e implica em luta?” Sim, implica. E às vezes implica em luta com custos corporais importantes, por exemplo, o adoecimento. Não sei se isso é um bom modelo.

Eu marco como a vigência de um espaço democrático os eventos que foram conflitivos. A criação do evento que a Mara Selaibe propôs sobre Estética, junto com o Daniel Delouya, foi um parto à fórceps, com o enfrentamento de ambos os lados. Eu fazia parte da comissão coordenadora a qual perguntava a respeito das razões para escolha dos nomes dos participantes propostos. Era uma pergunta que colocava algumas questões, não era uma imposição, não era policialesca; eu e o Mário Fuks éramos os interlocutores junto aos proponentes. As relações para processar coisas estão muito longe de serem pouco hostis, mas, no caso, processamos e o evento saiu. Os organizadores puderam justificar todos aqueles nomes que, então, foram validados. Esse é um lado. O outro lado era o Espaço Aberto – uma tentativa de criação de um espaço de discussão clínica constante e que não tivesse professores. Ele evoluiu para Inquietações da Clínica Psicanalítica, que é um espaço importante do Departamento. Essa questão indica que há democracia, e que essa democracia implica em uma lista importante. Agora, o fato de que Inquietações da Clínica dependa do convidado para arregimentar maior ou menor número de participantes, é uma característica relativa ao mundo completamente midiático, no qual a coisa mais complicada é saber se reunimos pessoas para produzir e pensar ou para se dar a ver.

Maria Ângela Santa Cruz:
Essa última colocação é importante. Estamos mesmo mergulhados num mundo espetacularizado e extremamente narcísico. O Departamento cresceu muito, muitas pessoas trabalham ali em diferentes setores – algo muito bacana – e com produções interessantes. Porém, independente de cada setor especificamente e cada pessoa individualmente, no conjunto temos uma certa tônica de despolitização do Departamento para fora dele mesmo. Precisamos pensar melhor nisso. Hoje há tantos campos de atuação dentro do Departamento que eu gostaria de fazer uma proposta para que possamos pensar modos de participar mais afinados com o nosso perfil de produção, de compreensão no movimento da reforma psiquiátrica. A questão da infância e da adolescência é assustadora: recebemos crianças e adolescentes na Clínica do Sedes e por essa via se descortina um mundo completamente violentado. O Departamento teria muita coisa para fazer nesse campo, não necessariamente apenas dentro da Clínica no atendimento direto. A Febem é outro lugar de intervenção necessária na realidade social. Os abrigos, a rede de atenção à infância e à adolescência é uma rede que não tem nada a ver com proteção, tem a ver com violência. O Departamento pode, e disso eu gostaria particularmente, efetivar ações mais políticas junto a esses campos.

Percurso: Como os projetos do Departamento poderiam estar articulados dentro da proposta política inicial da instituição Sedes?
Tera Leopoldi: A instituição tem um projeto político-cultural atualíssimo nessa direção. Temos de dialogar com o Sedes.
Silvia Leonor Alonso: Há dois pontos fundamentais para o Departamento implementar. Em primeiro lugar a participação nas políticas públicas através de convênios com outros lugares, através da atuação do Departamento em projetos coletivos. Mas não podemos nos omitir de pensar que, se a realidade da saúde mental mudou, poderíamos fazer um esforço para ver que outros lugares de intervenção poderíamos ter e, nesse ponto, estamos fazendo menos coisas do que as que gostaríamos.

O segundo ponto fundamental diz respeito à decisão da retomada dos congressos internos. Muitas coisas que aparecem em certos momentos como caóticas e sintomáticas devem-se à falta de congressos internos nos quais as problemáticas e os conteúdos possam ser discutidos de verdade. Quando chegamos numa assembléia depois de anos sem congressos internos, qualquer discussão vira um sintoma e um caos, porque não há condições de sustentação para se repensar como projeto, como Departamento, nesse coletivo. Temos nos repensado em pedacinhos.

Os eventos são momentos importantes para o Departamento. Quando se fala de resistência, vemos como todos os eventos encontraram muita resistência. Por exemplo, o evento do Primeiro Ciclo de Leituras de Freud encontrou todo tipo de resistência decorrente da produção escrita, que é o que nos expõe para fora de nosso Departamento.

Percurso: Seria correto afirmar a existência de uma resistência em termos de circulação dos lugares, das pessoas, das idéias?
Silvia Leonor Alonso: Sobre a circulação das pessoas deveríamos pensar melhor. Existem lugares nos quais as pessoas se fixaram e não circulam, e é necessário reconhecer isso. Mas a circulação não é só das pessoas; existe também a circulação das produções. Há momentos preciosos na história do Departamento que são modelos de como eu gostaria que se funcionasse sempre. Lembro, por exemplo, da vinda de Claude Le Guen. Ele foi trazido pelo Setor de Publicações. Como ele estava trabalhando a questão do feminino, fez uma atividade dentro do Grupo do Feminino; o grupo Inquietações da Clínica convocou pessoas do Grupo do Feminino para escrever textos com a finalidade de serem apresentados no Inquietações. Por fim, os textos foram publicados na revista Percurso. Esse tipo de circulação entre os grupos é realmente preciosa e um tal tipo de acontecimento deveria se multiplicar no Departamento. Não é que não existam, existem e têm de se multiplicar.

Há ainda a questão do Sedes frente aos cursos. Estes são o lugar privilegiadamente reconhecido por aquele. Os Departamentos querem mais espaço, mas durante muito tempo os cursos foram os lugares mais reconhecidos em todos os sentidos, inclusive contratual, por serem pagos. Isso marcou lugares de poder, mas os departamentos estão cobrando força.
Tera Leopoldi: Está acontecendo um movimento no Sedes muito importante. Pela primeira vez, depois de vinte anos, os departamentos conseguiram constituir um núcleo de departamentos e eu faço parte dele. Pela primeira vez os departamentos começam a ser um grupo. Houve uma mudança muito grande na diretoria do Sedes, pois antigamente não conseguíamos falar com ela e hoje somos convocados por ela.
Miriam Chnaiderman: Era melhor quando não existia essa centralização. Essa piramidização que implica a necessidade do carimbo do Sedes em tudo que circula no Departamento nos amarra. O que é instigante no Departamento é alguém querer fazer alguma coisa e propor. Uma estrutura como essa, que centraliza, é, ao contrário, empobrecedora, além de não ser fiel ao que a Madre Cristina pensava.
Silvia Leonor Alonso: Essa questão é complexa e delicada. Conversando em grupo as questões ficam polarizadas. Tomo uma posição na direção de valorizar nosso trabalho bem como manter as temáticas, os projetos, a posição como analistas. Apesar das deficiências, das críticas, de todas as questões que temos que melhorar e ampliar, considero que temos princípios que se mantêm absolutamente na nossa produção com relação à psicanálise.
Maria Ângela Santa Cruz: Valorizar não anula colocar em questão o que se pensa.
Silvia Leonor Alonso: Sim. Justamente, o que têm sido as temáticas de trabalho, de pesquisa, de discussão dentro do nosso Departamento? Os últimos eventos – do Grupo do Feminino e do Grupo de Psicopatologia Contemporânea – são problemáticas que condizem totalmente com um projeto de formação de analistas comprometidos, sim, com as questões sociais, com o momento histórico, com as questões do mundo. A diferença com outros grupos continua sendo absoluta. Ou seja, os alunos dos cursos ou estagiários da clínica que definem a psicanálise pelo setting também me espantam, mas não temos o poder de transformação da cabeça do outro porque as transferências são fortes. Nossos alunos se analisam, se supervisionam e fazem grupos de estudo com analistas de outras instituições. Essas multiplicidades estão presentes. É bom perceber nossas deficiências para continuar avançando, mas sem deixar de valorizar nosso trabalho.
Maria Cristina Ocariz: Há vinte anos participo da seleção de alunos para o Curso de Psicanálise e de outras atividades do Departamento e constato o lugar de importância que ele tem extra-muros. A revista Percurso é reconhecida a nível nacional, por exemplo. Entretanto, internamente, muitas vezes perdemos a dimensão de nosso trabalho e de nossa produção e não os valorizamos adequadamente.
Maria Ângela Santa Cruz: Neste momento o importante, em termos de balanço e avaliação, é pensar quais formas podemos inventar, não só de fazer circular a palavra, mas de fazer circular uma produção e fazer uma produção para além do próprio Departamento. Ir para o mundo e colocar o mundo dentro do Departamento está na ordem do dia.
Maria Cristina Ocariz: Essa linha de preocupação e de atenção presente no Departamento postula a importância do trabalho dos psicanalistas na comunidade.


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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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