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Notas
* Jurandir Freire Costa nasceu num pequeno vilarejo de Pernambuco há 44 anos. De lá saiu aos 15 anos e foi para Recife, onde formou-se em Medicina. Logo depois viajou para Paris, iniciando sua formação psicanalítica, no internato em psiquiatria e um trabalho em etnopsiquiatria na École Pratique. Reside atualmente no Rio de Janeiro, cidade na qual terminou sua formação psicanalítica. Jurandir é membro do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro e professor no Instituto de Medicina Social e Saúde Coletiva da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. No instituto, desenvolve trabalhos em equipe no terreno da saúde mental. Recentemente, foi transferido do Hospital D. Pedro II para a colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá.


Abstract
The first colleague to be interviewed by Percurso was involved, in 1988, with the research for his book on violence. He wanted to understand the milieu in which Psychoanalysis in practiced in Brazil, and the phenomenon of violence was then beginning to gain importance. The interview focuses on Dr. Costa’s theoretical conceptions, on his interest in Ethics – particularly in the ethics of Psychoanalysis – and on other problems he was working on.

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 TEXTO

Jurandir Freire Costa [*]

As faces da violência


The faces of violence (1988)


Tal percurso de vida faz com que Jurandir observe o mundo com certo relaxamento, o que explica sua simpatia à relativização e à não-universalização dos valores. É esse caminho pessoal que marca seu intenso envolvimento (“meio militante e intempestivo”, diz ele) e a impossibilidade de adotar o “tom exato da discussão acadêmica” quando discute suas idéias. Preocupado em entender as circunstâncias do exercício da psicanálise no Brasil, Jurandir dirige sua atenção principalmente para a pesquisa sobre a violência contra as minorias de qualquer ordem. Suas principais obras são História da psiquiatria no Brasil, Ordem médica e norma familiar, Violência e psicanálise e Narcisismo em tempos sombrios. Um outro trabalho, Imaginário psicanalítico: Grupos e psicoterapia, está para sair.

A seguir, os principais trechos da primeira parte da entrevista realizada com Jurandir Freire Costa por Renata Udler Cromberg (transcrição de Leopoldo Pereira Fulgêncio Júnior), em julho de 1988, na qual ele fala de suas concepções teóricas, pressupostos éticos e algumas questões que o intrigam. No próximo número, Jurandir falará de suas idéias sobre formação em psicanálise, o trabalho em instituições, um ponto de vista sobre Foucault e sua trajetória pessoal.


PERCURSO: Você termina seu último escrito, Narcisismo em tempos sombrios, com a citação de Freud: “Quando aquele que caminha na obscuridade canta, nega sua ansiedade, mas nem por isso passa a ver mais claro”. A imagem que me vem é a do filme de Kurosawa “Ran”. A última cena, em que o cego está à beira do abismo, tateando com a bengala, e deixa cair a imagem de uma figura divina. As nuvens, metáfora da explosão nuclear e da própria explosão da temporalidade, da fragmentação, finalizam o filme. Ali não se trata de cantar para negar a ansiedade, mas expô-la, expor o confronto, os impasses que a morte de Deus, a morte ou a destituição da figura de uma pai, chefe do clã, traz para o homem. Essa obra, de uma beleza imensa, me lembra muito o seu artigo. Eu tenho a impressão de que é como se o que você escreveu fosse um percurso que se encaminhasse para a necessidade de se resgatar o ideal como uma ilusão necessária. Esse escrito, parece-me, tem uma continuidade com suas preocupações anteriores sobre a violência e o narcisismo, sobre a gênese do conceito de violência em psicanálise ligado ao conceito de narcisismo. Se no seu primeiro artigo sobre esse tema você dizia que antes de condenar é preciso entender a cultura do narcisismo, nesse outro artigo é como se você nos colocasse que, se é preciso entender, isso não significa compactuar com ela. Nesse quadro, surge a curiosidade de saber sobre o seu percurso, sobre a gênese dessa sua preocupação com essas questões, enfim como surge isto na sua vida, no seu pensamento, na sua prática.
JURANDIR: Você entendeu muito bem o que eu quis dizer. De início, em Violência e psicanálise, há, como você diz, a idéia de perceber, entender, como se constitui a relação da violência com o narcisismo. Depois, nesse pequeno texto Narcisismo em tempos sombrios, aparece uma outra vertente da cultura do narcisismo que eu tentei abordar me situando como alguém que não compactua efetivamente com ela. E no trabalho recém-terminado, a tese de livre-docência, eu abordo de novo a questão do narcisismo, que é uma questão que me preocupa muito e que eu quero continuar a trabalhar no nível da ação, da eficiência. Infelizmente a nossa pesquisa foi abortada no que diz respeito ao meu percurso no Hospital Pedro II, no trabalho de psicoterapia com as classe populares, fazendo uma análise da cultura. Eu estava tentando localizar, sob a ótica do narcisismo e da formação egóica, quais são os impedimentos para uma psicoterapia do tipo clássico. Há uns 10 anos, mais ou menos, eu comecei a querer entender qual era a circunstância do exercício da psicanálise no Brasil. Não que eu ache que esse tema tenha de ser privilegiado em detrimento de uma reflexão psicanalítica pura. Eu acho que isso, às vezes, aparece um pouco equivocado dentro do panorama psicanalítico, como se a opção por um ponto de vista particular, quando se estuda profundamente alguma coisa, significasse, imediatamente, julgamentos, valores, qualificação da reflexão que se passa em outro campo. Acho que existe, de fato, uma espécie de atrofia dentro do campo psicanalítico, dentro de tudo isso que diz respeito às condições do exercício prático da psicanálise. Por um lado, ela se limita, no seu objeto, praticamente à clínica. Ela não se expande, não toma outros objetos para a sua reflexão. De outro lado, existe também a idéia de que as circunstâncias culturais não têm nenhuma importância, nenhuma pertinência para a teoria psicanalítica. Ora, eu nunca fiquei convencido de que isso fosse verdade. Eu acho que não, eu continuo achando que, por mais que se universalizem certos postulados, eles são históricos como quaisquer outros. A minha impressão é a de que não existe a possibilidade de raciocinar eternamente, ou só exclusivamente, a partir da abstração em um sujeito universal. De fato, por uma necessidade metodológica, certos conceitos em psicanálise têm de ser generalizados. Mas, ao meu ver, justamente esse exercício de abstração só existe para dar conta do concreto, da realidade concreta da vida das pessoas. Por força da abstração metodológica, começa-se a pensar um sujeito em abstrato e isso coloca a psicanálise numa direção um pouco monista e exclusivista. O que eu não acredito que tenha sido o élan inicial do empreendimento freudiano. Na verdade, Freud sempre abstraiu para poder dar conta de sujeitos históricos, dentro do campo racional do conhecimento. A consideração por essa vertente da existência do sujeito concebido em sua abstração é válida e legítima. Não pode, contudo, deixar a descoberto a existência concreta das pessoas, porque senão se incorre em um erro intelectual grave – a pesquisa teórica se transforma num cacoete. Minha preocupação fundamental é a de me mover nesse campo, mas deixando bem explícito que isso não significa patrulhamento. Ao contrário, trata-se de mostrar que a pluralidade é enriquecedora. Quanto mais for possível tematizar por vias diversas, por ramos diferentes – esse é o objetivo da psicanálise –, tanto mais esclarecimento se ganha, mais insight a gente tem com a realidade em que se vive.

PERCURSO: Você falou de uma experiência no Hospital Pedro II, mas a impressão que seu artigo me transmite, principalmente na parte final, vem de uma violência sofrida. Que tipo de prática violenta foi essa?
JURANDIR: Nós fomos absolutamente expurgados. E postos para fora da maneira mais brutal, interrompendo completamente o que vínhamos fazendo. Era uma investigação no ambulatório a respeito de como a diversidade cultural marca o sujeito e como essa marcação pode ser traduzida metapsicologicamente na psicanálise. Ainda bem que eu tive cinco anos para fazer esse trabalho. Meu pressuposto ético, meu ponto de vista metodológico e minha postura teórica do efeito pluralista sempre me fizeram escolher como objeto de estudo um grupo de pessoas, sujeitos, que estão submetidos à violência, seja ela de que ordem for. Minha opção fundamental é a violência contra o louco, mesmo porque eu trabalho sobre isso. Mas também a violência da discriminação contra o negro, o drogado, como aparece nos textos de Violência e psicanálise, e contra os pobres, maltratados e ofendidos da Assistência Pública. Estamos agora num projeto de análise do homossexualismo relacionado com a AIDS. Como se pode perceber, há um pano de fundo comum, algo constante e recorrente, que é a lembrança do extermínio – o horror da intolerância por excelência. Tenho como máxima a frase do Sartre: “Perdoa, mas não esquece”. A lembrança do extermínio é a centelha que constitui o modo produtor de toda a minha investigação. Eu acho que a própria escolha dos objetos reflete essa minha preocupação de colocar a psicanálise a serviço de alguma coisa que seja humanamente útil. Isso, às vezes, pode ser até escandaloso porque parece que uso a teoria com fins utilitaristas. Mas eu não encontrei nada melhor até agora. Não se trata de colocá-la a serviço do poder, nem de fins metafísicos abstratos, ou então de envolvê-la no seu próprio movimento como se fosse alguma coisa fechada. Trata-se, no fundo, de entender que ela deve servir para melhorar o convívio humano, para exercitar a tolerância, a liberdade. Eu gostaria de deixar isso bem claro porque raramente tenho oportunidade de dizer tais coisas. Mas, para mim, é algo fundamental. O resto todo é derivado. Não vejo outra função na minha vida nem no meu trabalho.

PERCURSO: No seu primeiro trabalho, você colocava que a violência advém da reclusão narcísica que, por outro lado, é efeito de uma violência exercida pelo exterior. Já neste último trabalho, você fala de uma cultura do narcisismo, equiparando- a com uma cultura da violência. Com que conceito de violência você trabalha? Trata-se de uma posição pacifista? Porque o próprio ato analítico é um ato violento, na medida em que é violento ter que se dar conta do seu assujeitamento a esse ego ideal para poder fazer uma passagem que desassujeite.
JURANDIR: Em primeiro lugar, como você percebeu, em relação à noção de narcisismo, fiz uma série de críticas à minha posição anterior. Em Violência e psicanálise, como eu estava refletindo em torno de casos clínicos ou práticos, o drogado, o negro, a cultura de elite urbana de “centração” no corpo, eu acabei por dirigir demais o conceito de narcisismo na vertente da recuperação, da regeneração da imagem corpórea. Isso para mostrar como a reação dessas pessoas era uma reação defensiva em face da violência. Na pauta das condutas possíveis da pessoa em face da violência, se eu tomasse a rubrica “impotência-resistência” e tentasse fazer uma ponte entre os dois trabalhos, eu diria que mostrei como o sujeito impotente reage de uma maneira meio inconseqüente quando ele se vê incapaz de ultrapassar criticamente uma dada situação através da práxis, do entendimento do que quer que seja. Ele abre mão do desejo, como o burocrata, se curvando e admitindo o status quo como a possibilidade de saída, tentando copiar o modelo do vencedor, do poderoso, de quem dita as regras. Era uma reflexão impregnada da clínica do corpo, e só depois é que eu fui trabalhar com a formação da imagem egóica. Por isso, em Narcisismo em tempos sombrios, eu quis (e eu desenvolvo isso mais ainda no trabalho recém-concluído) pensar como é que, nessa cultura do narcisismo, as pessoas podem desenvolver pautas de conduta que são dissolutoras do convívio, da sociabilidade ou da perspectiva do social, articulando isso com a noção dos ideais. Na ausência dos ideais, como é que você se vê a braços quase exclusivamente com as miragens de egos ideais e com a dinâmica própria do narcisismo, que é da autoconservação, da autopreservação a qualquer preço. Com relação à violência propriamente dita, eu acho que há uma desarticulação interna no meu último texto em parte pela história dele e em parte porque minha idéia mudou. Em Violência e psicanálise, eu estava dominado por alguma coisa que hoje eu critico, que é ir buscar uma essência da violência, um perfil inconfundível dela em relação a outras práticas de poder. Apesar de eu continuar achando que não se pode colocar no mesmo pé de igualdade a tortura, a corrupção, o descalabro, o desmando dos governantes e dos poderosos e, por exemplo, uma relação analítica, uma relação professor-aluno, pai-filho, adulto-criança, onde existe uma direção na ação e, às vezes , até coerção. Eu percebi que estava caindo em um empreendimento meio essencialista, meio ideal, que me levou a adotar uma dicotomia muito grande entre poder e violência. Eu estava muito influenciado por Hannah Arendt, a quem eu admiro muito, particularmente pela sua definição de poder como algo escorado no consenso, na persuasão, no diálogo, e pela definição de violência que seria o uso de artefatos, a imposição da vontade de uma maioria, de alguns sobre outros, sem respeito à persuasão e às regras do diálogo. Acho que, para Arendt, pelo fato de estar pensando politicamente, seria até permissível. No meu caso não, eu corrigiria. Penso que é possível tomar a violência em um sentido mais amplo – o de alterar aquilo que seria o movimento natural das coisas, por assim dizer, impor uma ruptura brusca no contínuo do vivido, do existente, como Aulagnier, que fala de uma violência original que introduz a alteridade, a heterogeneidade de fora e faz com que a pessoa perca a familiaridade, se é que um dia houve, com a própria determinação biológica instintual. Coisa que antes eu tinha resistência a aceitar e que me fez cair no erro de buscar uma essência única, necessariamente má. Mas isso não autoriza um trânsito gratuito de um fenômeno diverso a outro, cobrir com a mesma semântica realidades diversas. Unir a violência da psicanálise à violência do Estado é um erro que muitos analistas cometeram, aceitando um argumento sofismático, falacioso. No texto Narcisismo em tempos sombrios, eu uso o conceito de violência para dizer que, do ponto de vista social, há uma cultura de violência que tem como correlato, do ponto de vista do sujeito, o que eu chamaria de cultura narcísica. Por que eu faço questão de distinguir? Porque eu não ousaria, a partir da psicanálise, fazer uma gênese do social, explicar psicanaliticamente o social. Em Freud – e isso é uma coisa que eu vou defender claramente em um trabalho maior – não se tem nenhuma teoria coerente do social, quer na sua gênese, quer no seu funcionamento. Você tem insights aqui e ali, algumas noções ricas, mas toda a explicação que Freud dá do ponto de vista social me parece capenga, insustentável, incoerente. Em contrapartida, acho que há alguma coisa nos chamados escritos sociológicos, nas especulações culturais de Freud que, numa leitura mais detida, me encantou profundamente: eu raramente vi um pensador que fosse tão longe em imaginar o que seria o homem fora do social, quais seriam as conseqüências para ele. Todo o esforço que Freud faz para definir o social é, por assim dizer, para poder encontrar no último estágio dele, na sua última falência, o que seria o indivíduo “associal”, para-social, pré-social, além do social. E é por isso que eu me interessei: poder mostrar como da dissolução da sociabilidade – pouco importa que se a considere a mais justa ou menos justa – emerge do funcionamento do sujeito empírico alguma coisa da ordem do cultural que eu vejo como profundamente destrutiva para a economia do sujeito em sociedade. Eu jamais colocaria o Brasil no divã, isso não tem sentido. Quando se põe qualquer coisa no divã, é preciso que tenha fantasma, corpo, que seja um sujeito único e singular. Mas eu penso que a gente pode, com certa legitimidade, afirmar algumas coisas sobre o interior do indivíduo, sua dinâmica intrapsíquica, quando ele está situado em determinadas circunstâncias culturais. Não fazer a gênese do social, mas mostrar qual o funcionamento do indivíduo para ver como o social se destrói, cambaleia, titubeia, como ele se desestrutura. Que é o que eu acho que existe agora no Brasil e que se traduz por isso que eu chamei de cultura do narcisismo.

PERCURSO: Você está contrapondo cultura do narcisismo e solidariedade social. O que quer dizer esta última para você? Trata-se, de novo, de catar uma imagem e colocar na parede, no lugar vago da figura divina?
JURANDIR: Em relação ao que faz com que a gente tenha ideais, as hipóteses são inúmeras. Onde nascem os ideais sociais, como e por que são produzidos, esse é o empreendimento de Freud e eu parto da constatação empírica de que eles existem. Desde que o homem falou e criou cultura, ele coloca certas coisas como transcendentes e outras como sendo imanentes à própria existência, comparando-se com elas. É alguma coisa que o homem coloca às vezes no sobrenatural, às vezes na determinação de qualquer ordem, mas que está aí. Do ponto de vista da teoria psicanalítica propriamente dita, essa é uma questão espinhosa porque acho que deparamos, automaticamente, com questões intrincadas. Vou citar uma: recentemente, tem-se colocado na literatura lacaniana o ideal como sendo um traço no simbólico, um significante, por assim dizer, a partir do qual o sujeito se vê amado pelo outro. Ou seja, o ideal seria nada mais, nada menos, que uma espécie de significante da demanda materna, sem dúvida alguma imaginado pela mãe. Tal significante marca o sujeito e a partir dele ele se olha e tem o júbilo narcísico, como uma espécie de repetição do estádio do espelho, desta vez menos atrelado à imagem, à etologia ou à figura instintiva que parte da impressão perceptual. Eu acho que isso é uma versão (estou dizendo de uma maneira grosseira porque há nuances) que, a meu ver, prolonga excessivamente essa idéia metafísica do que seja o ideal, fazendo com que ele exista no registro do funcionamento que não tem significação (porque é próprio da cadeia significante não ter significação), de uma marca que se oporia, digamos, ao registro imaginário, ao registro do prazer, ao registro dos investimentos, de uma maneira quase antagônica ou antinômica: do lado de cá eu tenho o ego investido da paixão narcísica, que é a paixão libidinal, que se apresenta como uma imagem, uma réplica, uma fotografia sob o modelo da imaginação que a gente tem e que é exclusivamente visual. Digamos que o ego é recheado, está encarnado, existe, é quase palpável, através dos desenhos, das apreensões que fazemos nos outros corpos. Enquanto o ideal do eu seria, simplesmente, uma marca significante, algo que pertenceria ao registro do simbólico, ao qual o sujeito se mediria, como sendo uma exigência que se imporia não obstante o próprio interesse libidinal. Haveria um automatismo do simbólico, da cadeia significante, que se imporia ao imaginário e faria com que a mônada narcísica se abrisse, definitivamente, para a falta no sujeito através de um ideal. Para mim, a pertinência desta hipótese, no que diz respeito a esse registro na psicanálise que conhecemos, que é mostrar que o ego apresenta o sujeito como completo e o ideal como incompleto, é evidente. Que ele é o vir a ser, algo que vem a ser, e cada vez que ele é ele deixa de ser ideal. Conseqüentemente, pode-se dizer que o ideal se apresenta quase como um ponto de fuga, como um horizonte de possibilidades que nunca é completo porque, quando eu completei, deixou de ser ideal. Isso desde sua gênese, desde que o pai investe o ideal que ele não sabe o que é e que ele quer que o filho cumpra. Por isso, esta marca da falta está aí – a marca da castração –, que é por onde circula o ideal, pelo que ele seria meio filho de Édipo, como Freud, aliás, coloca. Só que eu acho que, neste ponto de vista, corre-se um risco: para explicar o ideal você servir-se de um conceito do simbólico que aparece como heterônomo à própria produção do sujeito. Então, se a gente espreme, chega numa espécie de concepção do simbólico que, como Castoriadis acusava muitas vezes os lacanianos, traz para o campo da psicanálise a noção de heteronomia, que é a própria alienação segundo o marxismo, segundo todos os grandes pensadores. O ser humano produz uma coisa, depois essa coisa se volta contra ele e para ele como um fetiche, como qualquer coisa que não foi produzida por ele, e ele começa a se submeter aos seus efeitos, alienadamente, sem saber que veio dele. Sobre esse concepção do ideal eu tenha reservas, tenho críticas. Eu acho que os ideais são tão produzidos quanto as imagens egóicas, são tão imaginários uns quanto as outras; eu não posso entender o ideal que não seja encarnado na imagem, que não esteja embebido no imaginário. Até para concebê-lo como mutável historicamente, como produto humano, eu digo que ele tem de ter um pé no sentido e uma possibilidade de formulação.

PERCURSO: Isso seria o que retira do ideal a possibilidade de transcendência, de se tornar um modelo final, e que o deixa numa posição quase carnal, porque ele se torna possível, alcançável.
JURANDIR: Embora, cada vez que eu o alcance, já esteja produzindo outros ideais e aí por diante é o que historiciza. É o que faz com que, apesar de conceber a estrutura ego-ideal do ego como sendo uma realidade necessária para pensar a clínica ou o humano, coloquem-se os dois debaixo da lei da História, da produção humana. Não se pode ter dois pesos e duas medidas, que colocariam, de um lado, o imaginário egóico vindo do potencial biológico de apreensão visual e, do outro lado, algo que eu debito, contabilizo ao formalismo estruturalista, que é pura intelecção do mundo ou pura concepção do mundo segundo os teóricos. Contra isso eu digo que os ideais também são imaginários. Posso perfeitamente me imaginar diverso do que eu sou, uma coisa melhor do que eu sou, e isso não impede, absolutamente, que esse imaginário funcione como ideal. Acho também que o equívoco vem de uma concepção errada do que é a natureza da linguagem. Eu acho que existe uma confusão muito grande nestas discussões. Parte da confusão parte do pressuposto de que só a linguagem representa o ausente, só ela representa a falta, o que não é verdade, pois a imagem também representa. Trata-se de uma simplificação por conta do parti-pris de Lacan, que pegou Saussure e tomou aquilo como a verdadeira teoria da linguagem, sem desenvolver a parte do imaginário, que foi de onde Lacan começou. As fontes da noção de imaginário em Lacan são várias: Sartre, sem dúvida, é uma; outra, evidente, foram os psicólogos do comportamento como Köhler, Charlote Bühler, Wallon. Até o termo é de origem sartreana. E com toda crítica que também se pode fazer ao imaginário em Sartre, vê-se nele, claramente, que uma das funções da imagem é justamente representar o que não é – isto é, que ela define, que ela não é a coisa. Como é então que eu acho incompatível, que o ideal seja uma formação do imaginário? Não há uma boa razão, nem clínica, nem teórica, nem de nenhuma ordem. Ao mesmo tempo em que há um bom ganho, porque se “desmetaficiza” a psicanálise, por outro lado, ganha-se em não correr o risco de, mais uma vez, introduzir pela porta da cozinha o que se quis pôr para fora pela porta de frente, que é novamente a idéia de transcendência como heteronomia, como alteridade, como algo de natureza divina.

PERCURSO: Quer dizer que aí haveria uma quase materialidade do ideal do ego pela imagem. Mas nesse ideal imaginário, passível de ser medido pelas possibilidades do ego, onde entraria a solidariedade?
JURANDIR: Acho que se pode construir ideais de tolerância, ideais de pluralidade. Eu não aprendi isso dentro da psicanálise, mas hoje em dia eu estou revendo, procurando pistas no próprio Freud. O que aprendi, de todo modo, veio de fora mesmo, das reflexões de Claude Lefort, Merleau-Ponty e Marilena Chauí sobre o instituinte e o instituído, e de Hannah Arendt com as noções que ela tem da imprevisibilidade dos atos humanos, isto é, você não querer de antemão dizer o que é que é. Conseqüentemente, você cria dentro da sociedade a idéia de pluralidade, de direito à dissidência, de direito à desobediência. Isto está dentro desta filiação que coloca não se ter de predeterminar de antemão o livre jogo da comunicação dos interesses humanos, eles têm que ser uma abertura permanente. Essa tensão conflitiva é aquela do Ran, do qual você usou a imagem. Uma vez que eu perdi Deus para dizer exatamente o bem e o bom, de onde vem, qual é a verdade, qual é o belo, qual é o Bem, uma vez que eu não tenho mais estas garantias transcendentais na metafísica dos valores, na medida em que eu deixei de ser platônico, kantiano ou religioso, que seria uma forma, eu tenho esta angústia de começar, junto com as pessoas, através da discussão permanente, a encontrar saídas para aquilo que a gente define como humanamente útil. Se acabou a teleologia, o finalismo, eu não posso dizer que o homem é determinado, ele é imprevisível. Eu acho que existem condições humanas, para citar Hannah Arendt, e não natureza humana. Existem fatores que efetivamente me condicionam, mas sem jamais extrair essa possibilidade que eu chamaria de liberdade fundamental, que é essa capacidade de eu ser imprevisível, de eu exprimir, falar qualquer coisa, de agir de uma maneira que não seja, rigorosamente, dedutível do meu passado, nem das minhas circunstâncias. É isso que eu acho que a psicanálise dá: esse espaço da abertura, da surpresa. Pois justamente o sintoma é fechar esse espaço de possibilidade quando se tem a certeza sintomática. O que é que queremos? Acho que é uma sintonia entre o que a experiência analítica pode dar e o exercício da tolerância, que os filósofos políticos definem como sendo o que de melhor nós temos na herança ocidental. É dessa sintonia que alguma coisa se abriu na minha cabeça. Então eu acho que a construção dos ideais está historicamente submetida à relatividade dos nossos valores. Eu digo que os valores são relativos, mas eles têm de existir, eles têm de ser postos. Eles são construídos. Uma das suas dimensões é existirem para nós enquanto ideal do eu. Mas submetidos a essa lógica implacável e, ao mesmo tempo, felizmente eu acho, libertária, que é a da possibilidade de recriação permanente. As instituições de onde deriva a fabricação dos ideais são produções históricas, estão sempre sujeitas a transformações. Aí podemos fazer entrar todas as determinações que quisermos, desde que, a meu ver, não se abra mão dessa categoria radical da imprevisibilidade, da mutabilidade, da relatividade. É um pouco assim que eu tenderia a pensar a questão dos ideais de uma maneira mais ampla. Claro, se formos ao interior da teoria psicanalítica propriamente dita, mais estreita, teremos fatores complicadores. É evidente, a coisa não é plana.

PERCURSO: Acho que é um possível ideal seu de pensar a psicanálise.
JURANDIR: É nisso que eu gostaria de investir um pouco mais, ver se eu explorava. Eu vejo dentro da filiação freudiana alguma coisa que passa por aí, sobretudo em Introdução ao narcisismo, esse ideal existe enquanto imagem. Eu represento o sujeito como não sendo completo e é isso que vai passar para o filho, etc., etc. E esses ideais você vai ter de investir libidinalmente em imagens sociais existentes ou, se não são existentes, você inventa, mas com material humano. Algum dia alguém pode ter inventado o “ideal de vida hippie”. Embora não existisse, previamente, ainda assim ele é humano, ainda assim ele é formado por materiais existentes à disposição, imagens existentes. Não se cria a partir do nada, recombina-se, deduz-se o absolutamente novo na imaginação. Eu iria até a raiz latina para dizer que a imaginação é uma atividade e que esta, agire, significa dar início, principiar realmente aquilo que está em ruptura com o velho, aquilo que é o inesperado, não previsível. Isso que eu acho que é a imaginação. Em suma, eu penso que teríamos de fazer um novo esforço para repensar psicanaliticamente a noção de imaginário-imaginação.

PERCURSO: O próprio conceito tem esse momento em que ele é imagem, quer dizer, há um conhecimento pelas imagens, como Freud mostra em diversas passagens da Interpretação dos sonhos.
JURANDIR: Eu cheguei à conclusão de que estava sabendo muito pouco a respeito do tema da imaginação e do imaginário. Pretendo abordá-lo com mais detalhe. Em psicanálise, acho que é um tema atrofiado, que a gente está precisando rever. Você tem o imaginário que Lacan definiu e está disperso na obra, mas você precisa usar referenciais os mais diferentes possíveis. Eu acho que é um conceito que foi descartado muito rapidamente.

PERCURSO: Quase como um certo preconceito contra o imaginário.
JURANDIR: Deduziu-se do início da teoria do Lacan uma espécie de desprestígio do imaginário, mais ou menos igual à alienação que temos de ultrapassar, embora os três registros estejam imbricados, como ele dizia. E eu acho que não, que tem muita coisa a ser explorada, inclusive radicalizar esse empreendimento.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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