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ÍNDICE TEMÁTICO 
35
Revisitando o número 1
ano XVIII - 2° semestre 2005
177 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Resumo
Retomando o texto de 1988, este artigo trata das regras básicas de um processo analítico e reflete sobre as novas exigências que se colocaram à escuta do analista nas duas últimas décadas.


Autor(es)
Silvia Leonor Alonso
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise e professora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, onde coordena o grupo de trabalho e pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”.


Notas

1. J.-B. Pontalis, A força de atração, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991, p. 134.

2. P. Fédida, Clínica psicanalítica, São Paulo, Escuta, 1988, p. 54.

3. M. Moscovici, A sombra do objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 16-17.

4. D. Waisbrot, M. Wikinski, C. Rolfo, D. Slucki, S. Toporosi (org.), Clínica psicanalítica ante las catástrofes sociales. La experiencia argentina, Buenos Aires, Paidós, 2003.

5. P. Fédida, “Comunicação, transferência e contratransferência”, in Comunicação e representação, São Paulo, Escuta, 1989.

6. Duas interessantes situações de trabalho de construção podem ser encontradas nos seguintes textos: C. e S. Botelha, O irrepresentável – Mais além da representação, Porto Alegre, Criação Humana, 2002, cap. 1, e S. Toroposi, “Duelos em crianças afetadas pela catástrofe social na Argentina. A pequena Ana”, in em Berezin, A. (org.), 13 Variações sobre a clínica psicanalítica, Buenos Aires, Siglo XXI, 2003, p. 194-215.

7. S. Lê Poulichet, El arte de vivir em peligro. Del desamparo a la creación, Buenos Aires, Nueva Visión, 1996.

8. S. Freud, “Analisis terminable y interminable”, in Obras completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1993, v. 23.

9. Figurabilidade é o trabalho psíquico na vida acordada que guarda uma semelhança com o trabalho onírico, na medida em que segue um caminho regressivo que acaba numa percepção interna.

10. M. Schneider, “O tempo do conto e o não-tempo do inconsciente”, apostila do Departamento de Psicanálise.

11. J.-B. Pontalis, op. cit, p. 36.



Abstract
Starting from where she had left the problem in 1988, Ms. Alonso stresses the importance of floating attention and free association in creating room for interpretable language. Under this apparent liberty – apparent, because of the unconscious determinants on both sides of the analytical couple – language flourishes in its polysemic dimensions, opening the way for something more than just self-knowledge: transformation, symptom-reduction and desalienation.

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 TEXTO

O trabalho da figurabilidade na escuta psicanalítica

The work of figure-making in psychoanalytic listening
Silvia Leonor Alonso


Não poderia escrever este artigo sem situá-lo nas circunstâncias de sua produção. Quando os colegas do Conselho Editorial da revista me comunicaram a idéia de publicar novamente os textos do primeiro número da Percurso, acrescidos de alguns comentários de cada autor sobre o tema, fui relê-lo e, como não é difícil imaginar, muitas recordações vieram à tona.

Corria o ano de 1988, e três anos antes tínhamos fundado o Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, instituindo assim uma associação de analistas que abria um novo espaço de formação permanente para os que até o momento faziam parte – seja como professores, alunos ou ex-alunos – do curso de psicanálise que existia desde 1976. Fundar uma revista era mais um passo de grande importância num diálogo que ganhava cada vez mais consistência entre os colegas de dentro da instituição e com aqueles de fora dela. Através da lembrança de trechos de discussões, anedotas, momentos de humor e outros de preocupação, fui revisitada por aquele prazeroso processo de trabalho de grupo que culminou na fundação da revista e na publicação de seu primeiro número. Tínhamos claro que desejávamos encabeçar uma publicação que encarnasse as idéias que nos norteavam como analistas no projeto institucional, algumas das quais foram explicitadas no editorial daquele primeiro número: propúnhamos a revista como suporte de uma tessitura onde fios de diferentes escritas se cruzassem, onde textos de diferentes origens pudessem dialogar visando o avanço da psicanálise. E sabíamos que, para que isso pudesse ocorrer, ela deveria acolher autores livres de uma relação dogmática com suas filiações e com os pensamentos que defendiam, autores para os quais a escrita não assumisse a função de contra-senha visando meramente a reafirmação de pertinências. Ao contrário, ela deveria dar palavra àqueles que se dispusessem a trabalhar nas bordas da teoria e da clínica, e para os quais a escrita não servisse como reafirmação do já sabido, e sim como uma abertura para o diálogo.

Ao reler o número inaugural da revista, encontrei textos de forte pregnância clínica, e isso num momento no qual pouco se escrevia entre os analistas do meio. São textos que trazem em si a força do acontecimento, talvez por terem sido todos escritos num segundo momento, tendo existido em princípio como falas pontuais.

Dezessete anos se passaram da fundação da revista, vinte da fundação do Departamento. Hoje, pode-se dizer que ele está passando por um momento de grande fertilidade, com importantes produções em todos os setores. Temos muito a comemorar. Os números da Percurso ficaram mais grossos, os textos mais longos, mais densos em informações e argumentações. E, ao lado dessas transformações, é possível constatar que os princípios norteadores da fundação da revista se mantêm.

Assim, a idéia do Conselho editorial de que cada autor avançasse um pouco na reflexão do tema dos artigos originais me pareceu muito interessante. Pois afinal das contas, como afirma Pontalis, o que o autor e o leitor esperam obter de um escrito psicanalítico “não é, como no caso do escrito científico, uma verdade conclusiva, nem mesmo um fragmento único de verdade, mas a ilusão de um começo sem fim” [1].

Condições necessárias de uma análise


No que se refere ao tema da escuta analítica, o que escrevi em 1988 mantém sua atualidade, o artigo original consistindo basicamente na enunciação das condições e regras básicas de um processo analítico. Acredito que, embora com outras palavras, essas idéias devam ser aqui reafirmadas.

Em cada análise o analisando nos procura a partir de seu sofrimento, para o qual busca alívio. Por vezes, ele chega também “mordido” pelo caráter enigmático desse sofrimento, que desejaria compreender. Assim, ao nos procurar, ele nos torna decifradores de enigmas, portadores de um saber sobre as causas desse sofrimento, sustentáculos de uma crédula espera de transformação.

São a atenção flutuante do lado do analista e a associação livre do lado do analisando que criam um espaço possível de interpretação, retirando a linguagem de sua função comunicativa, e tentando devolver-lhe sua possibilidade de desdobramento. Na associação livre, a fala caminha na direção daquilo que a excede, ampliando-se ao situar-se fora da censura daquele que fala e daquele que escuta.

Nesse campo de aparente liberdade (pois sabemos que não é isso exatamente que ocorre, dada a força das determinações inconscientes), quando se devolve à fala a possibilidade de sua abertura polissêmica, o infantil – que é sempre sexual – põe-se a brincar, desenhando formas de fala que ressoam na escuta do analista formando figuras; algo é assim dito a um destinatário que, na transferência, mostra-se constituído na mescla da presença e ausência.

Em cada momento, a fala diz. Diz com sua forma, diz no seu esvaziamento depressivo, na sua agilidade dos instantes de euforia, na fertilidade das situações de transferência positiva; mas também diz ao se paralisar na inibição, ao se enroscar nos momentos repetitivos da neurose, ou ainda ao se esterilizar pela raiva ou pela tristeza, ao se tornar fugidia na tentativa de evitar a angústia, ou mesmo quando se enrijece na impossibilidade de mudança. Em certos momentos, ela também abre brechas na produção de lapsos, nas associações despertadas por um sonho, em seus pequenos tropeços que revelam conteúdos e formas de funcionamento do inconsciente. Como afirma Fédida, ela recria sentidos no exercício de sua dimensão poética, a situação do tratamento tentando devolver à palavra sua “função de metáfora”: “não a poesia, mas a poética, no sentido da poiésis grega... a recriação constante de sentido” [2].

O analista não responde às solicitações concretas do analisando, mas dispõe-se a acompanhá-lo, oferecendo-lhe uma escuta com capacidade de ressonância que possa acolher suas intensas vivências afetivas, e na qual ecoem os seus “quase nada”, cheios de sentido. A capacidade de acolhimento da escuta do analista permite que o analisando vá criando confiança para entregar-se à associação livre, propiciando que a fala comunicativa se abra, recolhendo fragmentos que até esse momento tinham permanecido esquecidos ou desarticulados, descartados ou renegados. Enganchando- se agora, a um movimento da pulsão, eles recobram sua força de sentido e voltam a circular, permitindo que o poder metaforizante da palavra os transforme. A palavra não só diz, mas transforma.

A presença paciente do analista, conjuntamente com sua “aposta” – seu investimento na possibilidade de transformação –, vai possibilitando que o analisando construa em si próprio a capacidade de permanecer em contato com seu mundo de fantasia e, a partir dos pequenos restos, construa sentidos.

Sabemos que nem sempre é com leveza que tudo isso acontece. Ao contrário, cada avanço num processo de análise deve ganhar terreno sobre os próprios recuos. Como afirma Marie Moscovici [3], seja do lado do divã, seja do lado da poltrona, estes estão inevitavelmente presentes, o que a leva a comparar o processo de análise com o comportamento do salmão, que na época da desova sobe o curso das águas na direção das nascentes, em contracorrente, no sentido inverso da queda das cascatas, dando saltos quase impossíveis, alçando-se em incríveis vôos para vencer a “força-contra”. No entanto, embora haja necessariamente essa força contrária a vencer, o prazer é imprescindível. De fato, se no processo de análise não houver prazer, se o analista não puder investir prazerosamente a descoberta do desconhecido, tampouco o analisando poderá fazê-lo, o que certamente impedirá o avanço do curso analítico. Será então entre o prazer e a resistência que o analista irá exercer sua função de escuta, condição que denota claramente a importância fundamental da supervisão em todo esse processo.

Notemos ainda que a dimensão terapêutica está sempre presente no horizonte do analista. A análise não se restringe ao processo de auto-conhecimento, nela se pretendendo mudanças, transformações, a redução de sintomas. Assim, se de um lado o analista não deve jamais ser tomado pelo furor curandis (o que poderia levá-lo a oferecer antecipadamente ao analisando sentidos cuja eficácia viria apenas do poder de sugestão), de outro não se deve esperar dele que se mantenha alheio ao aprisionamento do analisando numa interminável repetição. Quando uso aqui o termo “horizonte”, não pretendo dizer que a transformação seja uma meta a ser alcançada apenas no final do processo de análise, o que inclusive poderia levantar objeções sobre a demora que demandaria tal transformação. Não; a transformação está presente em cada sessão e desde o começo, desde as entrevistas iniciais. Aliás, é preciso salientar que as transformações acontecidas em uma análise são de diferentes ordens: elas incluem desde efeitos catárticos até insights, passando pelos efeitos de confiança, reconhecimento mútuo, aposta do analista, investimento crédulo do analisando no trabalho ou aquelas vinculadas ao fato de se ter um novo destinatário para a fala ou ao reconhecimento de se estar investindo no cuidado da própria vida psíquica.

Num processo de análise, a transformação não é só do analisando, é também do analista. Em cada análise defrontamos com o limite, tanto do saber teórico quanto do saber sobre nós mesmos. E se um analista não se dispuser a encontrar-se com o desconhecido nele próprio, e desta maneira transformar-se, poderá converter a análise numa mera aplicação da teoria, ou então numa prática confessional, também privada de qualquer potencial de transformação. Cada processo de análise abala as referências do próprio analista, e faz com que ele encontre o estranho em si mesmo E é sua própria análise pessoal que poderá conectá-lo com as fontes da mobilidade psíquica necessária à ressonância de sua escuta.

O analista escuta a partir do lugar de transferência. Ser suporte da transferência permite acompanhar as repetições, não para explicá-las ao paciente (o que não teria efeito algum), mas sim para deixar-se tomar por ela, e do seu interior fazer um deslocamento que é em princípio um deslocamento subjetivo do analista, deslocamento que poderá ser transmitido ao analisando com uma palavra, um gesto, ou por vezes mesmo através do silêncio.

Figurações do lugar do analista

Sabemos que, no desenvolvimento da obra freudiana, várias figurações do lugar do analista na escuta foram se fazendo presentes, algumas das quais apresentamos a seguir.

O analista arqueólogo, historiador, arquivista, surge da insistência de Freud no trabalho sobre a rememoração, visando desfazer os efeitos da amnésia infantil e preencher as lacunas da memória. Essa proposta manteve-se até os textos tardios, mas foi revelando seus limites ao longo da sua obra. Na Psicoterapia da histeria, por exemplo, o material psíquico aparece ordenado numa tripla estratificação – ordenamento cronológico, temático e por grau de resistência – e o analista realiza essencialmente um trabalho de busca de cada situação traumática, como quem pesquisa num arquivo. Apesar do lugar de inegável destaque que esta figura ocupa no texto de Freud, não podemos esquecer que o tempo da ressignificação também é enunciado por ele numa etapa bastante precoce de seu trabalho. O “só depois” já aparece no Projeto de uma psicologia científica, e a teoria da memória como re-transcrição pode ser encontrada na “Carta 52”.Assim, fica difícil sustentar a idéia daquela ordenação ao lado da concepção de uma memória que não é uma memória-arquivo e sim uma memória viva, em movimento e feita de pequenos fragmentos re-significados no tempo. De qualquer forma, a imagem do arqueólogo que encontra os fragmentos preservados das experiências infantis, ou que reconstrói o que existia a partir das marcas deixadas (será pelas marcas deixadas no chão que se poderá saber quantas colunas havia, assim como sua altura na construção original, dirá Freud em “Construções em análise”) é uma metáfora que reaparecerá no decorrer de toda a obra de Freud.

Uma segunda figura, aquela do analista decifrador, irá tomar força a partir de Interpretação dos sonhos (1900). Aqui, o analista ver-se-á colocado diante de um texto enigmático, o conteúdo manifesto do sonho, que por efeito do trabalho de deformação onírica, do deslocamento e da condensação, aparece como uma mensagem cifrada que precisa ser desvendada. Como sabemos, essa concepção de deciframento de textos enigmáticos irá se estender ao sintoma, passando a se constituir em tarefa central do trabalho analítico.

É a partir de Dora que se fará presente uma nova figuração desse lugar de escuta do analista. De fato, quando a transferência deixa de ser um fenômeno periférico para ocupar o lugar primordial numa análise, o analista irá se converter, segundo as palavras de Pontalis, num destinatário- transitário, quase um resto diurno, capturado na migração das pulsões, das representações das experiências vividas. O analista é agora o destinatário de toda palavra na transferência, o lugar central ao redor do qual se montam os circuitos de repetição, que possuem como alicerce a pulsão. Não por acaso, para descrever como o paciente age suas paixões – o amor e ódio presentes na transferência – Freud irá lançar mão do exemplo da novela Gradiva, texto no qual encontramos o personagem do arqueólogo tomado por uma história de amor, e que é acompanhado por sua terapeuta Zoe na aventura de dar corpo à feminilidade, caminho no qual avança entre os vestígios e as ruínas, interpretando, construindo, ambos movidos a Eros.

O conceito de transferência ganha uma crescente complexidade com suas várias fases – sugestão, resistência e repetição –, passando a ser considerada o campo no qual se joga o jogo analítico. Evidentemente, esse jogo irá sempre incluir o analista, que verá um diferente colorido ser conferido à sua escuta a partir dos novos sentidos assumidos pela repetição. Em Mais além do princípio do prazer (1920) encontramos uma dimensão bem mais estranha e demoníaca. Aqui, o que se repete no automatismo de repetição é o que não está escrito. Fundamentalmente, o que se encontra em jogo é a pulsão de morte, onde a repetição e a ação tomam o lugar da fala e da rememoração. Isso irá construir um outro lugar para o analista, lugar descrito na afirmação de Fédida de que “tem analista onde falta a palavra”.

Como já notamos, em grande parte de sua obra Freud afirmou que analisar é rememorar, tornar consciente o inconsciente, lembrar as vivências e os afetos por elas provocados. Trazer à tona o recalcado através dos restos dos sonhos das associações, permitindo a aparição de afetos sufocados através das repetições na transferência. No entanto, no texto de 1937, “Construções em análise”, ele irá relativizar a importância da lembrança, dizendo que por vezes não há lembrança, e que a “convicção” seria capaz de provocar um efeito análogo ao dela. Reconhece também a existência de um passado anterior à linguagem, e que só poderia voltar enquanto alucinação. Aqui, portanto, a escuta do analista deve se mostrar disponível para o que não está escrito, abrindo-se para o mundo do irrepresentável, que doravante será seu objeto. A construção e o delírio passam a ser vistos como dotados do mesmo poder de convicção, proveniente da verdade histórica vivencial. E, apesar de Freud inicialmente evocar uma narrativa como exemplo de construção, o desenvolvimento do texto permite compreender que na verdade a construção poderia ser mais bem descrita como uma imagem capaz de movimentar a pulsão. A construção faz com que algo antes existente apenas enquanto inscrição sensorial passe a poder desenhar uma figura.

Presenciamos assim uma ampliação do campo de escuta, ampliação que não ocorre pelo abandono das concepções anteriores. Pois é claro que o que funciona no interior da ordem do princípio do prazer vai continuar sendo trabalhado, e que o trabalho de desconstrução daquilo que surgiu como formação inconsciente enquanto efeito do recalque irá permanecer como objetivo da análise. Mas agora passa a ser necessário também acolher o “mais além”, para poder se fazer face ao irrepresentável.

A história se põe em jogo na transferência. Enquanto os analisandos vão contando as estórias, ambos, analista e analisando, reescrevem a história que se apresentava deformada pelo processo do recalque, reescrevendo seus silenciamentos e camuflagens. Mas ao mesmo tempo também se escreve nos buracos nos quais nada havia sido escrito, desde que seja empreendida a construção de uma superfície na qual essa escritura seja possível. Pois o “espaço da borda” – no qual podem ser produzidos sonhos, brincadeiras, atividades criativas, recursos com os quais se enfrentar experiências traumáticas – é por vezes bastante precário, ou mesmo inexistente, sendo assim necessário favorecer sua construção durante o próprio processo analítico.

Algumas mudanças das últimas décadas

Nas duas últimas décadas presenciamos o surgimento de algumas mudanças que devem ser apontadas.

Do lado do analista, embora não se possa afirmar que os dogmatismos tenham sido erradicados, ou que os fechamentos de grupos ou a psicanálise de escola tenham deixado de existir, nota-se que um número crescente de analistas circulam por diferentes corpos teóricos, encontrando nos entrecruzamentos de teorias – o que deve ser diferenciado do ecletismo – um lugar de escuta mais fértil para deixar ressoar a diversidade de fenômenos clínicos.

Do lado dos analisandos tornaram- se cada vez mais presentes algumas novas formas de sofrimento, entre as quais predominam problemáticas ligadas ao desamparo, ao excesso e ao vazio.

No que se refere ao contexto mais geral em que a psicanálise se move, nota-se o surgimento de uma série de novas resistências contra ela, ligadas ao predomínio da urgência, da velocidade, da eficácia e da funcionalidade enquanto valores soberanos do mundo contemporâneo. Os princípios teóricos da psicanálise têm sido bastante questionados, a partir desses valores que, ao favorecer modos de vida e sociabilidade pouco propícios ao cultivo da interioridade, acabam criando nos indivíduos uma menor capacidade de suportar as tristezas e angústias, o que resulta numa maior predisposição a atuações. Lembremos ainda as críticas à psicanálise ligadas à crescente medicalização dos sintomas, e sua oferta à população como saídas miraculosas e infalíveis para qualquer forma de sofrimento. Consideramos essencial o diálogo entre analistas sobre essa transformação das formas de resistência à psicanálise, sem o que sua escuta correria o risco de se esterilizar numa atitude meramente defensiva.

Indissoluvelmente ligada às especificidades de nosso mal-estar contemporâneo, a clínica atual depara- se todo o tempo com a tensão resultante da radicalização de um embate entre o que poderíamos descrever, por assim dizer, como duas formas da pulsão. De um lado, certamente ainda encontramos manifestações daquela pulsão que procura se satisfazer buscando o prazer adiado, regido pela ordem do princípio do prazer, pulsão ligada e articulada no mundo da fantasia, tendo o desejo como fio de ligação. Mas de outro, é numa progressão surpreendente que em nossas clínicas constatamos as marcas de uma vida pulsional caracterizada pela busca do gozo absoluto, na imediaticidade de um objeto, num tempo impostergável: impulsões, paralisias de pensamento, patologias de ato, violências autodestrutivas são os efeitos cada vez mais marcantes dessas condições.

É com cada vez mais freqüência que recebemos como analisandos pessoas vivendo situações de extremo desamparo, ameaçadas com o risco de desorganização do eu. Sujeitos vivendo um sexual sem medida, sem distanciamento nas suas relações com os outros. Buscando lidar com tais condições, alguns tentam preencher o buraco do desamparo com objetos de compulsão, outros fabricam uma couraça que substitui o corpo pulsional. Todos precisam construir na análise a possibilidade de uma separação do corpo próprio e do Outro primordial, organizando estratégias de sobrevivência para fazer frente aos repetidos traumatismos da infância. Também temos deparado cada vez mais com sujeitos de sofrem ou sofreram violências devastadoras em seu cotidiano – entre outras, roubos e seqüestros – tendo de se haver com seus efeitos desubjetivantes. Ainda é preciso assinalar as freqüentes ocasiões nas últimas décadas em que intervenções de analistas têm sido solicitadas junto àqueles que receberam o impacto de catástrofes sociais: situações de avassalamento subjetivo como o terrorismo de estado ou os atentados terroristas, que não necessariamente remetem a uma falha prévia, mas nas quais uma positividade até então existente se desvanece por efeito da irrupção do traumático [4].

Esse conjunto de situações tem exigido dos analistas um esforço de reflexão a respeito da “metapsicologia dos processos psíquicos do analista na escuta” para retomar uma expressão cunhada por Fédida [5] a partir dos escritos de Ferenczi sobre a elasticidade da técnica. Entre as muitas interrogações que o tema tem levantado, iremos destacar duas: Qual o funcionamento psíquico exigido do analista quando se trata do irrepresentável? Como se colocar frente ao excesso do traumático para criar condições que permitam reconstituir o invólucro que se fragmentou e precisa ser reconstruído?

As respostas dos analistas a essas questões têm sido convergentes em alguns pontos: 1. Quando não há conflito intrapsíquico, o trabalho de interpretação visando desfazer ligações e estabelecer outras não é possível. 2. Quando o eu encontra-se numa estado de extrema vulnerabilidade, não se podem interpretar ambivalências e ódios contra o objeto. 3. Quando em lugar da memória há pesadelo, quando o que temos são apenas índices ou fragmentos de algo visto ou ouvido na cena traumática, elementos sem caráter propriamente simbólico e que permaneceram sem contextualização, a “construção” se faz necessária [6].

Assim, quando não se trata de desconstruir o sintoma construído pelo recalque e seu fracasso que provoca o retorno do recalcado, mas sim de construir psiquismo, bordas de eu, muitas questões se colocam ao analista, tanto sobre o seu lugar na escuta como em relação a sua forma de intervenção. Quando faltam bordas de corpo e bordas de eu, é preciso construí-las. No dia-a-dia, vários fenômenos cada vez mais recorrentes atestam essa necessidade de construir bordas corporais, como por exemplo a frenética busca das plásticas, a glamourização das marcas do corpo – tatuagens, piercings – às vezes certas condutas automutiladoras. Da mesma forma, a incorporação dos objetos derivados – comida, droga, jogo – indicam a tentativa de construir bordas de eu.

Frente à falta de mecanismos de pára-excitação, que deixam o sujeito entregue a excessos impossíveis de serem metabolizados, muitos analistas têm ultimamente afirmado que algo deve acontecer pela via di porre e não pela via di levare. E, embora tal afirmação pareça totalmente aceitável, ela certamente nos recoloca diante do impasse com o qual Freud deparou desde o início, o do fantasma da sugestão: como agir pela chamada via do porre sem converter uma análise num mero procedimento de caráter sugestivo? Quando se trata do “princípio do prazer”, pode–se funcionar ressignificando as marcas da história; mas quando de certa forma a temporalidade foi “perdida”, quando não há passado e tampouco projeto de futuro, é preciso que o processo analítico funcione como um modelo de história, a partir do qual se crie a possibilidade de construir esse projeto. E esse trabalho deve ser realizado no interior do campo da transferência, campo no qual se joga o jogo, permitindo que as relações com os objetos arcaicos se recriem, se reinventem.

Alguns analistas têm insistido no lugar da regressão tópica onde o analista deveria funcionar para poder formular tal construção, regressão que o levaria ao limite do mundo da representação, propiciando o surgimento de uma imagem, quase uma alucinação que ele então coloca em jogo, entrega para o analisando. Essa imagem teria o poder de imantar as forças pulsionais sem representação, antecipando assim formações pré-conscientes capazes de um dia atrair outras representações. Tal estado regressivo do analista propiciaria portanto a aparição de uma figura capaz de atrair o que até esse momento se expressava meramente no plano sensório, e que passará doravante a ocupar o lugar de representação-fronteira, colocando um limite ao desamparo radical da perda da representação.

Outros têm insistido na importância da mobilidade psíquica do analista, assim como no papel fundamental da criatividade e do humor quando se trata de pôr em jogo um processo de elaboração psíquica que metamorfoseie o eu, instaurando um novo lugar psíquico reorganizador do tempo e do espaço, a partir de uma primeira forma de sublimação [7]. Esse processo visaria gradativamente recortar o gozo, criar bordas para o vazio, encontrar ancoragem para as pulsões, permitindo assim o surgimento de uma primeira forma de sublimação que atenue os efeitos do fracasso do recalque originário.Para estes indivíduos que vivem sempre ameaçados por um Outro todo-poderoso que pode aspirá-los e converter o sujeito em nada, talvez o jogo transferencial com um analista que possa suportar o vazio, criando-lhes a confiança de que não serão objeto de canibalismo de um festim narcísico, talvez o trabalho com um analista que não se antecipe na outorgação de sentidos, possa propiciar a criação de figuras nos buracos produzidos por aquilo que não entrou na história.

A inclusão do novo e a importância da figurabilidade

A inclusão do novo é certamente uma das problemáticas fundamentais da psicanálise. Mas de que novo se trata? É no texto “Análise terminável e interminável” [8] que Freud se refere à inclusão do novo numa análise, usando o termo “neo-criação”, para descrever a produção de um estado que nunca existiu no interior do eu, e que se conseguiria com a retificação com posterioridade do processo de recalque. Tal processo colocaria fim ao hiper-poder do fator quantitativo da pulsão, afirmação que demonstra sua preocupação com a relação entre a robustez da pulsão e a robustez do eu. Vemos então aqui a presença de um novo remetendo à relação entre as instâncias, mas também discernimos a presença de um novo que se refere ao surgimento de inscrições ali onde antes não se encontravam, o que irá criar uma superfície na qual se possa escrever, criar psiquismo, imprimir impressões inéditas, construir-se bordas para o eu.

O trabalho da figurabilidade [9] é fundamental para a inclusão do novo no psiquismo. No seu belo texto “O tempo de sonho e o não tempo do inconsciente”, Monique Schneider mostra o efeito que o conto pode provocar em crianças vivendo situações de extremo desamparo. Nesses momentos, o conto oferece condições de figurabilidade que permitem reconstruir a trama devastada pela intrusão do traumático. O conto serve como objeto intermediário para reorganizar a categoria temporal, reorganizando os movimentos do desejo que propiciam a inclusão do novo. Por exemplo, no momento do nascimento de um irmão, uma criança pode sofrer uma incisão na temporalidade que até esse momento era vivida como indivisa.O novo – o aparecimento do irmão – não pode ser incluído por colocar em jogo uma situação de perda, onde a criança vê de repente desaparecer sua tranqüilidade em relação ao amor paterno. Esta pode ser considerada uma situação paradigmática das situações de desamparo intenso, de falta de nexos necessários para incluir o novo. É possível, então, a partir da figurabilidade do conto, construir um tecido psíquico que vá criando espaços possíveis para tal inclusão. É nesse sentido que a autora analisa o conto dos cisnes, mostrando cada um dos movimentos que vai na direção da regressão temporal, na direção da temporalidade indivisa oposta ao tempo-seqüência, através dos quais a menina protagonista do conto se faz artesã do que antes apenas sofria na confusão por uma perda inexplicada. É necessário – dirá a autora –, “inserir o acontecimento numa espécie de cosmogonia privada” [10]. Esse texto oferece uma descrição realmente fina e precisa do trabalho de figurabilidade, realizado num necessário movimento regressivo, movimento de volta ao não-tempo do inconsciente, visando a retomada do caminho para a temporalidade seqüencial. De forma semelhante ao conto, na construção, a figura oferecida pelo analista pode funcionar como uma ponte intermediária entre a invasão pulsional desorganizadora e o mundo da representação.

Em outras situações nos encontramos com o desamparo produzido pela falta de representações, situações em que predomina o excesso de excitações pela inexistência de nexos de ligação. Também aqui a figurabilidade tem uma função fundamental quando se trata de tentar recortar o excesso de pulsão, quando da realidade material restou só impressão sensorial, quando os cheiros, os barulhos, os flashes de luz deixaram marcas na forma de traços sensórios, mas falta figura. Quando nos defrontamos com pedaços da realidade que permaneceram como puros elementos sensoriais sem alcançar o caráter de representação psíquica.

Nessas situações nossa função de intérprete não tem lugar. Como afirma Pontalis, “quando se quebra o tecido de imagens (...) o intérprete não tem mais nada então a dizer: ou ele conserta o tecido ou, confiando na paciente tecelagem artesanal que se chama ‘perlaboração’, espera que da catástrofe nasça um enredo que não seja mais uma catástrofe” [11].

Se em tais casos não há um conteúdo latente a desvendar atrás de um manifesto, faz-se necessário promover pré-consciente. Nós, analistas, concordaríamos que nessas situações nossa capacidade de figurabilidade será fundamental, já que é através das figuras oferecidas pelo analista ao analisando que poderá ser constituída uma borda à “lacuna”, termo com que Freud se referia ao irrepresentável instaurado pelo traumático. Tal figura, repetimos mais uma vez, irá atuar como “representação- fronteira”, conceito que pode ser encontrado no manuscrito K, e no qual podemos reconhecer uma forma embrionária do que bem mais tarde – quase 20 anos depois – Freud irá descrever através do conceito de recalque primário.

A clínica cotidiana exige cada vez mais do analista que ele se desloque daquilo que é regido pelo princípio do prazer – e que pertence ao recorte da pulsão, produzindo sintomas, sonhos, sentidos, onde o trabalho de desconstrução no tempo da ressignificação é possível – para aquilo que se encontra fixado, inamovível, sem representação e sem tempo, fazendo-se presente no traumático. Em ambos os casos, a sua escuta paciente, sensível e ressoante é o instrumento com que conta. Escuta atenta às armadilhas que a ameaçam, e que se consegue através da análise pessoal, de um saber em permanente transformação e da circulação das reflexões com os colegas sobre as formas sempre mutáveis sob as quais a resistência à psicanálise se apresenta.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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