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ÍNDICE TEMÁTICO 
35
Revisitando o número 1
ano XVIII - 2° semestre 2005
177 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Resumo
O autor volta a discorrer sobre o tema da formação psicanalítica, retomando o debate proposto em seu artigo no número de estréia de Percurso.


Autor(es)
Bernardo Tanis
é doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e dos departamentos de Psicanálise e Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Circuitos da solidão entre a clínica e a cultura (Casa do Psicólogo) e Memória e temporalidade, sobre o infantil em psicanálise (Casa do Psicólogo).


Notas

1 Este texto foi escrito a partir de um trabalho apresentado na mesa redonda: “A formação em questão”. Promovida pelo Departamento de Formação em Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae em 14/05/2004.

2. B. Tanis, ”Considerações sobre a formação psicanalítica”, Percurso n.1

3. M. Enriquez, “On forme un analyste”, Nouvelle Revue de Psychanalyse, nº 20, Paris, 1979; J. P. Valabrega, A formação do psicanalista, Martins Fontes, São Paulo, 1983; F. Roustang, Un funesto destino, Premia, México, 1980, e O. Kernberg, “A concerned critique of psychanalytic education”, Int. J. Psychoanal. (2000) 81, p. 97 entre muitos outros.

4. Sugiro a leitura de M. P. Favilli, ”Transformações do analista no setting: Não estamos mais num só lugar – até onde podemos chegar?”, Rev.Bras.Psica, vol. 32, n. 4, 1998.

5. Muito se escreveu sobre este tema nas últimas décadas; remeto o leitor aos clássicos trabalhos de F. Jameson, G. Debord, A. Guiddens, Z. Bauman e G. Lipovesky para citar apenas alguns dos principais autores que descreveram e analisaram essas transformações.

6. O leitor poderá encontrar uma discussão sobre o assunto e sua relação com a clínica psicanalítica em B. Tanis, “A solidão o mal-estar e a psicanálise” Jornal de Psicanálise, vol. 36, n. 67, 2003.

7. J. Birman “A psicanálise e a crítica da modernidade” in R. Herzog (org.), A psicanálise e o pensamento moderno, Rio de Janeiro, Conta Capa, 2000.

8. S. Freud, “Pueden los legos ejercer el análise?”, in Sigmund Freud, Obras completas, Buenos Aires, Amorrortu, 1986 (1926), p. 205.

9. A. Guiddens. “A vida em uma sociedade pós-tradicional”, in Modernização reflexiva, São Paulo, UNESP, 1995.

10. Idem, p.80.

11. R. Mezan, “O Bildungsroman do psicanalista” in A sombra de Don Juan, São Paulo, Brasiliense, 1993, p. 155.

12. Vários analistas vêm assinalando a importância deste item.

13. Ver “Psicoterapia: Mal-estar na psicanálise”, Jornal de Psicanálise, 1999, vol. 32.

14. Sobre a contribuição da universidade ao desenvolvimento da psicanálise ver: R. Mezan. “Psicanálise e pós-graduação: notas, exemplos e reflexões” in R. Mezan Interfaces da psicanálise, São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

15. N. da Silva Jr., “Psicanálise: uma titulação, uma especialização,uma profissão?”, texto apresentado em jornada interna do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae (março, 2004).



Abstract
Commenting on his 1988 piece, the author stresses the limits of medical discourse in face of the modern malaise, because it does not take into account the subjective dimension. Psychoanalysis is a child of modernity, in that it divests ego and reason of their supposedly sovereign condition. Its practice involves ethical and epistemological aspects, exemplified in the paradoxes that face our main thinking tool – interpretation. Mr. Tanis also addresses contemporary issues that surround Psychoanalysis in Brazil, such as its relation to the University and the difficulties of doing research in our field.

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 TEXTO

Considerações sobre a formação psicanalítica:

desafios atuais [1]


Thoughts on the training of an analyst:
challenges of today
Bernardo Tanis


Gostaria de agradecer à Comissão Editorial da Revista Percurso pelo estimulante convite, oferecendo-me a oportunidade de participar deste número comemorativo; debruçar-me novamente sobre o tema da formação analítica, e, mais especificamente, neste espaço, é para mim motivo de alegria e responsabilidade.

Embora o tema da formação analítica ter sido extensamente abordado não me parece estar exaurido. Pelo contrário, por ser gerador de polêmicas, debates e cisões no movimento psicanalítico, considero que cada nova geração de analistas o recupera e vê-se solicitada a ressignificá-lo à luz dos desafios que a mutante realidade impõe.

No meu primeiro texto sobre o assunto, Considerações sobre a formação psicanalítica [2], publicado no número inaugural da revista Percurso, o leitor encontrará uma discussão da especificidade da formação do psicanalista e uma reflexão sobre a importância e as armadilhas do clássico tripé: análise, supervisão e estudo teórico, assim como importantes referências [3] históricas sobre o assunto em pauta. Vários anos passaram-se desde sua publicação (1988), e, no entanto, ainda me reconheço nas inquietações e idéias nele desenvolvidas. As transformações no campo, assim como meu percurso ao longo destes anos, me conduz hoje a ampliar o espectro da discussão.

Não farei uma apresentação exaustiva e histórica do tema; meu interesse é apenas mapear, à luz do atual contexto histórico-cultural, alguns pontos que possam balizar futuras reflexões cada vez mais necessárias para o presente e futuro [4] da psicanálise. Meu texto é fruto do trânsito e convívio em diferentes instituições psicanalíticas e acadêmicas, assim como da minha experiência pessoal a partir dos diferentes lugares que, como psicanalista, tenho ocupado ao longo destes anos. Para além de palavras de ordem, já desgastadas, aponto para um diálogo aberto sobre questões que demandam nossa atenção.

Constato que hoje nos vemos às voltas não só com clássicas questões sobre a particularidade da formação de analistas que, sem dúvida, merecem nossa atenção, mas também com novas configurações do campo psicanalítico em particular e da área psi em geral. Penso que o diálogo e o debate são fundamentais neste momento, pois, a meu ver, as significativas transformações da subjetividade e os impactos culturais e econômicos que vêm ocorrendo nas últimas décadas [5] solicitam uma reflexão ampla e corajosa [6], sem a qual não poderíamos encarar os desafios com os quais nos defrontamos e que aguardam as futuras gerações de analistas.

Isso nos impõe um esforço redobrado. Assim, como deus Jano, dirigimos nosso olhar para duas frentes: em primeiro lugar para o resgate da singularidade da psicanálise como teoria, como método de pesquisa da cultura e como modalidade de intervenção clínica, e, em segundo lugar, para a contextualização do lugar da psicanálise na sociedade atual, seja no âmbito das práticas clínicas em geral – psiquiatria, psicoterapias –, seja no universo acadêmico, e na sua relação com as instâncias reguladoras e/ou regulamentadoras.

Pretendo abordar essas duas frentes, sustentando a tese central de que a formação analítica deve ampliar seus horizontes sem perder a sua especificidade.

Mas vamos por partes, pois a complexidade do assunto assim o demanda.

Especificidade da psicanálise

A psicanálise nasceu, como bem o faz notar Birman [7], como consciência crítica da Modernidade. Vale dizer que através dela os reinos do eu e da razão soberana foram destronados.

O que a psicanálise colocou e, ao meu ver, ainda coloca em evidência inquestionável é a limitação do discurso médico para dar conta do mal-estar moderno enquanto produção subjetiva e cultural. O desejo, o conflito e o sofrimento psíquico nas suas múltiplas expressões são irredutíveis a motivações de natureza exclusivamente biológica.

Freud aponta o descentramento do sujeito frente ao próprio desejo inconsciente, tematizado na primeira descrição do psiquismo. Posteriormente, amplia sua visão e a complementa. Assinala, em Mal-estar na civilização, a condição trágica do homem em relação ao desamparo a partir do qual se constitui – modelo formulado a partir da segunda tópica e que introduz a noção de pulsão de morte. Os analistas pós-freudianos ampliaram e desenvolveram clínica e teoricamente sua descoberta.

Para a psicanálise não se trata de nenhuma ortopedia psíquica, mas de uma transformação a partir de um fazer-saber sobre a natureza inconsciente da subjetividade, promovendo no a-posteriori do ato interpretativo a desalienação dessa mesma subjetividade condenada, até então, à repetição.

Nesse complexo processo, como bem caracteriza Serge Viderman em A construção do espaço analítico, sentido e força se articulam na dimensão transferencial de tal modo que as dimensões da significação e da pulsão permanecem irredutíveis.

Assim sendo, qualquer ilusão de transparência, compreensão intelectual ou completude narcísica como finalidade última do processo de análise ou da formação de um analista, permanecem fora do campo da nossa disciplina e da nossa prática, como também qualquer tentativa de apreensão do objeto psicanalítico, por vias exclusivamente racionais, seria impraticável.

Levar em consideração o sentido forte dessas colocações implica compreender por que a formação de psicanalistas demanda uma especificidade, enfatizando a análise de quem a almeja como condição necessária, como possibilidade de abertura à ressignificação da própria subjetividade e como reconhecimento da eficácia do próprio inconsciente. Embora a análise seja condição necessária e primordial, não é suficiente quando o assunto diz respeito à formação. Voltaremos a este ponto.

Os institutos de formação nasceram com o objetivo inicial de garantir um ensino fiel à descoberta psicanalítica e, ao mesmo tempo, disciplinar uma prática que corria o risco de se tornar selvagem em mãos de charlatões sem uma formação adequada. O Instituto de Psicanálise de Berlim, fundado em 1926, será seu primeiro modelo, a partir do qual fica estabelecido o famoso tripé: análise didática, supervisão e seminários teóricos. Embora o tripé permaneça como eixo da formação, o modo de compreendê-lo, instrumentá- lo na prática, assim como sua contextualização teórica sofreram muitas transformações desde então. As diversas tentativas de buscar o melhor modelo que atendesse à práxis psicanalítica como experiência singular sempre foram objetos de discussão, quando não levaram a cisões dentro do movimento psicanalítico. Apontam a tensão entre o singular e o grupo. As instituições psicanalíticas não deixam de conter aporias e aspectos paradoxais.

Avançando para outro conjunto de questões, convém lembrar neste contexto o trabalho de Freud Sobre análise leiga, escrito em 1926 a propósito de um processo judicial contra Theodor Reik, analista não médico.Nesse trabalho, expõe em forma de diálogo, de modo claro e preciso, para um interlocutor imaginário, os princípios da teoria e da clínica, assim como as bases para a formação.

Em uma passagem o interlocutor imaginário interroga Freud: “Interpretar! Palavra complexa. Não gosto de ouvi-la, com ela o senhor destrói toda certeza. Se tudo depende de minha interpretação, quem garante que interpreto corretamente? Tudo fica subordinado ao meu arbítrio?” [8].

Existe vacina contra esse arbitrio? O vértice ético assim como o epistemológico ficam evidentes nessa questão.

Quem não se interrogou a esse respeito? Quem não esteve atento ao risco de que a interpretação proferida não visasse enquadrar o analisando dentro de um modelo teórico preestabelecido? Quem não temeu pela folie-à-deux ? E a limitação da escuta pela contratransferência ou, se quisermos resistência do analista?Quem não percebeu o aspecto delirante de um grupo quando os analistas cegam-se em nome de uma verdade, nos casos em que a teoria dá lugar à doutrina dogmática e a formação ao doutrinamento? Como diz Viderman: “ninguém viu tão bem o que Klein quis mostrar como seus seguidores e admiradores e tão mal como seus opositores”. Quem não percebeu a paralisia superegoica do jovem analista, preso a uma rede imaginária que não consegue a desidentificação necessária dos modelos e filiações de origem para o exercício de uma prática criativa, reproduzindo o mesmo lá onde o novo deveria emergir?

Esperamos que nossos modelos de formação e suas instâncias constitutivas propiciem e favoreçam o exercício ético, criativo e não alienante da Psicanálise, e ao mesmo tempo nos protejam do arbítrio, alerta do próprio Freud. Estaremos sendo bem-sucedidos nesta empreitada?

Transmissão ou formação?

Cabe um olhar para o campo semântico de dois dos significantes que são utilizados para descrever o processo pelo qual alguém se torna analista: transmissão e formação.

A transmissão nos remete a um registro vertical, com os corolários de autoridade e valor. Assemelha-se ao modelo que Guiddens [9] aponta para as sociedades tradicionais. Segundo este modelo certos valores e crenças são passados de uma geração para outra; ele compreende a tradição “como uma orientação para o passado, de tal forma que o passado tem uma pesada influência ou, mais precisamente, é constituído para ter uma pesada influência sobre o presente” [10]. Este modelo, que instaura os guardiões da tradição, combina conteúdo moral e emocional. Mistura complexa, para quem sabe dos pontos cegos da transferência institucional entre mestres e discípulos. Embora possa oferecer a ilusão de uma segurança ontológica aos que aderem ao modelo, promove a repetição, impedindo a ousadia e criatividade dos jovens analistas, assim como limita o diálogo com autores considerados proscritos por serem alheios à “tradição” do grupo. O vértice religioso da transmissão está na origem deste modelo.

Já a formação como nos mostra Mezan é associada ao romance de formação, o Bildungsroman. Diz Mezan: “O périplo pelo qual o personagem se educa para vida, enfrentando-se com a decepção, com a dor e com a perda das ilusões, mas também tomando conhecimento de suas possibilidades, de seus limites e de suas responsabilidades” [11]. Este modelo, embora não deixe de aludir à questão da forma e encerre o risco da formatação, alude mais ao aspecto processual do vir a ser analista, destacando a natureza conflitiva e transformadora inerente a este processo.

Não considero que esses modelos sejam patrimônios exclusivos desta ou daquela instituição, pelo contrário, vejo-os acontecendo também em grupos independentes, muitas vezes configurados em torno da figura de um mestre. Percebemos também que no seio das instituições analíticas coexistem, por vezes, ambos os modelos. O que me interessa frisar não é o conteúdo de tais tradições, pois estes podem variar, mas apenas sinalizar a sua existência e o fato de que estes dois modelos devem ser analisados criticamente, levando em consideração a história dos grupos e instituições, mas sem deixar que esta impeça a emergência do novo.

Algumas breves palavras sobre o tripé na formação

São múltiplas as vias pelas quais alguém se aproxima da psicanálise: o próprio sofrimento psíquico, fascínio pela dimensão inconsciente do psiquismo, fantasias e desejos reparadores, ilusão de prestígio profissional, hoje nem tão em alta, etc.

Será o processo de análise o lugar de encontro com os efeitos do próprio inconsciente, com o reconhecimento dos seus desejos e paixões, angústias e temores. Nesta condição, a força de um núcleo traumático pulsional de natureza infantil terá lugar na cena transferencial. Laços de dependência, identificações, demandas de filiação ancoradas em fantasias edípicas não permanecerão intocáveis.

Desta experiência transformadora, geradora de uma familiaridade do analista com o seu próprio funcionamento psíquico, poderão surgir as condições de escuta analítica. O desejo e a disponibilidade de ocupar o lugar de analista poderão despontar no analisando.

A supervisão, ou análise de supervisão, como alguns preferem chamá-la, ocupa um lugar de extrema importância no processo de formação. Ligada à escuta clínica do analista, a supervisão, surge como terceiro, não apenas em relação à análise que o iniciante conduz, mas também a sua própria análise. Isso não quer dizer que o supervisor trará uma interferência direta na análise, mas, como diz Fédida, terá um efeito na liquidação da transferência, da idealização do próprio analista pelo analista em formação. Fédida ainda aponta a supervisão como base de matriz potencial da comunidade analítica. Não se trata de aprender na supervisão uma técnica, mas de desenvolver a condição de escuta do analista.

O estudo das teorias é o terceiro elemento desse tripé. Conhecer o desenvolvimento dos principais modelos teóricos instrumentaliza o analista e favorece o diálogo com seus pares. No entanto, o estudo teórico, a meu ver, não deveria reduzir-se à exegese do texto nem à erudição psicanalítica. Seria interessante desenvolver, e isto poucas vezes ocorre ao longo do processo de formação, o estudo das condições de emergência da função teorizante do analista, permitindo, deste modo, uma reflexão sobre o estatuto peculiar da teoria em psicanálise. Seminários clínicos podem vir a ser um lugar propiciador e estimulante para o exercício desta função. Este item parece cada vez mais urgente frente à dificuldade que os analistas encontram em estabelecer um diálogo clínico quando oriundos de filiações diferentes, o que vem conduzindo a uma fragmentação do campo. Estaríamos não apenas preocupados com a transmissão, mas com formar analistas capazes de criar suas próprias teorias ad hoc, sem negligenciar os grandes modelos.

A formação estendida: uma questão de fronteiras

Falseia-se qualquer conversa sobre a natureza específica da formação analítica se não levarmos em consideração a complexidade e riqueza do vir a ser analista. Esta complexidade e seus desafios incrementaram- se nos dias de hoje. Parece que, atualmente, alguns analistas extraviam-se e a clínica se dilui frente à multiplicidade dos discursos que a colocam em xeque e que mobilizam à reflexão:

1. do ponto de vista dos seus fundamentos: as neurociências, a psiquiatria ou terapias cognitivas;
2. pelos sistemas de saúde: o questionamento da sua eficácia terapêutica frente aos seus altos custos, fenômeno global;
3. do ponto de vista da subjetividade contemporânea: em que medida a nossa prática e nossas teorias estão aptas para atender às demandas das novas patologias;
4. da perspectiva das suas instituições de formação: imensa difusão da psicanálise e proliferação indiscriminada de centros de formação;
5. do que diz respeito ao seu lugar na universidade: pós-graduação, cursos de especialização acadêmicos, assim como o papel da pesquisa psicanalítica em suas diferentes modalidades;
6. do ponto de vista de sua relação com o estado e os sistemas de saúde: a regulamentação da profissão de psicanalista e/ou psicoterapeuta.

Dado que os interessados em empreender sua formação analítica e os analistas em exercício estão mergulhados nas mesmas condições históricas, seria ilusório conceber uma psicanálise e um processo de formação que evitasse ou apenas tangenciasse essas questões. A perversão estaria instalada no próprio processo de formação, à semelhança do que assistimos na clínica com crianças em que certos pais procuram manter os filhos numa espécie de bolha ilusória, esperando que algum dia estarão grandes e fortes o suficiente para enfrentar as adversidades da vida. Mais do que uma doce ilusão, trata-se de uma compreensão falha do processo de crescimento. Na medida em que sabemos que a capacidade de responder à adversidade reside na possibilidade de uma aprendizagem contínua desde o nascimento. A mentira e a ilusão só reforçam nossa paranóia e fragilidade, apenas preparam para o colapso narcisista.

A manutenção de modelos de formação, institucionais ou não, que reforçam a separação entre gerações para além da assimetria inerente, tendem a criar a falsa ilusão de que somente os jovens analistas estão expostos às questões enumeradas anteriormente. Incrementa-se deste modo uma relação de dependência em relação a seus mestres e alimenta- se a idéia de que quanto mais formação, mais fortificados ficarão. Mas não se trata, ao meu ver, de receber mais do mesmo (inclusive porque isso acaba enjoando ou embotando a criatividade).

A psicanálise hoje, mais do que em outros momentos da sua história, deve lidar com uma questão de fronteiras. Fronteiras não são territórios tranqüilos, envolvem ameaças de invasão, fantasias persecutórias e também curiosidade, sedução e até o risco de perder a própria identidade. Em contraposição a uma postura defensiva ou de confronto face aos itens acima enumerados, faz-se necessária uma estratégia de diálogo, de discriminação das especificidades de atuação, da busca de interlocução com os diferentes campos do saber, resgatando a importância da sua contribuição. Distantes da arrogância ou da timidez, só um posicionamento claro que reconheça, não só nossos limites, mas também o nosso potencial, poderá garantir um lugar para a psicanálise na nova geografia globalizada. A formação pode se constituir como o espaço destinado a instrumentalizar – a nova geração de analistas – à altura dos desafios que terá de enfrentar. Desafios que, como vemos, revestem alta complexidade. Apesar de o clássico tripé ter mostrado sua fecundidade ao longo de gerações, acho que a atual complexidade coloca novos desafios. Assim, trata-se de revisar aquilo que consideramos como formação padrão.

Apresento a seguir alguns pontos para reflexão. Não pretendo ser exaustivo, trata-se a meu ver da criação de um debate coletivo em que nossa geração vê-se convocada a refletir.

1. Convite desde o início da formação para uma discussão franca sobre a complexidade atual do campo e a singularidade da psicanálise

Gostaria de trazer, apenas como um exemplo possível, a experiência no curso de Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Este curso se desenvolve a partir de três eixos: um voltado para o estudo da obra de Freud agrupado em unidades temáticas, outro de seminários voltados para autores pós-freudianos que influenciaram no atendimento psicanalítico da criança, e um terceiro eixo de seminários clínicos. Recentemente propusemos uma disciplina, que tive a felicidade de ministrar no primeiro ano, chamada Psicanálise da Criança. Trata-se de um seminário destinado aos alunos que ingressam no curso, no qual problematizamos o campo da clínica psicanalítica com crianças. Abordamos a multiplicidade dos profissionais que se ocupam da criança e a discriminação da singularidade da escuta psicanalítica frente a outros modelos. Os alunos trazem suas angústias, dúvidas e interessantes questões que nos fazem refletir, para as quais não existem respostas fáceis, mas é nítida minha percepção do crescimento e amadurecimento do grupo. Ao mesmo tempo em que se debruçam sobre a obra de Freud e o surgimento da Psicanálise, expõem suas inquietações sobre a diversidade de suas práticas clínicas, e o campo de possibilidades para atuação do psicanalista. A metapsicologia é introduzida progressivamente, não como um corpo teórico pronto, mas como um movimento de teorização necessário para delimitação e constituição do campo da clínica psicanalítica com crianças.

O resultado deste trabalho é uma diminuição dos aspectos persecutórios em relação à formação, ao mesmo tempo em que emerge um pensamento crítico face às rápidas identificações ou aos autotitulados detentores da verdadeira psicanálise.

2. Clima institucional

O clima institucional [12] possui enorme importância no processo de formação. Eu diria que constitui um quarto elemento a ser acrescentado ao clássico tripé. Ele pode ser estimulante, favorecer o diálogo no qual os diferentes membros do grupo possam encontrar seu lugar, mas ele pode também ser dominado por brigas escolásticas que muitas vezes refletem lutas de poder dentro da própria instituição. Penso que poderiam ser estimulados:

a) a possibilidade de os analistas mais jovens ouvirem apresentações clínicas de analistas mais experientes contribuindo para desmistificar certas idealizações;
b) organizar seminários temáticos e não apenas por autores que poderão auxiliar na quebra da rigidez escolástica;
c) convidar analistas de outras instituições e outros profissionais da saúde mental para verdadeiros seminários de trabalho, nos quais diferenças e semelhanças possam ser discutidas; isso poderá fortalecer o conhecimento e a capacidade de reflexão sobre a clínica.

Nós sabemos que, assim como no Brasil, na Europa, Estados Unidos e vários países da América latina são cada vez menos os analistas que exercem psicanálise apenas no modelo padrão nos seus consultórios. Muitos trabalham em instituições de Saúde Pública, ambulatórios, hospitais, centros de pesquisa. Até que ponto insistir apenas na formação tradicional nega esta realidade e deixa os jovens profissionais com a idéia de que eles desenvolvem práticas menores frente à nobreza do ouro puro? Se compreendermos a psicanálise não apenas como tratamento padrão, mas como um método de conhecimento e transformação a partir da análise da transferência, incluir na formação do analista o estudo e a pesquisa sobre outras modalidades psicanalíticas de intervenção na Saúde Pública pode sem dúvida ampliar o espectro da clínica e o papel da psicanálise na sociedade. Embora essas práticas existam, carecem de maior legitimidade no próprio processo de formação.

3. Reflexão sobre os aspectos terapêuticos da psicanálise

Isto nos aproxima de um terreno pantanoso, pouco abordado pelos psicanalistas [13]. Na maioria das vezes associado aos aspectos sugestivos da transferência, o tema da função terapêutica é apenas tangenciado, quando não evitado, repetindo a já desgastada imagem freudiana da mistura do ouro da psicanálise com o cobre da sugestão. A partir da clínica com pacientes borderline, adições e compulsões desenfreadas, anorexias e bulimias, será que não podemos aprofundar esta discussão? Estou propondo que durante a formação seja ampliada a discussão sobre os aspectos técnicos do método sem confundir um com o outro. Os escritos técnicos de Freud são a porta de entrada para uma nova modalidade de apreensão do psiquismo, mas não a última palavra.

Cabe aqui a criação de grupos interdisciplinares para discutir a relação da psicanálise com as neurociências e a psiquiatria, deslocando a discussão dos bastidores ou do confronto superficial na mídia para uma reflexão clínica.

4. Reflexão sobre a relação com a universidade e a pesquisa

Assistimos neste momento do Brasil a um grande crescimento da presença da psicanálise na Universidade. Os impactos deste movimento mereceriam por si só uma pesquisa específica, e, por esta razão, não gostaria de fazer uma análise superficial sobre esta inter-relação que ao meu ver tem muitas implicações para o campo psicanalítico e que produz efeitos na formação da atual geração de analistas. Farei apenas alguns assinalamentos. Três pontos contribuem para este desenvolvimento:

a) por parte da universidade: o interesse de muitos campos do saber universitário e de programas de pós-graduação em manter um diálogo com a psicanálise (filosofia, sociologia, antropologia lingüística etc.);
b) por parte dos psicanalistas: i) aprofundar o estudo teórico da psicanálise numa perspectiva epistemológica e crítica assim como desenvolver o diálogo com outras disciplinas. ii) Realizar pesquisa basicamente teórica longe das pressões transferências diretas dos grupos psicanalíticos;
c) pela natureza do debate universitário, a universidade sempre se caracterizou por ser um espaço no qual o debate de idéias e a diversidade de opiniões são aceitos e legitimados.

Sem lugar a dúvidas, este movimento teve um efeito revigorante para o estudo e a reflexão sobre as teorias psicanalíticas [14] e a aplicação da psicanálise como método heurístico para compreender Cultura. No entanto, muitos profissionais buscam hoje a pós-graduação não como lugar de aprimoramento e desenvolvimento como pesquisadores, mas como via de atalho ou substituição para a formação. Em muitos programas de pós-graduação constituíram-se feudos semelhantes aos que existem em outros grupos psicanalíticos, reproduzindo o mal que supostamente pretendiam combater.

A proliferação indiscriminada de cursos de especialização na universidade nos conduz a refletir sobre a influência deste movimento na formação. Como espécie de bumerangue, a universidade passa a afetar burocraticamente os espaços de formação: especialização via CFP, regulamentação via MEC etc. Nelson da Silva Jr. [15] analisa esta relação, assim como a própria transformação da universidade, seguindo a direção assinalada por Marilena Chauí: burocratização, tecnicização e mercadorização, colocando em questão o lugar da psicanálise neste contexto.

Os espaços de formação psicanalítica, embora não alheios a esse movimento, nem sempre incluem debates sobre estas relações assim como sobre a natureza da especificidade da pesquisa em Psicanálise, assunto que merece cada vez mais atenção.

A modo de conclusão

Minha hipótese é que a ampliação da experiência de formação psicanalítica, sem perder a especificidade, mas lidando diretamente com as fronteiras, evitando posturas arrogantes ou defensivas, poderá ter um efeito catalisador e pontencializador. Ainda mais contribuir para diluir os aspectos de uma submissão identificatória a mestres ou grupos, nem sempre dissolvidos na análise daqueles que visam uma formação. Quero dizer que, embora a análise pessoal seja considerada a principal garantia da qualidade da formação, sabemos os riscos que ela comporta. Assim esta formação ampliada não viria para diluir ou empobrecer a formação de analistas. Pelo contrário acho que dela emana o potencial de aprimorar os clássicos espaços da supervisão, do estudo teórico e da análise pessoal, assim como instrumentalizar o analista para novos desafios.

A psicanálise nasce como crítica da cultura. A mesma cultura se apropria das suas produções e procura neutralizá-la, como o fizera com muitos movimentos de contracultura. O desafio para a atual geração de analistas reside na possibilidade de ouvir aquilo que pede para não ser silenciado nos diferentes espaços para onde o psicanalista é chamado a intervir. Estarão prontos os analistas que formamos para estes desafios?
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