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ÍNDICE TEMÁTICO 
35
Revisitando o número 1
ano XVIII - 2° semestre 2005
177 páginas
capa: Sérgio Sister
  
 

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Resumo
O caminho a percorrer é mais complexo do que o simples endossar de uma das várias opções de formação que hoje se apresentam.


Autor(es)
Bernardo Tanis
é doutor em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e dos departamentos de Psicanálise e Psicanálise da Criança do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Circuitos da solidão entre a clínica e a cultura (Casa do Psicólogo) e Memória e temporalidade, sobre o infantil em psicanálise (Casa do Psicólogo).


Notas

* Comunicação apresentada no painel sobre “Formação Psicanalítica”, promovido pela Livraria Pulsional, em fevereiro de 1988.



Referências bibliográficas

1. C. Castoriadis, “A psicanálise, projeto e elucidação”, in As encruzilhadas do labirinto 1, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1987.

2. F. Roustang, Un funesto destino, Premia, México, 1980.

3. M. Enriquez, “On forme un analyste”, in Nouvelle Revue de Psychanalyse, nº 20, Paris, 1979.

4. M. Safouan, Jacques Lacan e a questão da formação dos analistas, Artes Médicas, Porto Alegre, 1985.

5. R. Schnaiderman, Política de formação em psicanálise.

6. S. Ferenczi, “Confusão de línguas entre crianças e adultos”, in Oeuvres complètes, Payot, Paris.

7. S. Freud, “Psicologia de las masas y análisis del yo”, 1922; “Análises profano”, 1926; “Psicoanalisis y teoria de la libido”, 1922, in Obras completas, Biblioteca Nueva, Madri.

8. J. P. Valabrega, A formação do psicanalista, Martins Fontes, São Paulo, 1983.





Abstract
When he wrote this essay. Mr. Tanis had just graduated from the Department of Psychoanalysis. He writes about the identifications of the analyst and about the pressures that the existence of different trends and schools of Psychoanalysis put on the students. He feels that identifications are essential in the process of becoming an analyst, but one must be careful lest they become alienating.

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 TEXTO

Considerações sobre a formação psicanalítica [*]

Thoughts on the training of an analyst (1988)
Bernardo Tanis


Falar em formação analítica me leva a evitar o impessoal. Impõe-se como necessário, para abordar esta questão, uma passagem pelo singular, pelo que é menos abstrato, pelo que cada um de nós viveu e continua experimentando como sendo sua formação, seu vir a ser analista.

Essa perspectiva tornou-se mais clara a partir de um sonho que tive uma semana antes de participar deste debate.

No sonho apareciam alguns renomados analistas sentados em volta de uma mesa. Eu me aproximava deles, que me mandavam voltar mais tarde. Esse sonho evocava para mim algumas questões ligadas ao processo de formação analítica. Será que alguns analistas poderiam julgar a “prontidão” de outros? Quais os requisitos para se considerar analista e ser reconhecido como tal?

Esse sonho evocou um outro de muitos anos antes. Na época, estudava química e devia apresentar uma dissertação para um seminário de pós-graduação do qual participavam alunos e professores. Defrontava-me com um problema matemático cuja resolução era essencial para a apresentação da dissertação, mas não conseguia solucioná-lo. Nesse contexto tive um sonho no qual resolvia o problema em questão. Fiquei muito feliz e pude expor sem problemas a dissertação. Naquela época eu era estranho ao mundo psicanalítico, e o sonho, embora me surpreendesse, não despertou em mim maior interesse.

Recentemente, por ocasião desse segundo sonho, lembrei que um químico chamado Kekulé tornara-se famoso por ter descoberto num sonho a fórmula eletrônica de um composto chamado benzeno. Essa descoberta dera origem a um amplo campo de estudos na química orgânica.

Meu sonho, até onde me interessa apresentá-lo aqui, cumpre dois objetivos: resolve um problema imediato e me identifica com um químico de renome.

Pareceu-me interessante apresentar- lhes esses sonhos porque foi a partir deles que comecei a refletir a respeito da questão da identificação, dos modelos idealizados e da importância de sua elucidação no processo de formação analítica. Questão que me acompanhará ao longo deste breve trabalho.

Rompimento

São várias as propostas de formação oferecidas no mercado da psicanálise – sem falar das psicoterapias em geral – para alguém que tenha interesse em se iniciar nessa prática. Poderá escolher ou ser fisgado por uma delas.

Sabemos que nossas escolhas não são tão livres assim.

Farei referência à psicanálise em particular, embora ache que também seria interessante, pela própria situação da psicanálise no âmbito das psicoterapias, um exame comparativo dos diferentes modelos existentes. Desde a fundação do Instituto Psicanalítico de Berlim, em 1920, inaugura-se concomitantemente um modelo oficial de formação analítica: análise didática, atendimentos supervisionados, cursos teóricos. Não cessam as controvérsias sobre essa questão. As divergências sobre a formação e as políticas institucionais levaram a violentas discussões e cisões no seio do movimento psicanalítico.

Os casos mais marcantes e cujos efeitos mais se fizeram sentir entre nós foram as diversas cisões: a) na Inglaterra, com as divergências entre M. Klein e A. Freud; b) na França, com as fundações da S.F.P. (Société Française de Psychanalyse), E.F.P. (École Freudienne de Paris), Quarto Grupo, nas quais Lacan desempenhou um papel central, e c) na Argentina com o desligamento de vários grupos da APA (Associación Psicoanalítica Argentina) no início dos anos 70.

E se, de fato, é a questão da formação que provoca esses rompimentos, essas cisões, não será porque a partir dela os próprios fundamentos da psicanálise se colocam em questão? Não será que quando se decide por quem pode ou não ser admitido como candidato, membro ou como quisermos chamar, dentro de um determinado grupo psicanalítico, esse grupo legisla sobre a legitimidade ou não de uma prática, de uma teoria?

Encontram-se aqui presentes analistas em diferentes momentos de formação, ligados direta ou indiretamente a alguns dos grupos ou instituições existentes em São Paulo. O que faz possível a nossa troca, o que faz com que nos denominemos psicanalistas?

Diz Freud, ao discutir a questão da análise leiga: “O que exijo é que não possa exercer a psicanálise alguém que não tenha conquistado, por meio de uma determinada preparação, o direito a uma tal atividade”. (p. 2943)

E na seqüência de seu diálogo socrático, quando indagado sobre quais seriam as condições exigidas, diz: “Esta é uma questão que ainda não precisei, nem sei se chegarei a determinar”.

Poucas palavras, mas um conteúdo extremamente rico para nossa reflexão.

Exercer a psicanálise é um direito que se conquista. Ninguém como Freud, e isto sabemos por meio de sua correspondência com Fliess, para testemunhar o trabalho da descoberta, a angústia de enfrentar os próprios fantasmas.

Freud fala dos conhecimentos necessários, das diferenças com o saber médico e o ensino universitário, da importância da análise pessoal, mas não profere estatutos. O mesmo Freud, que tão zelosamente reivindica a paternidade de sua obra e com tanta veemência marcava as diferenças com seus discípulos “desviantes”.

Já em 1926 (data do texto mencionado), após a época das grandes divergências, não especifica as condições da formação nem sabe se chegará a fazê-lo.

Evasão perante a complexidade, legado deixado para que seus seguidores o concretizem, ou talvez uma sinistra sensação do que acarretaria determinar essas condições.

Vamos ousar adentrar mais profundamente nessa questão.

Sendo o inconsciente, a transferência e o Édipo os pilares da descoberta freudiana a partir dos quais a análise é possível e a teoria se desenvolve, é de se supor que essas questões digam respeito à formação analítica.

Foi Ferenczi que, da primeira geração de analistas, enfatizou a análise daquele que desejasse se tornar analista como condição para a prática. E não se trata de uma curta análise para se certificar de que o inconsciente existe, ou talvez aprender a arte da interpretação com outro analista. Ele vai mais longe, tão longe quanto a descoberta freudiana impõe:

“Os pais e os adultos deveriam aprender a reconhecer, como nós, analistas, por trás do amor de transferência, submissão ou adoração de nossos filhos, pacientes, alunos, o desejo nostálgico de se libertar deste amor opressivo. Se ajudarmos a criança, o paciente, o aluno a abandonar esta identificação e a se defender desta pesada transferência, podemos dizer que conseguimos fazer com que a personalidade tenha acesso a um nível mais elevado.”

A idealização e a identificação maciça a essas figuras, como nos diz Ferenczi, é o resquício de nossas identificações infantis.

É neste ponto que desejo retomar a questão da identificação que se desprende do sonho relatado.

A identificação, tal como Freud a descreveu em Psicologia das massas e análise do eu, é a mais precoce manifestação de enlace afetivo a outra pessoa e desempenha um importante papel na pré-história do Édipo. A criança gostaria de ser igual ao seu progenitor, faz de seu pai seu ideal, adota seus emblemas, etc.

Essa problemática, presente em qualquer análise porque se refere à situação edípica e sua elaboração, adquire uma singular importância na análise de um analista.

Os mestres, os analistas, sejam ou não denominados didatas, estão aí, disponíveis para que o iniciante estabeleça seus laços transferenciais, e todos nós sabemos como isso existe e com que intensidade. Os modelos identificatórios podem tender a criar analistas com rígidos esquemas de filiação. É preciso que essa tendência, tanto a obedecer a um modelo, quanto a agir contrariamente a ele por formação reativa, seja permanentemente analisada e discutida no seio da própria análise e das instituições.

Seria ingênuo acreditar no princípio de auto-engendramento e afirmar que poderíamos prescindir de qualquer identificação. O problema são se coloca lá onde a identificação nasce, onde o fantasma de filiação se desenvolve, mas na sua cristalização e nos mecanismos intra- ou extra- institucionais que a favorecem, que visam perpetuá-la como sustentáculos de poder e prestígio.

Desta forma, concebe-se que a análise não visa a priori tornar alguém analista, mas permitir que, ao longo do processo analítico, essa demanda não permaneça intocável.

Mas a análise não é suficiente para se tornar analista. É preciso analisar. Experimentar as vicissitudes de quem ocupa esse lugar. É ao analisar que a singularidade do analista enquanto tal emerge.

Troca possível

Embora a supervisão ocupe um papel relevante na formação analítica, lembro-me de alguém dizendo que a psicanálise se pratica sem rede debaixo. Existem várias posições a respeito da supervisão. No âmbito deste breve trabalho gostaria de assinalar que me inclino a concebê-la como um espaço de interlocução com um outro onde não se visa imprimir um modelo de trabalho, mas permitir que o analista continue a se interrogar sobre sua prática.

Acredito que seja nessa direção que a formação deva se encaminhar. Não a se instalar num confortável transatlântico que nos leve ao suposto porto seguro das teorias inglesas ou francesas, ao reverenciamento dos mestres, mas aprender a navegar nas tempestuosas águas do inconsciente, onde a transferência muda o vendo sem prévio aviso.

Assim, aproximamo-nos de um outro ponto que faz parte do tradicional tripé sobre o qual se ancora a formação: a teoria psicanalítica. Freud situa a psicanálise como:

a) Método de investigação dos processos anímicos.
b) Um método terapêutico.
c) Uma série de conhecimento assim adquiridos que formam o corpus teórico de uma nova ciência (Psicanálise e teoria da libido, 1922, p. 2661).

Coloca, dessa forma, o corpus teórico dessa disciplina como resultado dos dois termos anteriores.

Será que isso é de fato assim? Desde que as ciências humanas começaram a questionar as categorias de sujeito e objeto, e a psicanálise tem seu mérito nessa conquista, perdemos a ingenuidade de pensar que nossos modelos teóricos obedecem pura e exclusivamente à experiência. O estudo da ideologia em relação às ciências tem corroído o princípio da neutralidade.

Desta forma, percebo em mim e em muitos dos meus colegas a necessidade de um estudo crítico da teoria freudiana e dos pós-freudianos. Sem dúvida, os caminhos pelos quais a teoria intervém no processo analítico e a partir dele é produzida, são muito complicados e merecem toda nossa atenção.

Diz Castoriadis: “O paradoxo da criação freudiana (...) é que ela desvenda e dá à luz a imaginação radical, a indeterminação criadora como próprio elemento da psique – e que, ao mesmo tempo, presa na metafísica social-histórica dominante, fica sujeita à ilusão que poderia um dia fornecer ‘a teoria’ exaustiva desta psique” (p. 110).

Acredito que o exercício da teoria é de um valor inestimável quando nos permite a reflexão sobre a experiência, o resgate do universal, a troca com os pares, mas se revela paralisador e ensurdecedor quando se transforma em estatuto de verdade irrefutável a ser repetido até o cansaço.

Mas, se a análise, a supervisão e a teoria funcionam como suporte desse desejo de conhecer e se conhecer, há também o desejo de reconhecimento.

Reconhecimento que junto com a questão da autorização adquire uma importância fundamental para o exercício da psicanálise. Sem o reconhecimento de outros analistas, sem o reconhecimento da comunidade, a condição de analista não existe, pois não pode se pôr em prática. Quem nos autoriza a falar em psicanálise senão nós mesmos e os que aqui presentes nos ouvem e nos questionam? Penso que o processo pelo qual alguém se autoriza ao exercício da psicanálise surge e se liga no próprio percurso de formação no qual a análise desempenhou um papel crítico.

Antes de finalizar, gostaria de fazer uma breve referência às várias opções de formação que hoje se apresentam, fruto, talvez, do surgimento de novas teorias, da difusão da psicanálise, de questões mercadológicas, etc. A grande maioria delas se apresenta como detentora da verdadeira psicanálise, do correto modelo de formação. Tenho a impressão, e falo a nível estritamente pessoal, que o caminho da formação psicanalítica é mais complexo do que o simples endossar de tal ou qual discurso.

Talvez seja mais incerto, talvez mais solitário, mas acho que devemos sempre colocar em questão nossas certezas teóricas, nosso orgulho narcísico, nossos modelos idealizados e, quiçá, dessa forma, nos aproximemos mais desse território tão fascinante e tão assustador que é o inconsciente.
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