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Resumo
O registro dos primeiros tempos da tentativa de abrir um espaço alternativo de formação, num momento de despedida.


Autor(es)
Mário Pablo Fuks Fuks
é médico psiquiatra e psicanalista argentino formado na Universidade Nacional de Buenos Aires, radicado em São Paulo, Brasil, desde 1977. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Professor do curso de psicanálise, coordenador do curso de psicopatologia psicanalítica e clínica contemporânea, membro da equipe editorial do Boletim Online, membro do Grupo de Psicanálise e Contemporaneidade do Departamento de Psicanálise e supervisor do Projeto de Pesquisa e Intervenção em Anorexia e Bulimia. Delegado do Departamento da Flappsip, no Congresso de Porto Alegre. Na Argentina, foi médico-chefe do Departamento de Adultos do Serviço de Psicopatologia do Policlínico de Lanús, professor adjunto da Cátedra de Psicologia Médica da Faculdade de Medicina da UNBA. Coordenador do plano piloto de formação do Centro de Docência e Investigação (cdi) da Coordenadora de Trabalhadores de Saúde Mental (ctsm) de Buenos Aires e professor adstrito ao Departamento de Investigação da Faculdade de Psicologia da UNBA.


Notas

* Artigo elaborado a partir da aula inaugural do Curso de Psicanálise do ano de 1988.

1. Neste sentido os dispositivos atuais de controle e domínio são diferentes, apesar de que alguns “surtos” de autoritarismo estejam começando a reaparecer em forma mais aberta no campo, por exemplo, das instituições públicas de Saúde Mental.



Abstract
An account of the first years of the Instituto Sedes Sapientiae and of how a group of analysts created a training program that eventually became the Department of Psychoanalysis. Times were difficult, as Brazil and a good part of Latin America lived under military dictatorships. Politically progressive, the program suffered pressure from the IPA society, which saw with very unfavorable eyes the new venture; but it survived and established itself as a reference in the São Paulo analytical scene.

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 TEXTO

Por uma história do curso de psicanálise [*]

Towards a history of the Department of Psychoanalysis (1988)
Mário Pablo Fuks Fuks


Alguns colegas me sugeriram neste momento de reinício das atividades do Curso de Psicanálise – simultaneamente para mim um momento de despedida, pela minha volta à Argentina – que eu fale da história, já que eu tenho participado dela quase desde o seu início.

Duvido que eu esteja em condições, hoje, de abordar essas questões no detalhe e na profundidade que elas demandam. Hoje só posso pensar e falar das coisas desta história que me atingem pessoalmente agora – na significação que para mim o Sedes e o curso têm tido à luz da decisão de voltar a meu país. Para situar esta significação na minha vida em sua verdadeira dimensão, preciso enfatizar o quanto uma vida pode ser afetada por um exílio. Eu posso garantir a vocês que é muito.

Surgem-me recordações pontuais e precisas.

Em meados de junho de 1977 fui apresentado, junto com um grupo de colegas argentinos, à Madre Cristina Sodré Dória, diretora do Instituto Sedes Sapientiae. Recém-chegados a São Paulo, tínhamos entrado em contato com um grupo de psicanalistas brasileiros que havia iniciado um projeto de formação em psicanálise no âmbito do Sedes. Porque conheciam a nossa trajetória no campo psicanalítico, estavam interessados em que nos incorporássemos ao grupo de professores que estava levando adiante o curso. O objetivo do encontro desse dia com a Madre Cristina era o de que ela, além de nos conhecer pessoalmente, nos ajudasse a situar-nos com respeito às características da Instituição e do projeto que a animava.

Com a riqueza e a clareza de idéias que a caracteriza, expôs o processo de elaboração e maturação ideológica que tinha percorrido o Sedes (e que pouco tempo depois ficaria plasmado na Carta de Princípios), concluindo com as seguintes palavras: “Sejam bem-vindos; sabemos do momento que vocês estão passando porque em 68 e 74 passamos por circunstâncias muito parecidas. Hoje abrem-se aqui algumas brechas que podemos aproveitar e pelas quais podemos avançar. Fiquem conosco – é muito o que nos podem ajudar. Esta é a sua casa”.

Tratava-se de uma calidez, de uma força de solidariedade e de acolhimento difíceis de imaginar em qualquer lugar do mundo. Obviamente ficamos. Ficamos porque encontramos aqui um espaço de reconhecimento, de palavra, de trabalho, de ensino, de continuidade e de reelaboração de nossas experiências prévias e das diretrizes que vinham orientando nossa prática específica.

A ajuda que podíamos dar consistia, no imediato, em reforçar o corpo de professores do curso, que, iniciado havia apenas um ano (com um esquema que na época era de três anos de duração), estava passando por uma grave crise. Crise que comprometia sua continuidade e sua própria existência. Esse grupo inicial de professores era constituído por alguns psicanalistas independentes, entre os quais a figura de maior destaque era a de Regina Schnaiderman, e por outros psicanalistas filiados à Sociedade de Psicanálise de São Paulo.

Apoiado por um entusiástico conjunto de colegas e discípulos, o grupo tentava abrir um espaço alternativo de formação que pudesse evitar e, quem sabe, ultrapassar os rígidos limites de diversas ordens – burocráticos, ideológicos, econômicos – que impunha a instituição psicanalítica dita oficial. Temerosa de ver ameaçada a sua hegemonia e seu monopólio, em um momento em que era visualizável uma demanda crescente de formação em psicanálise, a Sociedade de Psicanálise tinha começado a exercer pressão, com medidas estatutárias e oficiais, assim como com outras, menos nobres, sobre os analistas, membros da mesma e integrantes do curso do Sedes. Houve ameaças de expulsão, insinuações pessoais, envios de telegramas, etc. Finalmente esses meios lograram que, dos sete psicanalistas ligados à Sociedade que faziam parte do corpo de professores, cinco se demitissem do curso; outros dois questionaram a legitimidade dessas medidas, até em nome do direito constitucional e da liberdade de ensino, e permaneceram.

“Conjunção astral”

A saída desses professores deixou o curso numa situação de grande fragilidade; e foi justamente pouco tempo depois que os “recém- chegados”, entre os quais eu, pudemos nos incorporar trazendo dessa maneira imediata e concreta a contribuição para a sobrevivência e desenvolvimento deste primeiro projeto consistente de formação alternativa em psicanálise em São Paulo. Alguém falou na época, jocosamente, em uma “conjunção astral”. Prefiro entender essa ocasião como um momento, sem dúvida fascinante, em que confluíram pessoas que acabavam de sofrer e perceber os efeitos destrutivos que uma ditadura militar estava operando sobre o conjunto da sociedade, incluindo os avanços que se tinham realizado no campo psi, na saúde mental, etc., com outro grupo que aqui, no Brasil, estava começando a construir algo novo, no mesmo movimento, no mesmo processo de luta por se desvencilhar dos efeitos sobre a sociedade civil, de uma ditadura que já durava 13 anos. Esses mecanismos de pressão e de repressão, mesmo que num campo restrito como o de uma instituição psicanalítica, ao se manifestarem de uma forma tão patentemente autoritária, revelam-se possíveis como efeito de uma situação totalitária mais geral, que tinha penetrado fundo nas trevas institucionais, nas relações de poder, na própria subjetividade das pessoas. [1]

Juntamo-nos com entusiasmo, gratos pelo privilégio de poder participar do trabalho de consolidar e aprofundar esse projeto que estava sofrendo golpes duros no próprio momento do nascer.

O questionamento científico, ideológico e político da instituição oficial e do perfil do analista que ela promovia, não como crítica das pessoas individuais que faziam parte dela, mas como efeito de dominação de um sistema, caracterizou, por muito tempo, uma boa parte de nosso trabalho. Era também sobre essas questões de base que se recortavam os problemas da construção do “alternativo”, principalmente na hora em que a consolidação de um projeto desse tipo encarava a possibilidade e os riscos de uma “institucionalização”.

Experiências prévias

O “reencontro do mesmo” pode dar lugar a essa compulsão repetitiva que a psicanálise conhece tão bem e que é o oposto da elaboração. Acho que ao longo do tempo foi possível uma reelaboração das experiências prévias, em parte pelo próprio reconhecimento das diferenças, pela necessidade de pensar táticas e estratégias novas diante de situações novas numa experiência de ensino que é também de aprendizagem criativa, tanto coletiva, como individual. Um exemplo: o projeto nasceu e se desenvolveu por um bom tempo com o nome de “Curso de Psicoterapia de Orientação Psicanalítica”. Para alguns de nós isso foi visualizado inicialmente como um avanço, como a possibilidade de não ficar preso numa “identidade psicanalítica” estereotipada que tínhamos reconhecido como um obstáculo para o próprio desenvolvimento da psicanálise, para a possibilidade de sua inscrição transformadora no campo da saúde mental, etc. A realidade, porém, era outra. O nome tinha sido uma solução de compromisso, uma concessão às pressões a que nos referimos anteriormente. Mas mudá-lo para “Curso de Psicanálise”, fato que aconteceu em um determinado dia, sem maiores cerimoniais, foi tanto fruto, como momento de um processo de elaboração que continua – sendo este inacabamento um traço positivo que caracteriza o devir desta experiência institucional.

Muitos outros momentos de fundamental importância se sucederam; as divergências em relação à forma e ao conteúdo de um projeto alternativo em psicanálise acabaram distanciando alguns colegas.

O convênio com a Coordenadoria de Saúde Mental, a constituição da Clínica, a formação do Departamento são coisas das quais gostaria de falar, mas não hoje.

O momento atual deve possibilitar- nos reconstruir e escrever uma história do Curso, e a aparição da revista do Departamento pode se constituir no estímulo para este trabalho.

Os mitos de origem parecem cumprir uma função simbólica importante em todos os momentos que adquirem uma dimensão subjetiva “fundante”. Assim como este que conto aqui, houve outros momentos em que a história veio à tona. Para que ela não venha “à toa”, para que a história sirva como instrumento para entender os “sintomas” do presente e pensar o futuro, faz-se necessário um trabalho de contextualização.

Ao contextualizar politicamente os momentos iniciais deste projeto, posso ter querido heroificá-los; talvez fossem momentos bem mais “humildes”, na verdade.

Penso, no entanto, que as determinações ideológicas e políticas operantes em cada situação são referências fundamentais para pensar e avaliar o percurso de qualquer projeto desse “fôlego”.

Aqui foi, para mim, mais que um lugar fundamental de trabalho. Fiz aqui amigos “entranháveis”, desses que não se perdem. É isto.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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