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Resumo
Resenha de Françoise Dolto, A causa dos adolescentes, São Paulo, Idéias & Letras, 2004, 350 p.


Autor(es)
Camila Salles Gonçalves
é doutora em filosofia pela fflcusp, psicóloga pela pucsp, psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, autora de publicações sobre psicanálise e filosofia.


Notas
1. Françoise Dolto, La cause des adolescents, Paris, Robert Laffont, 1988, p. 10.


Abstract
Review of Françoise Dolto, The cause of the teenagers (La cause des adolescents) Françoise Dolto’s last book, published after her death in 1988, results from her inquiries about adolescence. She considers it to be a period both of fragility and of enchantment. Grown-ups should respect and help the youngsters who have to go through this very diffi - cult phase, she says. An important feature of her approach is emphasis on the rites of passage, something our Western societies seem to have lost view of.

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 LEITURA

Em defesa dos adolescentes

A plea in favor of adolescents
Camila Salles Gonçalves


Resenha de Françoise Dolto, A causa dos adolescentes, São Paulo, Idéias & Letras, 2004, 350 p.

Esse livro póstumo de Françoise Dolto resulta de suas pesquisas a respeito da adolescência. A autora assinala que se trata de um período frágil e maravilhoso e mostra, de vários modos, que os adultos deveriam respeitar e auxiliar o jovem, que terá de fazer a travessia dessa fase diÞ cílima. Dolto aborda ainda a falta que fazem os ritos de passagem, deixados de lado pelas sociedades ocidentais.

Já faz anos que, de vez em quando, durante entrevistas com pais de adolescentes, utilizo alguma versão ad hoc da imagem, apresentada por Françoise Dolto, da muda de casca de certos crustáceos, que traz a fragilidade, a necessidade de enÞ ar-se em buracos escuros e as cicatrizes desse tempo, que permanecer ão sob a nova casca. Essa metáfora dramática está em A causa dos adolescentes, datado de 1988, ano da morte da autora. O livro, que teve nova publicação em português há dois anos, resulta de sua pesquisa sobre o período crí- tico da adolescência, no qual é preciso percorrer um solo instável.

Em que sentido a obra resulta de pesquisa? Creio que lato sensu. Abrange aÞ rma ções, cujos fundamentos clínicos não aparecem de imediato com elas relacionados, além de consultas a informa ções coletadas em relatos de historiadores e etnólogos; interpretações da mitologia grega; citações comentadas das visões da juventude em renomados escritores; tabelas de etapas de desenvolvimento segundo Gesell; anexos com estatísticas de gravidez e de suicídio entre adolescentes em alguns países; descrição de comportamentos policiais e da legislações em relação ao consumo de drogas; bibliogra- Þ a, Þ lmograÞ a etc. Com efeito, essa miscelânea parece não ter grande organização metodol ógica. Porém, resultando do profundo interesse da autora e de seu empenho na causa, não deixa passar em branco e, por assim dizer, estrutura a condução da defesa daqueles que vão “affronter cette mort à l’enfance” [1].

Sua concepção da adolesc ência como uma fase caracterizada pela morte da infância leva a autora a valorizar com insistência a morte iniciática. Ela ressalta que, “da Austrália à África do Sul, da Terra do Fogo à Oceania, e até Taiti” (p. 92), há uma dramaturgia comum a ritos ancestrais de iniciação. O noviço ou neóÞ to, ao passar por uma morte simbólica, ver-se-ia posto diante de um poder mítico, detentor do segredo da ligação entre o Céu e a Terra. Esses ritos serviriam para favorecer a sublimação da castração simbólica.

Dolto faz sua interpreta- ção dos ritos e justiÞ ca deste modo seu interesse por eles: “Presumo que seja o papel essencial que devemos hoje resguardar desses dados da etnologia. Essas provas coletivas ajudavam os jovens a se libertarem do sentimento de culpa transgressiva que toma conta deles, pois a passagem feita sozinho, sem apoio, é vivida como uma transgressão” (p. 92-93).

Esse parágrafo me faz lembrar de situações com adolescentes nas quais cheguei a me perguntar como seria se ele ou ela não pudesse expressar, na análise, algo do vivido em certas primeiras experiências. Em um de seus momentos, a meu ver, mais felizes, o texto prossegue: “Mas é necessário também que ela (a passagem) ocorra sob o peso de certa ameaça, pelo confronto real com o perigo. A transgressão se torna desde então entronização, e o medo de violar e de ser violado (ou castrado) se desfaz” (p. 93).

Tomo a liberdade de entender por confronto real com o perigo o campo das experi- ências novas e não vigiadas de que a juventude necessita para viver uma vida própria, o que nem sempre é admitido pelos adultos do núcleo familiar. Com freqüência, estes são levados a negar ou tentar reprimir as conquistas que o adolescente precisa realizar.

Para Dolto, não há um conceito claro de adolescência, nem mesmo uma idade bem deÞ nida para essa etapa de desenvolvimento do indiv íduo. O que ela faz questão de frisar é que o estado de adolescência “se prolonga de acordo com as projeções que os jovens recebem dos adultos e de acordo com o que a sociedade lhes impõe como limites de exploração” (p. 14). A autora entende que a adolescência é ruptura com o estado de infância, ruptura marcada por um fato, que é o surgimento da “possibilidade de dissociar a vida imaginária e a realidade, o sonho e as relações reais” (p. 20).

Que sociedade é esta, em que os limites de explora- ção estão relacionados com a adolescência? Uma sociedade que se caracteriza sobretudo pela ausência de ritos de inicia ção, que deveriam propiciar ao jovem o reconhecimento de que ele “tem o direito de alcançar aquele estágio” e o apoio da condução solidária “de uma margem para outra” (p. 20). Uma sociedade “em que o jovem não consegue, de modo lícito, obter aquilo com que possa dizer não a seus pais e dizer sim a seu futuro, ‘sim a mim e a minha formação’” (p. 28).

Caberia aos adultos, oÞ - ciando o rito, facilitar que o jovem integrasse o conjunto dos que estão na passagem, sem deixá-lo entregue a si mesmo, solitário em sua indigência. É para entendermos essa indig ência que Dolto emprega a metáfora famosa: “usemos como exemplo as imagens dos camarões e das lagostas que perdem seu invólucro natural: nessa hora eles se escondem debaixo das pedras, enquanto se desfazem de suas conchas para adquirirem defesas” (p. 16). Não se trata apenas de termos condições de compreender o que se passa, mas sobretudo de tomarmos consci- ência dos efeitos dos ataques a esses mutantes: “se, enquanto estiverem vulneráveis receberem pancadas, Þ carão feridos para sempre, sua carapa ça cobrirá novamente as cicatrizes e não as apagará mais” (p. 16).

Penso que a força dessas palavras lembra, também às pessoas que “cercam os jovens” (p. 16) e pretendem fazê-lo de modo favorável, que não basta o exercício da tolerância para com a aborresc ência. Tais pessoas “exercem um papel muito importante na educação deles durante esse período; embora não estejam encarregadas diretamente da sua educação, tudo que elas fazem pode favorecer o desenvolvimento e a conÞ ança em si e a coragem de superar suas impotências, ou, ao contrário, vêm o desânimo e a depress ão” (p. 16).

A autora nos diz que, quando era uma psicanalista iniciante, ninguém atendia adolescentes, pois havia uma idéia falsa, propagada pelos primeiros analistas, de que só pode haver psicanálise para aqueles que falam. Dolto insiste em sua convicção de que a adolescência é um período maravilhoso, no qual se vive a repetição do nascimento. Sem explicitar a relação entre esse seu pensamento e o seguinte, aÞ rma: “o jovem não tem as palavras para dizer isso, mas conseguimos trabalhar de inconsciente em inconsciente, ainda que ninguém fale” (p. 113).

Afinal, como lidava Dolto com o não falar? Ela não nos mostra, mas apenas reitera ser indispensável que o analista suporte o silêncio “como sendo uma boa relação” (p. 113) e observa que os adolescentes, que são mais mudos que as crianças, acham que falam e Þ cam satisfeitos com a sess ão. Notemos que não escreve alguns (adolescentes). Usa um artigo deÞ nido que faz sua aÞ rmação referir-se a todos, ter alcance universal, dando à sentença agora mencionada, como a outras, um certo teor dogmático.

Felizmente, não precisamos perfazer um credo completo para tirarmos proveito dessa extensa e intensa experiência clínica entrevista. Além disso, é admissível que o plaidoyer pour, o argumentar em defesa de, o estar em uma verdadeira cruzada, como era o caso de Dolto, aumente a apar ência dogmática de seu tom assertivo. Penso que o que vale ressaltar é o modo pelo qual as considerações que compreende nos fazem pensar.

Segundo Dolto, “no momento de sua muda o adolescente Þ ca mudo quando tem que falar daquilo que sente, pois as palavras mudam completamente de sentido” (p. 114). Não dispõe mais dos recursos da criança, de fabular e narrar “com a poesia das palavras e a metáfora do desenho” e, “por seu silêncio, julga ter dito tudo” (p. 114). Ela considera, em comparação com a psiquiatria sua contemporânea, que a psicoterapia “praticada por um psicanalista” (p. 114), sobretudo aquele que não tem medo do silêncio, tem mais condições de ajudar na muda.

A autora não passa por cima do espinhoso tema da inveja que pais e outros adultos sentem do adolescente, que os leva a posturas que negam sua capacidade de pensar e a atitudes autoritárias. Parafraseio um exemplo simples: o pai não quer perder a primazia da palavra nem o centro das atenções. Não raro, foi também frustrado por seus progenitores. É-lhe difícil reconhecer que o jovem começa a ter idéias. Procura desqualiÞ - cá-las e reenviar para a infância este que ousa se propor como interlocutor.

Como abandonar os pais de modo lícito? Como fazê-lo, como única condição para viver a própria vida e começar a se tornar cidadão do mundo? Lemos, em parágrafos que se apresentam como um libelo sem meias palavras, que “os adolescentes se tornaram uma classe de tanto serem rejeitados como incapazes pela sociedade ” (p. 28).

Um dos capítulos do livro abre-se afirmando que é preciso inventar algo novo para a geração jovem. Até aí, nada original. Mas esse novo é concebido como possibilidade de o sujeito atingir a autonomia de um modo criativo e que dê lugar à substituição. Implica uma autonomia estimulada pela oportunidade de fazer seus próprios inventos, pela acolhida da capacidade crítica e pelo encaminhamento das melhores condições, para que o adolescente possa mesmo substituir a vida supostamente protegida do estado de infância.

A realização do referido conjunto de condições desej áveis não é mera utopia. Há casos isolados, mas descritos por Dolto como de fato ocorridos. Lemos, por exemplo, a história de um garoto, considerado insuportável por seus professores na França, que chegou a fazer quatro vezes a mesma série. Sua mãe, tendo se mudado com os Þ lhos para Quebec, começou por estranhar as perguntas que lhe foram feitas durante a entrevista para matriculá-lo na nova escola. Não indagaram a respeito do relacionamento do garoto com os pais, nem daquele entre os pais, mas Þ - zeram perguntas, inéditas para seus ouvidos, a respeito daquilo de que seu Þ lho gostava e de com o que lhe agradava ser premiado. Nos primeiros dias, a mãe esperava o momento em que seu Þ lho seria dispensado pela escola.

O adolescente era inteligente, e os maiores problemas que causava, até então, resultavam do modo pelo qual costumava pôr seus mestres contra a parede. Anotava suas contradições e colocava: “Ontem o senhor disse isso, hoje o senhor diz o contrário, o que é que está valendo?” (p. 273). No início das aulas na escola canadense, à saída ele nada comentava. Um belo dia, chegou pedindo à mãe que ela o ajudasse a organizar uma lista. A professora pedira que a redigisse, indicando coisas que considerava erradas no quotidiano escolar. Auxiliado, ele conseguiu pôr em ordem dez itens de crítica. A escola reservava um horário para que os alunos apresentassem suas posições e estas eram votadas. Depois de entregar a lista e expressar parte de suas opiniões, nosso herói contou, muito satisfeito e compreensivo, que não tinha havido tempo para expor todas as suas críticas porque todos tinham direito à palavra. Quatro de suas colocações chegaram a ser votadas. Uma delas dizia respeito à inadequação de a aula de educação física preceder a de matemática. Concordaram com ele e o horário foi mudado.

Apesar de encontrarmos este e um ou outro exemplo de situação com Þ nal feliz, a obra de Dolto nos leva a enfrentar tragédias de fuga, de gravidez com desfecho depressivo, de drogadicção, de suicídio.

Sobre a gravidez adolescente, já com estatísticas valorizadas nos anos oitenta, quero destacar que a primeira psicanalista que vi desvendar o segredo de Polichinelo foi Dolto, ao dizer que o que se esquece é o desejo de engravidar que, muitas vezes, têm as adolescentes.

Na visão da autora, psiquiatras e pediatras seus contempor âneos não têm condi ções de lidar com certos perigos reais. Ela assevera: “Os médicos não gostam de falar de riscos de suicídio, pois, a partir do momento em que eles falam do assunto, acabou-se. Quanto mais drogas se administram ao jovem, tanto mais ele caminha para o suicídio, no dia em que estiver menos drogado” (p. 103). A inadequa- ção, a impotência e os procedimentos desastrosos desses proÞ ssionais resultariam, em grande parte, de seu despreparo para utilizar a mediação da palavra e da falta de condi- ções para distinguir fantasmas de atos. Para ela, “O médico não responde pela mediação da palavra mas pelo viés de objetos inibidores dos fantasmas, como se os fantasmas fossem atos” (p. 103).

Psicanalista, Dolto ensina- nos que o adolescente precisa de alguém capaz de ajudá-lo a histericizar o fantasma e acredita que a psican álise pode “salvar os fracassados ” (p. 104). Ela pergunta “Por que não lhe dizer: Você está na pior fase da sua vida. Se você não tivesse idéias de suicídio, não seria um adolescente ” (p. 104).

A questão da fuga dos adolescentes é apenas esbo çada. Há uma importante bibliograÞ a no anexo 2 e tamb ém estatísticas impressionantes. Mas estas palavras constituem, creio, um sábio lembrete:

“A fuga quase sempre é um ato solitário, conseqüência de uma reivindicação afetiva insatisfeita. Quando o adolescente pensa em fuga, considera- a como deÞ nitiva, pois ela deve consumar uma ruptura com a família e o ambiente. Quase sempre houve anteriormente numerosos projetos antes de passar ao ato” (p. 305).

Para encerrar estas notas de leitura, quero trazer uma outra imagem, que, para mim, é inseparável do campo atrav és do qual as experiências retratadas por esse livro, em certos momentos emocionante, nos guiam. Evoco o Þ nal famoso e inovador de Les quatre cent coups, Þ lme de François Truffaut (1960), cujo título para exibição no Brasil foi Os incompreendidos. A câmera nos faz acompanhar a última seq üência da fuga inevitável do garoto e, de repente, detémse. Corte e ruptura, por meio da súbita redução à imagem paralisada. Deixa-nos diante do olhar de medo e desamparo, que, sem nos buscar, nos encara perdido.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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