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Resumo
O que seria da Psicanálise sem as teses freudianas a respeito da sexualidade infantil? De que inconsciente se trataria, então? Nenhum psicanalista se disporia sequer levar a sério perguntas tão descabidas. Entretanto, sabemos da presença de controvérsias no universo das teorias psicanalíticas sobre o que seja e qual seja o lugar da sexualidade infantil na condução das análises. Um livro merece ser especialmente lembrado nesse contexto: Lês Chaînes d’Eros – actualité du sexual (André Green, 1997). O que levou Green a afi rmar veementemente a sexualidade infantil – ou seja, a vida erótica presente desde o nascimento – nas bases da conduta analítica parece ser uma preocupação com os destinos das pulsões nas diversas teorizações contemporâneas. O debate, cujo foco é a sexualidade infantil, é um debate sobre os destinos da psicanálise entendida desde o interior de seus próprios fundamentos. Por levarmos em conta a importância desse aspecto no processo de formação de analistas e na condução de todas as análises, decidimos propor a dois colegas que colaborassem, nesta edição de Percurso, atendendo à nossa seguinte formulação: “Completado mais de um século da publicação de Três Ensaios de Teoria Sexual, que sabemos compartilhar importância com A Interpretação dos Sonhos, gostaríamos do seu comentário sobre a relevância e a pertinência atuais desse texto freudiano para as elaborações psicanalíticas contemporâneas.” O leitor, agora, contará, em suas próprias ponderações, com as palavras que se seguem para indagar a Psicanálise sobre ela própria.


Autor(es)
Daniel Delouya
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do do Instituto Sedes Sapientiae e da Sociedade Brasileira de Psicanálise. Professor no programa de pós-graduação em psicologia na Universidade São Marcos em São Paulo. Autor de Torções na razão freudiana. Especificidades e afinidades, Unimarco, São Paulo, 2005, entre outros livros e artigos em revistas especializadas.

Miriam Chnaiderman Chnaiderman
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise, doutora em artes, documentarista.


Notas

1 L. A. Celes, “Cem anos dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade – a sexualidade infantil e seus problemas, no site do IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais, 1905.

2 O. Massotta, O comprovante da falta, Campinas, Papirus, 1987, p. 21.

3 C. S. Katz, “Ferenczi, a 1ª teoria pulsional”, in A. H. de Moura, As pulsões, São Paulo, Educ/Escuta, 1995, p.109.

4 J. Laplanche, “A ordem vital e a gênese da sexualidade humana”, in Vida y Muerte em psicoanalisis, Buenos Aires, Amorrortu, s.d.

5 J. Lacan, O Seminário livro 4 A relação de objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995, p. 11.

6 B. Brusset, «Métapsychologie du lien et ‘troisième topique’?», Bulletin de la Societé Psychanalytique de Paris, Relations d’objet et modèle de la pulsion, n.78, nov/déc/2005, p.23-88.



Abstract
What is the place of infantile sexuality in the way we conduct treatments today? Important as the theses on this subject are to Freud’s theory, it has been noted (by André Green, among others) that in practice they seem much less present than in former decades. This is due more to emphasis in other areas of mental functioning than to infantile sexuality having lost its central place in the processes of constitution and development of the mind, say our colleagues in this debate, which focuses on the relevance of Freud’s There Essays for contemporary practice.

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 DEBATE

Psicanálise: sexualidade infantil

Psychoanalysis and infantile sexuality
Daniel Delouya
Miriam Chnaiderman Chnaiderman


O que seria da Psicanálise sem as teses freudianas a respeito da sexualidade infantil? De que inconsciente se trataria, então? Nenhum psicanalista se disporia sequer levar a sério perguntas tão descabidas. Entretanto, sabemos da presença de controvérsias no universo das teorias psicanalíticas sobre o que seja e qual seja o lugar da sexualidade infantil na condução das análises. Um livro merece ser especialmente lembrado nesse contexto: Lês Chaînes d’Eros – actualité du sexual (André Green, 1997). O que levou Green a afi rmar veementemente a sexualidade infantil – ou seja, a vida erótica presente desde o nascimento – nas bases da conduta analítica parece ser uma preocupação com os destinos das pulsões nas diversas teorizações contemporâneas. O debate, cujo foco é a sexualidade infantil, é um debate sobre os destinos da psicanálise entendida desde o interior de seus próprios fundamentos. Por levarmos em conta a importância desse aspecto no processo de formação de analistas e na condução de todas as análises, decidimos propor a dois colegas que colaborassem, nesta edição de Percurso, atendendo à nossa seguinte formulação:

“Completado mais de um século da publicação de Três Ensaios de Teoria Sexual, que sabemos compartilhar importância com A Interpretação dos Sonhos, gostaríamos do seu comentário sobre a relevância e a pertinência atuais desse texto freudiano para as elaborações psicanalíticas contemporâneas.”

O leitor, agora, contará, em suas próprias ponderações, com as palavras que se seguem para indagar a Psicanálise sobre ela própria.


DANIEL DELOUYA: Tantas comemorações! Completamos 100 anos dos Três ensaios ... (e, também, dos menos visitados Chistes...) e quase 150 anos do nascimento do Freud, e a pergunta “são ainda relevantes, pertinentes?” insiste em bater nas nossas portas. Homenagem, valorização do passado? Não necessariamente! É a celebração modernista do contemporâneo pelos invejáveis vizinhos que nos incita, nos apressa às reformas. Os achados da geologia e os objetos da arqueologia perderam, vertiginosamente, o seu poder de atração. Alarmado, Freud advertiu os analistas sobre a tendência de desviar o foco do trabalho do sonho cuja descoberta exige, como na arqueologia, a paciência em cavar, observar, interpretar. Na falta dessa empreitada, confunde-se a matéria e a inteligibilidade inconscientes com as revisões secundárias que elas sofrem.

Entretanto, aderir a sua recomendação não é questão de boa vontade. Existem forças poderosas que nos atropelam continuamente. Freud abre o segundo ensaio com a observação sobre a negação da sexualidade infantil pela grande maioria daqueles que se dedicam à investigação da infância. Tudo que Freud credita à sexualidade infantil é atribuído por eles à herança genética. “Nada de inesperado”, observa ele com candura, e nos explica: “eles sofrem, como todos nós, da amnésia infantil”. Seu repúdio e sua enérgica contestação são, continua ele, remanescentes das barreiras de nojo, da vergonha e dos padrões morais erigidas na fase da latência contra a sexualidade infantil em prol da formação dos “sentimentos sociais”... O culto e a submissão massivos à crença nos genes, à globalização, à padronização e, sobretudo, à pureza – no que diz respeito ao corpo assim como no que tange os ideais –, estão, como nos mostram os críticos atuais, entre as feições mais nocivas do nosso tempo. Encontramo-nos, pois, no pólo extremo de uma e mesma linha reta dos contemporâneos de Freud.

Freud previu, a partir dos anos vinte do século passado, esses aspectos do mal-estar na cultura. Mal-estar oriundo das conseqüências das exigências sublimatórias impostas pela cultura sobre o nosso arranjo pulsional. A observação deste desgaste destrutivo e contínuo, sofrido pelo infantil, pelo psíquico e a memória que o constitui, revela, certamente, um fator limite não contemplado pelos Três ensaios... Entretanto, as três cenas que compõem a peça dessa obra são a condição da apreensão da natureza do universo psíquico, seus alicerces e portanto, também, da ameaça constante que paira sua preservação na vida em cultura.

A primeira cena se volta para o caráter perverso do sexual, da pulsão sexual. A segunda descreve a parcial “educação” dessa pulsão, quando o bebê se apropria (auto) dela em meio aos cuidados e incitação sexual do adulto, precipitando- se nele, em negativo, os seus futuros alicerces e referências internas. Freud discorre sobre o roteiro e a organização dessas referências sob a égide do complexo do Édipo e da castração. Na terceira, a entrada em latência que prepara a saída, na puberdade e adolescência, em direção aos “objetos externos” – em função da nova onda sexual –, confere um desfecho à constituição do sujeito e seu devir em meio aos outros.

Não surpreende que a atenção à contemporaneidade tenha gerada uma série de considerações relativas à referida terceira cena. A proliferação de estudos sobre a adolescência é impressionante. Entretanto, muitos deles carregam o sintoma contemporâneo da negação e ignorância da sexualidade infantil de origem, preferindo a inteligibilidade do discurso moderno voltado ao social.

O texto de 1905 não é de fácil leitura. Há quem o considere atípico à escrita literária de Freud, pela escansão cênica, de uma apresentação quase sistemática de um “scholar”, “estudioso” da sexualidade. Outros, leitores de Freud em alemão, nos alertam sobre os percalços das traduções que acabam suprimindo a linguagem erótica do texto – um exemplo disso é o chupar do dedo que recalca as descrições sensuais contidas nas palavras originais de Freud. Seja como for, não vejo nenhuma parte “superada” ou irrelevante, mas, ao contrário, todo o roteiro é imprescindível ao nosso ofício e, sobretudo, para o entendimento do que destacamos como contemporâneo.

MIRIAN CHNAIDERMAN: No prólogo à terceira edição de Os três ensaios de teoria sexual 1914 Freud problematiza a relação entre a ontogênese e a filogênese e reafirma como traço fundamental desse trabalho “sua deliberada independência em relação à pesquisa biológica”. Afirma: “Evitei cuidadosamente introduzir expectativas científi cas provenientes da biologia sexual geral, ou da biologia das diversas espécies animais...” Nada mais atual, em um momento onde assistimos à expansão da “neuropsicanálise”, onde proliferam críticas à prática psicanalítica, afi rmando a pesquisa bioquímica como única saída possível para o trabalho com os estados da alma. Os Três ensaios... são uma afi rmação da independência epistemológica da Psicanálise em relação aos moldes científi cos daquele momento. Mas não só daquele momento. Hoje todas essas questões são mais do que nunca relevantes. Chama atenção a observação que Freud faz no prólogo à quarta edição (1920): “Mas, a parte que se relaciona com a biologia, cujas bases se oferecem nesse pequeno escrito, segue despertando uma discordância que não acabou, e ainda pessoas que durante um tempo se ocuparam intensamente da Psicanálise viram-se movidas a abandoná-la para abraçar novas concepções, destinadas a restringir novamente o papel do fator sexual na vida anímica normal de patológica”. Claro que Freud está aqui polemizando com Jung e outros tantos, que restringiram o alcance do sexual na compreensão do humano. Mas, não penso que hoje seja muito diferente. Aliás Luis Augusto Celes, em artigo que embasou sua fala no IV Encontro Latino Americano dos Estados Gerais [1], mostrou como a Psicanálise hoje vai se distanciando do sexual. Afi rma Celes: “Absorveram-se as diversas e sofridas vicissitudes psíquicas às questões da boa adaptação do ‘ambiente’, diante do que se entende o inconsciente como resto não adaptado... Com isso, o inconsciente-resto descaracteriza- se de sua natureza sexual, ou, pelo menos, descaracteriza- se como efeito da sexualidade em confl ito”. Celes mostra como nas teorizações contemporâneas a pulsão, o Édipo, a castração são retomados secundariamente como funções egóicas em meio a outras, ou funções do self.

Esquece-se o que Freud mesmo acentuou em relação aos Três ensaios..., naquilo que teria de mais inovador, qual seja, o peso que dá à vida sexual em relação a todas as atividades humanas e a tentativa de ampliar e redefi nir a sexualidade. Constitui-se, então, o pilar da teoria psicanalítica, algo que já vinha sendo gestado mas que aí ganha consistência teórica.

A radicalidade da teorização freudiana já se coloca no primeiro capítulo ao dedicar-se ao estudo das perversões, em uma proposta de ruptura entre pulsão e objeto. Citando Masotta: “A pulsão (alemão: Trieb) tem para Freud como característica fundamental a instabilidade do que a liga ao objeto (...), não há uma relação de determinação da pulsão do seu objeto. Isto é, a pulsão não tem um objeto determinado”. [2]

A diferenciação entre pulsão e instinto também é algo polêmico na Psicanálise contemporânea. Afi rma Chaim Katz em ensaio que é parte de uma coletânea sobre “As pulsões”: “Não existe o instinto como algo distinto das pulsões. A diferença entre instinto e pulsão é uma invenção de psicanalistas contemporâneos, que nada tem a ver com Freud e seus contemporâneos, para afi rmar o primado do Desejo e a submissão das pulsões a este”. [3]

Não é esta a posição de Laplanche que, baseado nos Três ensaios..., toma como fi o condutor do ensaio “A ordem vital e a gênese da sexualidade humana” [4] a distinção entre pulsão e instinto. Trieb e instinct são dois termos utilizados por Freud: instinct seria um comportamento pré-formado, cujo esquema é hereditário. A pulsão seria uma derivação do instinto. É a contingência do objeto que defi ne a pulsão.

Em nota acrescentada em 1910, Freud colocaria como diferença entre vida sexual dos antigos e a de seu tempo o fato de que “o acento fosse colocado na própria pulsão enquanto nós o colocamos no objeto. Eles celebravam a pulsão e estavam dispostos a enobrecer com ela inclusive um objeto inferior, enquanto nós menosprezamos a atividade pulsional e a desculpamos pela excelência do objeto”. É interessante pensar essa observação de Freud sob muitos aspectos: hoje, com o consumismo desenfreado que impera em nosso meio, a questão relativa ao objeto se faz cada vez mais proeminente. A pulsão, de fato, se perde em meio à necessidade de adquirir objetos que passam a valer enquanto emblemas de posições sociais. Tudo isso, porém, teve refl exos na própria história da Psicanálise. Não há como não lembrar Lacan na “Introdução” do Seminário sobre a relação de objeto: “Que a relação de objeto se tenha tornado, ao menos aparentemente, o elemento teórico primeiro na explicação da análise, disso lhes darei testemunho seguido...” [5]

Aliás, a relação de objeto é tema do Encontro de Psicanalistas de Língua Portuguesa, a acontecer em maio próximo em Portugal. Em um dos trabalhos a serem discutidos, Brusset coloca a dicotomia existente entre “modelo da pulsão e relações de objeto”, propondo sua superação por meio de uma metapsicologia do vínculo. [6] Algo bastante em voga na Psicanálise contemporânea.

Brusset alerta para a simplifi cação que pode haver quando se coloca a necessidade de uma opção entre o modelo da pulsão e o das relações de objeto: o modelo da pulsão “funda a posição epistemológica específi ca da Psicanálise como metapsicologia (...) a substituição da noção de relação de objeto à pulsão leva a uma outra, a da inter-relação, mesmo de interação, em lugar do aparelho psíquico. Sobre esse tema, o risco é a extensão dada ao modelo demasiado simples da interiorização e da exteriorização”.

Não me parece que o único risco seja esse apontado por Brusset, que vai procurar fundar uma tópica do vínculo, redefi nindo “as pulsões e os pensamentos nas suas relações com as emoções e as experiências primárias”. Não há como não retomar a advertência que Celes faz no ensaio acima citado: “...a análise tende a ser exercida como uma interpretação do jogo do vínculo entre terapeuta e paciente ...”, o sexual perdendo seu caráter traumático e fundante. Sobre o fato de o tema do 44º. Congresso da IPA ser o trauma, Celes aponta: “Nos novos desenvolvimentos não se torna importante o aspecto da sexualidade no trauma, não se considera relevante sua natureza sexual, mas a concretude traumática que, sendo sexual ou não, colocaria em questão a auto-conservação...”

Retomar os Três ensaios... é retomar todas as polêmicas aqui expostas e buscar resgatar o sexual em toda sua amplitude, fundante de qualquer clínica psicanalítica. O mergulho no texto freudiano só pode levar a uma postura crítica em relação aos caminhos e descaminhos da Psicanálise nos dias de hoje. É necessário relembrar, com Katz e Celes, que as fantasias se criam pulsionalmente e que é o mesmo movimento que cria o eu e o amor objetal. Tudo isso já está nos Três ensaios de teoria sexual, texto a ser sempre retrabalhado em movimento necessário para dar continuidade à invenção freudiana.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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