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Resumo
Adolescentes sem perspectiva apresentam-se em nossos consultórios. O encontro com o psicanalista representa uma das vias possíveis para endereçar o enigma da futura vida adulta.


Autor(es)
Renata Volich Eisenbruch
é psicóloga, psicanalista, doutora em psicopatologia fundamental e psicanálise pela Universidade Paris VII Denis Diderot, professora na Escola de Medicina da Universidade de Nova Gales do Sul, Sydney, Austrália.


Notas

1. S. Freud, “An Outline of Psycho-analysis” (1938), SE, Vl. XXIII, p. 150.

2. S. Freud, “Group Psychology”, op. cit., Vol. XVIII, p. 69.

3. J. Lacan, “Séminaire XIII - L’objet de la psychanalyse”, 1965-1966 (inédito).

4. J. Lacan, “Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Je” (1949), in Écrits, Seuil, p. 94.

5. P. L. Assoun, “Au Premier Regard- Pour une Métapsychologie du Ravissement Amoureux” in Nouvelle Revue Française de Psychanalyse, n. 49, 1994, Printemps, p. 46.

6. C. Calligaris, A adolescência, São Paulo, Publifolha, 2000.

7. Ibid, p. 64.

8. J. J. Rassial, Le passage adolescent: De la famille au lien social, 1998, Érès, p. 37.

9. C. Calligaris, op .cit p. 15.

10. J. J. Rassial, op. cit.



Abstract
For a teenager, the encounter with a psychoanalyst is one of the ways to address the enigma of adulthood without making use of methods that transgress social pacts. This article addresses marginality and the jouissance of transgression at this time of life, in which mutations in body and mind can lead to severe clinical conditions. A case involving a migratory process and a severe identifi cation crisis illustrates the search for an idealized identity through the acquisition of new cultural roots.

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 TEXTO

Singularidades da adolescência

Singularities of adolescence
Renata Volich Eisenbruch


Enquanto pulsão de morte, na medida em que esta pulsão age interiormente ela permanece muda; só se manifesta a nós no momento em que se dirige ao exterior, enquanto pulsão de destruição.
[1]
S. FREUD

Os efeitos da adolescência são consideráveis, afetando não só o indivíduo mas também a vida coletiva. As difi culdades desse período da vida fazem com que o conceito de saída se torne um termo mestre: seja como esperança de um alívio tanto por parte dos adultos quanto dos adolescentes quando ganham direito de saída do universo adolescente e acesso ao mundo adulto.

Assujeitado pelas pulsões, o adolescente tende a rejeitar seus pais, cuja presença reativa seus confl itos edipianos, e a ameaça de que o incesto se torna ainda mais viável.

Como alternativa à rejeição de bases identifi catórias da infância, existe uma busca, às vezes desesperada, de uma identidade nas raízes culturais ou no grupo social. Neste processo de crescimento, uma certa violência ou transgressão pode se manifestar socialmente.

Os sintomas sociais são também incidências da psicopatologia do sujeito.

O fundador da Psicanálise já expunha há quase um século: “É verdade que a psicologia individual tem como objeto o homem isolado e busca saber por quais caminhos este tenta obter a satisfação de suas moções pulsionais, porém, só excepcionalmente a psicologia individual está em posição de abstrair a relação deste indivíduo com outros. Na vida mental do indivíduo alguém está invariavelmente implicado, seja como modelo, objeto, apoio ou adversário; por esta razão a psicologia individual é simultaneamente uma psicologia social.” [2]

Em muitas sociedades ocidentais, as crianças são iniciadas na adolescência demasiadamente cedo e deixam-na demasiadamente tarde. Abrindo-se como um enigma, a adolescência é, sobretudo, o apelo de um ser humano que se encontra entre duas idades, entre menoridade e maioridade.

Na relação transferencial com o adolescente, o analista, cujo lugar se situa longe de uma função doutrinária, é constantemente convocado à demanda de dar a devida importância às mutações de uma imagem à outra do corpo do adolescente.

Na infância, principalmente, verificamos um movimento em direção à mãe e aos lugares que ela protege. É através destes movimentos que o mundo externo e a língua materna adquirirão algum valor. Esses valores terão um lugar operacional na vida dos adultos. Na adolescência, no entanto, esses mesmos valores serão questionados repetidamente. A perda na adolescência de valores anteriores, de referências é causa de várias depressões que podem se manifestar neste período da vida. Note-se também que várias são as tentativas maníacas para evitar tal depressão.

A constituição do eu depende de um espaço investido por distintos afetos, um espaço que pode ameaçar ou tranqüilizar a criança. Na infância, a constituição do eu implica a produção de objetos inapreensíveis, ou seja, objetos pulsionais como a voz, ligados à movimentação vocal ou invocante e ao olhar associado com a movimentação escópica. A voz e o olhar, articulados a outros objetos, sustentarão a dimensão imaginária.

A revolta adolescente é muitas vezes marcada pelo ódio, situando- se no domínio do afeto mais do que justifi cada por fatos da realidade. O sujeito procura um objeto para odiá-lo, com a fi nalidade de dar uma consistência ao seu ego imaginário que se encontra em difi - culdade. Ódio que muitas vezes é a última carta disponível à disposição do sujeito antes da sua morte psíquica ou suicídio. O ódio aniquila a relação com o outro, a relação consigo e fragmenta laços sociais, traçando perseguição e disseminação. O fundamentalismo religioso, ilustrado, entre outros eventos, na dramática semana de julho de 2005, quando bombas explodiram em Londres, exemplifi ca tal ódio. A carnifi cina que tomou conta da rede de transporte desorientou as mentes mais esclarecidas. Ataque que teve como alvo pessoas comuns, de diversas crenças, idades e nacionalidades. Um dos Kamikazes era um adolescente de 19 anos.

O tempo pré-edípico pode ter algumas características de um momento persecutório, ainda mais quando a mãe, negligenciando sua feminilidade em relação ao seu parceiro, passa a medir seu poder fálico sobre sua criança.

Da perspectiva psicanalítica, a voz e o olhar são os objetos que têm uma natureza pulsional e são atribuídos inicialmente à mãe primordial ou aquele que inicialmente se ocupa da criança. Formulado inicialmente a partir do objeto transicional de Winnicott, designando ineditamente a voz e o olhar como objetos pulsionais, Lacan formula o objeto a como sendo o objeto do desejo. “Objeto que está presente em toda parte da prática psicanalítica, porém ninguém pode vê-lo.” [3]

Na adolescência, as identifi cações precedentes referentes às relações sociais são questionadas. Uma etapa distinta é necessária para guiar o sujeito e reorganizar os espaços intra e intersubjetivo, trazendo outra vez à vida o olhar e a voz.

Na infância, o suporte do olhar privilegiado é originalmente a mãe ou seu substituto e mais tarde ambos os pais. Na adolescência, um companheiro detentor de um desejo particular é que seria dotado de um olhar privilegiado.

Para a moça, a questão da maturidade sexual se revela, entre outros fatores, pela menstruação e pelo crescimento dos seios que atraem o olhar, a vista, do outro. A mutação da voz é um fato que marca época na vida do rapaz adolescente.

Através do complexo de castração e da substantivação da castração da mãe, a criança é introduzida à estrutura edípica. Essa estrutura transforma, na ordem simbólica, o ser ou não ser tudo para sua mãe em ter ou não um desejo que seja reconhecido. Tal dinâmica implica uma distribuição de papéis femininos e masculinos. Essas distribuições podem ter como vicissitudes certos efeitos fóbicos, freqüentes nas crianças. Fobias manifestadas nesse momento como medo do escuro, de certos animais, de determinados ruídos etc. A criança tentará, no imaginário, reendereçar a separação inaugural do corpo da mãe. Tentativa que acentua a alienação do sujeito, uma tentativa que encontra outra vez seus dilemas na adolescência, quando o corpo se estende além da imagem do ego.

Na adolescência, o suporte do estádio do espelho, no après-coup, revela sua fraqueza. “Basta compreender o estádio do espelho como uma identifi cação no sentido pleno que a análise dá a este termo: a saber, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem.” [4]

Indagação adolescente: Qual imagem a ser assumida a fi m de pertencer? Além da patologia eventual, que pode afetar o corpo tal qual a anorexia e a bulimia, a imagem do corpo na adolescência é acoplada a dois olhares: o que se conforma aos modelos sociais valorizados pela sociedade e de outro lado ao modelo da família e dos amigos, um olhar que confi rme que o estatuto do corpo mudou.

O corpo nesta idade pode estar inicialmente em um estágio de cativeiro imaginário e opressor, privado de simbolização. É necessário que o olhar do outro constitua a função de um espelho. Que o adolescente possa sentir em si a presença de um atributo capaz de captar o olhar do outro e confi gurá- lo. Esta presença é necessária de modo que o sujeito possa ter sua imagem refl etida em um espaço limitado pelo corpo do outro. De outra forma, a vista perde-se em um poço sem fundo uma vez que nenhum receptáculo poderia conter esta imagem extrapoladora. Em alguns casos, a transformação do corpo pode representar uma catástrofe ao pubescente. O corpo que muda de estatuto perante os olhos de outros cria dúvidas quanto aos atributos sufi cientes para atrair o olhar de um possível parceiro. “O olhar, aqui e lá, organiza uma “diacrítica” ou teoria do julgamento – em ato – que decide, via o enigma do sexual, uma genealogia do amor”. [5]

A menarca traz para a garota os primeiros sinais da ascensão à vida genital. A mudança da voz que afeta os rapazes, acompanhada às vezes pela afonia, constitui um elemento importante no processo de identifi cação. Mesmo na vida adulta, certos analisandos se vêem falando em um desconhecido tom de voz, um tom que possa lembrálos ou identifi cá-los com alguém da sua história.

Uma esperança é reativada na adolescência, a de que um sentido novo possa ser atribuído à vida. Este pode também ser um momento de grande solidão.

A expressão comum “olhe para você”, proferida indignadamente por um adulto a um adolescente, revela a virada do universo da infância. Não podendo dominar as modifi cações que o corpo sofre, o adolescente – e por conseqüência certos elementos de seu mundo – é precipitado em uma crise. Crise também para os pais e demais integrantes do universo familiar envolvidos com ele. Isto pode evocar uma modalidade do instinto de morte levando certos adultos que intervêm na crise da adolescência a considerar a situação como uma emergência fora de controle, criando assim o pânico no círculo familiar e escolar, sobretudo em relação a drogas e engajamento em grupos fundamentalistas, previamente citados.

Determinados adolescentes vivem esta idade como um verdadeiro distúrbio. Na bulimia, por exemplo, a expropriação de uma parte do indivíduo pode constituir um momento desestruturante. O alimento é ocasionalmente uma tentativa de organizar um circuito fechado que possa obturar os orifícios para se proteger, seja do encontro invasivo com o Outro, seja de uma voz invasiva que venha da mãe tida como o primeiro representante deste Outro.

Nestes casos, incluindo-se aqui a anorexia, em vez de o alimento ser um objeto vital, ele passa a ser uma droga com todos os riscos que o vício pode conter. O problemático do vício é que pode ir além de toda a classifi cação nosológica.

Adolescentes queixam-se às vezes da opressão que estas modifi cações podem representar. A constatação é de uma falta de completude que não só os afeta, mas também os demais ao seu redor. Sentem uma aceleração no tempo e meios parecem não ser sufi cientes para lidar com tais mudanças. Esta vivência pode ser sentida como uma experiência de abandono. Uma morte possível da infância e, no entanto, o acesso barrado à vida adulta. A possível catástrofe da adolescência não está dissociada do enigma “O que os adultos e a sociedade esperam de mim?” Certas elaborações efetuadas pelo sujeito resultarão em diferentes destinos dos sintomas.

Contardo Calligaris, em seu livro A adolescência, analisa a forma pela qual as crianças representam para os adultos o consolo e a esperança. “Graças a elas, a insatisfação própria do sujeito moderno se torna suportável, pois o fracasso – inevitável numa corrida que desconhece faixa de chegada – alimenta a espera de que as crianças façam revezamento conosco” [6].

A iniciação na adolescência não está dissociada dos rituais e de seus destinos que são também o destino das pulsões. Reconhecemos na adolescência a importância da ascensão à sexualidade e o reagrupamento das pulsões parciais sob a primazia da pulsão genital.

Testemunhamos no mundo contemporâneo ações extremas de vandalismo tal como incêndio de carros, profanação de transportes públicos, a violência que já extrapola as ruas tendo chegado aos intramuros das escolas. Michael Moore, em seu filme Bowling for Columbine, oferece um testemunho da tragédia adolescente ocorrida em uma escola Americana com um desfecho fatal.

Em última instância, mencionamos a violência extrema contra si mesmo que pode culminar no ato radical de terminar com a própria vida. O suicídio entre adolescentes é globalmente um importante foco do mal-estar da nossa época moderna.

A fim de ser reconhecido, o adolescente pode procurar o tal reconhecimento fora do pacto social do universo do adulto. Em seu próprio grupo, é às vezes por meio da delinqüência, da transgressão, que o adolescente espera encontrar uma parceria. “O encanto de drogas ilegais na adolescência não está dissociado da geração precedente, uma geração que associou sonhos de liberação social, sexual ou pessoal, às drogas... Os adolescentes podem ser seduzidos pelo risco que as drogas representam. Protestam que um pai os infantilize proibindo o uso da droga. Os adultos podem preventivamente reprimir os adolescentes impondo regras a seu comportamento. O adolescente interpreta este ato como uma indicação de sua imaturidade.” [7]

O encontro do adolescente com um psicanalista pode abrir os horizontes do inconsciente permitindo que o adolescente dirija-se à pergunta “o que é ser um adulto” sem ter de necessariamente passar ao ato e contradizer pactos sociais. Uma forma de operacionalizar tal aspecto no tratamento psicanalítico consiste na elucidação, através da construção de sua própria história e da fantasia, da posição subjetiva implicada na transgressão. Isso representou uma etapa importante na análise conduzida com um rapaz expatriado de 16 anos. Sua voz era inicialmente quase inaudível. Após um longo período em que foi testemunhada a raridade das palavras e a insuportável pressão exercida pela escola e família, formula a seguinte pergunta: “Quando e como acaba o limbo da adolescência?” Antes de chegar à análise, passou por internações em seu país natal no continente Africano. Medida adotada a fi m de circunscrever o que designaram como um comportamento anti-social, marginal, culminando por caracterizá-lo como comportamento delinqüente. No seu país de origem, para evitar a prisão, havia sido colocado no chamado “Centro educacional fechado.” Esse centro consistia numa solução alternativa para os designados como delinqüentes. Apesar do belo jardim nos arredores da instituição, havia cercas com arames farpados, alarme nas janelas, cada movimento era cuidadosamente monitorado e relatado. Algum tempo após ter sido liberado do centro correcional, o rapaz teve a permissão para emigrar com a família, sua mãe e dois irmãos. Emigraram para reunirem-se com seu pai que por três anos já estava trabalhando no país onde o encontrei.

Ironicamente, é somente por meio da introdução de questões espinhosas de fi lhos adolescentes que um dos pais, ou ambos, podem também formular uma demanda de ajuda para si.

É vital isolar a demanda do(a) adolescente como distinta daquela dos pais se estes forem os primeiros a formulá-la. A partir disso, é essencial que os adolescentes compreendam que o ritmo das sessões é distinto daquele que organiza o cotidiano e outros vínculos sociais. Antes de concordar em dias fi xos da semana, é necessário, às vezes por um período longo, marcar o horário da sessão seguinte uma por uma.

A psicanálise com adolescentes deve levar em conta que o questionamento por parte do(a) adolescente é muito mais presente e utilizado por ele(a) como resistência às livres associações. As intervenções analíticas, várias vezes, são ceticamente questionadas em vez de favorecer a livre associação.

Se na análise da criança o olhar do analista pode ter uma sustentação simbólica de validação em relação aos desenhos e ao brincar, nos adolescentes a dialética é muito distinta. Ao olhar uma manifestação gráfi ca da criança, valida-se sua criatividade e produção. No caso desse adolescente, o olhar teve outra função.

A razão de utilizar o divã não foi justificada tanto pelo protótipo de um tratamento psicanalítico, porém mais como uma maneira de manter afastado meu olhar, como instância crítica, de seu campo de visão. O meu olhar era às vezes utilizado pelo analisando como um indício para predizer se sua “conduta crítica” – como a nomeavam pessoas de seu meio – era endossada por mim ou não. No divã, ele não podia basearse no meu olhar como uma sustentação imaginária para sua narrativa.

Pressionado pela necessidade de escapar de seu estado de incerteza, teve de se reassegurar de que não estava sendo julgado por mim, que eu não representava um ideal ao qual ele deveria se adequar. Isso colocou em questionamento suas identificações.

O fato de que a sessão às vezes terminava com uma pergunta formulada por ele permitia-lhe fazer um trabalho que conduziu a uma saída da repetição estéril. Perguntou-se qual era a diferença entre ele ou um pai mais idoso que se deitava nesse mesmo divã. Enfrentando meu silêncio, disse: “eu te transtorno bem mais”. O verbo “bousculer”, utilizado por ele na língua em que a análise aconteceu, foi associado a todo um material que se tornou bastante operativo. Este verbo em francês faz referência a uma modifi cação que causa impacto, ao dinamismo; neste contexto, referência à vitalidade do processo transferencial.

Inicialmente, apesar de sua arrogância aparente, o adolescente se mostrava bastante fragilizado. Ele era incapaz de dormir e, tomado pela insônia, ficava acordado em seu quarto a maior parte da noite adormecendo no dia seguinte na sala de aula do colégio técnico que freqüentava.

Questões familiares apontaram para uma dialética dolorosa com seu pai, que bebia constantemente e que, perante a própria esposa, trazia parceiras para casa, algumas delas não muito mais velhas do que seu fi lho. Várias vezes teve de dirigir o carro do pai, conduzi-lo, devido ao estado de embriaguez em que se encontrava. Esse rapaz considerava o pai um desperdício para a sociedade. Um dos sentimentos mais dolorosos que enfrentava era a vergonha que sentia em relação a ele.

A mãe foi constantemente humilhada pelo pai e dependia economicamente dele. Finalmente começou a trabalhar, abriu uma conta bancária própria, deliberadamente, em um banco separado daquele onde o pai mantinha suas fi nanças.

Em certo momento, o pai foi encontrado bêbado na porta do banco da esposa, mendigando por alguns trocados a cada pessoa que entrava no banco. Foi também de caixa em caixa fazendo o mesmo pedido. O gerente do banco chamou a esposa para que viesse buscar seu marido. Diz o analisando: “um pai que nunca manteve uma promessa e que, no entanto, cumpria todas as suas ameaças”. Um pai cuja função operatória, na estruturação subjetiva desse rapaz, é quase ausente, não oferecendo à mãe uma sustentação simbólica, fundada sobre uma lei de trocas em relação aos fi lhos.

Na adolescência, o estatuto dos pais é questionado. Há um olhar que testemunha que os pais estão envelhecendo, que estão sob a possível ameaça de uma perda, afetando assim a integração imaginária do Édipo: o desejo inconsciente de morte em relação ao pai está reativado uma vez que este se revela envelhecendo e sendo mortal.

A identificação enquanto ser adulto solicita uma inserção do adolescente na linhagem familiar. No caso desse rapaz, o confl ito manifesto entre a nova pátria e a terra natal alude a um outro confl ito. Existe de um lado a promessa trazida pela infância passada e vivida na familiar terra natal. De outro lado, a incerteza do futuro em uma terra estrangeira onde não teve passado e onde os signifi cantes são desconhecidos. A fantasia construída é um instrumento que serve para lidar com a nova realidade. Fantasia que é também o vínculo confl itivo entre ele e o objeto do desejo inconsciente.

Evoco esse rapaz uma vez que sua situação ilustra o quanto as incertezas de um jovem imigrante podem redobrar as incertezas específi cas da adolescência. Encontrar-se entre duas realidades sociais, entre duas possíveis cidadanias, entre os dilemas de identidades. Recontar a infância passada e engajar-se em uma realidade estrangeira que testemunha no horizonte a nostalgia pela terra natal. A imigração representou, entre outras, uma perda do espaço semiótico que a língua materna constitui.

O ritmo das sessões variava assim como o modo através do qual o pagamento era efetuado. Em um primeiro período houve uma necessidade de desconstrução das fi guras de autoridade, de modo que em um segundo momento a construção da fantasia se tornasse possível. Essa construção efetuou-se por meio da experiência transferencial que, por um tempo inicial, girou em relação a uma dívida comigo. Ao analisar a questão das sessões iniciais não pagas, do gozo da transgressão que se manifestava no horizonte de sua fala, tornou-se possível a construção de seu lugar na fantasia e mais tarde a modifi cação dessa fantasia.

A sua procura, às vezes desesperada, de uma base identifi catória nas raízes culturais do novo país, possibilitou, pela análise, o acesso ao problemático de sua inserção na linhagem familiar. A conduta delinqüente alimentava uma reação de rejeição que ampliava o fracasso da inserção social e familiar.

Uma etapa importante se instaurou quando o paciente pôde utilizar o dinheiro de seu trabalho como aprendiz técnico para pagar algumas de suas sessões. Isso indica a necessidade do analista de ocupar uma posição distinta da condescendência. A pergunta que se coloca é se nesta idade da vida, em certos casos, os pais deveriam ainda ser responsáveis pelo pagamento do tratamento. Mesmo um adolescente designado socialmente como errático e anti-social é capaz, ocasionalmente, de renunciar a seu dinheiro. Pagamento que também representa uma maneira de renunciar a algum tipo de gozo deletério que porta em seu âmago um certo gosto pela morte.

Inicialmente, por meio da dívida em relação à análise, a pergunta se colocou: “Qual é a origem do dinheiro?”. Alguns anos antes de ter emigrado, esteve envolvido, através de cartéis, em tráfi co de drogas. Por este meio, acreditou estar constituindo uma autonomia econômica não acessível ao seu pai. Na adiantada adolescência, seu próprio pai desejou livrar-se da tirania de sua família e sair de casa, mas não possuía autonomia ou recursos econômicos para fazê-lo.

Alguns adolescentes imaginam que sendo anti-sociais realizariam certas aspirações dos adultos que não tiveram a possibilidade de realizá- las. O erro com relação a esta lógica é que, tal qual este paciente acreditou, trafi cando drogas e tendo uma autonomia econômica, ganharia a admiração dos adultos próximos a ele e, sobretudo, de colegas da gangue.

A estratégia a ser estabelecida em relação ao adolescente é causa intensa de confl ito para aqueles que dele se ocupam. O espectro varia da tolerância à repressão ou à proteção, proteção considerada muitas vezes imprópria pelo adolescente. Pela transgressão ele se situava na marginalidade como um pária. Marginalidade que constitui um fator e testemunho de sua vulnerabilidade. A quem é esta transgressão endereçada? A análise deste questionamento e de confl itos resultantes da transgressão auxiliou a tornar mais suportável sua depressão e angústia. O confl ito não é só réplica do confl ito edípico. Ele também se associa nesse caso ao confl ito entre um eu desestabilizado e um eu ideal.

O confronto entre a vida fantasmática e as transformações da adolescência afeta a dinâmica confl itiva. A angústia, enquanto afeto do ser vivo, está relacionada à dimensão do desejo inconsciente. Em O mal-estar na civilização, Freud aponta que o problemático da angústia em relação ao superego é que a renúncia não traz uma ajuda sufi ciente, pois o desejo inconsciente persiste e não pode ser dissimulado pelo superego.

Jean Jacques Rassial fala de uma falha ou risco de falha – break down – do superego na adolescência. “Ele se confronta a este risco porque deve novamente, e precisamente no après-coup, realizar uma série de operações inauguradoras cuja efetuação é remetida à ordem do dia. Da identifi cação familiar à identifi cação geral no social há um hiato que exige do sujeito uma operação de facetas múltiplas…” [8]

Como lembra Calligaris, apesar do possível êxito social ou fi nanceiro, o adolescente é submetido a um tempo de espera, a uma moratória que é imposta. “Seus corpos, que se tornaram desejantes e desejáveis, poderiam lhes permitir amar, copular e gozar, assim como se reproduzir. Suas forças poderiam assumir qualquer tarefa de trabalho e começar a levá-los na direção de invejáveis sucessos sociais. Ora, logo nesse instante, lhes é comunicado que não está bem na hora ainda.” [9]

Este período de espera cria muitos elementos geradores de turbulência. Em épocas modernas, percebem a contradição entre o ideal da autonomia e a imposição da dependência contínua. A velocidade das mudanças na modernidade torna problemática a transmissão de uma tradição dos pais aos adolescentes que têm então que reinventar uma referência estável. “É somente se o analista aceita que a crise é essencial e sem resposta que ele pode, questionando, autorizar a análise de um adolescente.” [10]

Se, por um lado, é um trunfo ser protegido do individualismo agressivo existente em certos mercados de trabalho na sociedade contemporânea, por outro lado, os seres humanos não podem permanecer eternamente crianças. Devem afi nal emergir e enfrentar também o aspecto hostil da vida adulta.

Os adolescentes têm de responder com seus próprios meios a este momento privilegiado de suas vidas em que enfrentam a sua sexualidade. A partir de um desejo hesitante tentam organizar um novo lugar. É também na experiência intersubjetiva que desejam ser reconhecidos. Este processo pode conduzir a uma busca sem fi m de um parceiro, o que explica um certo Don Juanismo da parte de adolescentes de ambos os sexos. Nesse tempo da vida, a relação sexual parece mais do que nunca uma solução para a interação intersubjetiva.

Adolescentes de diferentes percursos encontram-se e constituem grupos através dos quais perseguem e praticam certas aspirações proibidas no mundo adulto. Sendo reconhecidos entre si, acreditam poder dispensar a necessidade de um reconhecimento por parte dos adultos.

As questões da adolescência põem em causa o vínculo social, não somente no nível microcósmico como a família, mas também questionam os princípios constitutivos da sociedade. Delinqüência, toxicomania, suicídio, bulimia, anorexia, fundamentalismo religioso aludem não somente a uma desordem individual, mas também a um mal-estar em nossa civilização.

Adolescentes possuem uma história cujos sintomas não podem ser reduzidos aos sintomas da infância. Não obstante, certos mecanismos na infância podem predizer determinadas difi culdades na adolescência.

Muitos desafios da vida ocorrem durante estes anos. Sim, os adolescentes podem oprimir-nos ou transtornar-nos de uma maneira incomum. Porém, além de sua onipotência e fragilidade, transmitem também uma sabedoria esquecida sobre a sobrevivência em uma sociedade que é considerada, nesse tempo da vida, atraente e revoltante, desprezada e desejada.

Enquanto analistas, crendo na virtude da narrativa e na inteligibilidade do processo movido por suas forças inconscientes, colhemos os dizeres de adolescentes. Dizeres que parecem abandonados ao longo das sessões. Na colheita, porém, manifestam-se os elementos que oferecem à história de cada ser sua verdadeira dimensão.

Com Joseph Conrad, grande romancista que forjou um estilo admirável em uma língua outra que sua língua materna, concluímos: Na verdade, a questão não é como curar, mas como viver. Dito tão vital quando o suicídio e atos Kamikazes parecem eleitos, em uma proporção cada vez mais alarmante, como solução em face da falta de referências na adolescência. Apostar na adolescência signifi ca apostar em uma etapa que é parte integrante e essencial do crescimento humano.
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