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Resumo
A figura clínica da perversão tem sido definida na literatura por meio de dois eixos conceituais: o do desvio sexual e o da especificidade da transferência perversa. Seriam eles complementares, ou excludentes?



Notas

1 S. Freud (1927), “Fetichismo”. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas. Rio de janeiro, 1980. v. 21.

2. J. McDougall (1982), “A neo-sexualidade em cena”. In Teatros do eu: ilusão e verdade no palco psicanalítico. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1992; e (1995) “Os desvios do desejo”. In As múltiplas faces de Eros: uma exploração psicoanalítica da sexualidade humana. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

3. J. Clavreul (1967), “O casal perverso”. In J. Clavreul et al. O desejo e a perversão. Campinas: Papirus, 1990; p.137.

4. Idem, p.137.

5. Idem, p.138-139,

6. Idem, p.141.

7. G. Rosolato (1967), “Estudo das perversões sexuais a partir do fetichismo”. In J. Clavreul, et al. O desejo e a perversão. Campinas: Papirus, 1990.

8. D. Meltzer (1973), Estados sexuais da mente. Rio de Janeiro: Imago, 1979; p.156.

9. Idem, p.158.

10. Idem, p.159.

11. B. Joseph (1971), “Uma contribuição clínica para a análise de uma perversão”. In M. Feldman & E.B. Spillius. (orgs.) Equilíbrio psíquico e mudança psíquica: artigos selecionados de Betty Joseph. Rio de Janeiro: Imago, 1992; p.176.

12. R.H. Etchegoyen, “Perversión de transferencia. Aspectos teóricos y técnicos”. In R. Moguillansky, (org.) Escritos clínicos sobre perversiones y adicciones. Buenos Aires: Lumen, 2002.

13. S. Freud (1914), “Recordar, repetir e elaborar”. Op. cit., v.12.

14. H. Rosenfeld (1952), “Fenómenos transferenciales y análisis de la transferencia en un caso de esquizofrenia catatónica aguda”. In Estados psicóticos. Buenos Aires: Hormé, 1978.

15. S. Freud (1937), “Análise terminável e interminável”. Op. cit., v.23.

16. H. Rosenfeld, Op. cit., p.126; tradução minha.

17. Idem, p.75.

18. Malcolm, R. R. (1970) “O espelho: uma fantasia sexual perversa em uma mulher vista como defesa contra um colapso psicótico”. In E.B. Spillius, (org.) Melanie Klein hoje: desenvolvimentos da teoria e da técnica. Volume 2: Artigos predominantemente técnicos. Rio de Janeiro: Imago, 1990.

19. Kernberg, O. “Perversão, perversidade e normalidade: diagnóstico e considerações terapêuticas”. Revista Brasileira de Psicanálise, 32(1):67-82, 1998.

20. Etchegoyen, R. H. Op. cit., p.105.

21. Etchegoyen, R. H. Op. cit., p.77.

22. Freud, S. (1927) “Fetichismo”. Op. cit., v.21.

23. Freud, S. (1905) “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”. Op. cit., v.7.

24. Freud, S. (1908) “Sobre as teorias sexuais das crianças”. Op. cit., v.9.

25. Chasseguet-Smirgel, J. (1984) Ética e estética da psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

26. Estes três momentos seriam: o dos “Três ensaios” (1905), cujo eixo é a defi nição da neurose como “negativo da perversão”; o do artigo “Uma criança é espancada” (1919), que liga o masoquismo à questão da identifi cação; e o do “Fetichismo” (1927), que explica o caráter ambíguo do fetiche, apresentando a recusa da castração em sua relação causal com a dissociação do ego.

27. Meltzer, D. Op. cit.; p.156.

28. Kermberg, O. Op. cit.; p.73.

29. Pode-se constatar este fato observando-se, por exemplo, os critérios explicitados por Kernberg (Op. cit.) para a avaliação diagnóstica de pacientes com perversão sexual, que incluem, por exemplo, a investigação da vida sexual, dos vínculos afetivos e da relação conjugal; além do mais, ele se utiliza de uma prolífi ca classificação nosográfica própria, não raro recorrendo também à terminologia psiquiátrica do D. S. M., como, por exemplo, na adoção da categoria de “transtornos de personalidade”, em seu livro Agressão nos transtornos de personalidade e na perversão (Kernberg, O. [1992] Agressão nos transtornos de personalidade e nas perversões. Porto Alegre: Artes Médicas, 1995).

30. Dayan, M. “Normalidad, normatividad, idiopatía”. In Fundación Europea para el Psicoanálisis, La normalidad como síntoma. Buenos Aires: Kliné, 1994.



Abstract
Perversion has been clinically defi ned in literature by two conceptual axes, found in both the British wing of Psychoanalysis and in the Lacan-inspired French wing: sexual deviation and the specifi city of perverse transference. This paper discusses how each school approaches these axes and how they are mutually related. The question we should ask is, are these axes complementary or mutually exclusive? The author feels that the scales tip towards complementarity, but with some qualifi cations.

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 TEXTO

Do desvio sexual à perversão de transferência

From sexual deviation to transference psychosis


A figura da perversão tem sido caracterizada na literatura psicanalítica por meio de dois eixos, distintos mas articulados clínica e metapsicologicamente. Esses eixos se encontram presentes tanto na vertente inglesa da psicanálise como na vertente francesa de inspiração lacaniana, ainda que descritos com base em um referencial teórico e em um vocabulário conceitual diferentes, como não poderia deixar de ser. Ao primeiro poderíamos chamar de eixo sintomatológico, e, ao segundo, de eixo transferencial. Meu objetivo aqui é o de definir cada um deles, discutindo o modo como estão presentes nas duas vertentes da psicanálise e o peso que adquirem em cada uma delas. A pergunta que motiva esta investigação é: até que ponto esses eixos podem coexistir em uma dada defi nição de perversão? Ou seja: se definirmos a perversão com maior ênfase em um deles chegaremos a uma mesma figura conceitual a que chegaríamos se enfatizássemos o outro eixo? Seria possível que, ao assumir um desses eixos como central, acabássemos por definir uma figura conceitual em que a presença do outro eixo fosse cabível?

O primeiro dos eixos – mais antigo ou mesmo original – está presente na defi nição freudiana da perversão, cujas linhas básicas já estavam claramente traçadas por Freud, em 1905, nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, e reiteradas na conferência XXI das Conferências introdutórias sobre psicanálise (“O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais”), em 1917. A perversão é aí concebida, para dizer de modo sintético, como um desvio sexual. Mesmo considerando que a abordagem feita por Freud é francamente crítica à sexologia do século XIX, este modelo ainda marca seu vocabulário e defi ne o recorte que ele faz do fenômeno; o próprio termo “perversão” foi dela retirado. A perversão traz, assim, a rubrica das “aberrações” e da “inversão” sexuais, cuja causa repousaria em uma fixação infantil num estágio prégenital da organização libidinal, que impede as diversas correntes da sexualidade de se aglutinarem sob o eixo ordenador da genitalidade. Freud assenta sua compreensão sobre uma base comparativa entre neurose e perversão, formulando o conhecido axioma em que a primeira será vista como uma espécie de “negativo” da segunda.

Posteriormente, a compreensão da perversão vai ganhando um refi - namento metapsicológico. Primeiramente, nos anos iniciais da década de 1920, quando entra em cena a teoria estrutural do complexo de Édipo, e então a perversão pode ser vista como decorrente do mecanismo da recusa (Verleugnung), numa saída para o conflito edípico contraposta à dissolução do mesmo pela via do recalcamento (Verdrängung), que, por seu turno, assinala a formação neurótica. Mais tarde, com o desvendamento da lógica do fetichismo [1], a recusa articula-se à conseqüente dissociação (Spaltung) do ego, esclarecendo a atitude ambígua do sujeito da perversão diante da realidade da castração. Entretanto, isso não muda em essência o eixo freudiano da defi nição de perversão, que permanece sendo o sintomatológico; a abordagem do fenômeno pela via do fetichismo retoma, ainda que em outras bases, o problema do desvio sexual que se colocava em primeiro plano nos Três ensaios. É evidente, contudo, que a postulação ulterior dos mecanismos da recusa e da dissociação tenha aberto o caminho para uma outra forma de abordagem do fenômeno, que veremos adiante.

Antes, porém, importa-nos registrar que a definição da perversão pela sintomatologia (“desvios” sexuais) guarda exatamente a mesma lógica presente na defi nição da neurose ou da psicose por meio dos seus sintomas (conversões, obsessões e medos, nas neuroses, ou delírios e alucinações, nas psicoses). Afinal, como se poderia postular uma categoria psicopatológica desprezando toda e qualquer exigência fenomenológica? Muitos dos autores – inclusive contemporâneos – que viriam a trabalhar sobre o campo da perversão não deixaram de levar em conta o sintoma expresso do paciente, mesmo compreendendo o “desvio sexual” sobre outras bases morais ou psicopatológicas. É assim que faz, por exemplo, Joyce McDougall [2], ainda que prefi ra o termo neo-sexualidade, de sua lavra, à palavra perversão. O problema do desvio sexual, contudo, não deixa de estar presente como elemento central da defi nição, apesar das nuances por ela enfatizadas.

O segundo eixo presente na defi nição de perversão, ao qual chamei de transferencial, resulta dos desdobramentos do conceito de “transferência” tanto na escola kleiniana como na lacaniana. A importância assumida por este eixo tem, portanto, uma dupla determinação na história do movimento psicanalítico. Na escola kleiniana, ela se deve à centralidade assumida pela transferência no trabalho clínico, tornando-se o objeto mesmo da interpretação psicanalítica. Na escola lacaniana, o chamado “diagnóstico estrutural”, como veremos, assenta-se sobre a modalidade da transferência estabelecida pelo paciente, ligando-a diretamente ao posicionamento psíquico do sujeito diante da castração.

Este eixo transferencial da descrição da perversão, dependendo da escola e do autor que o aborda, pode tanto estar mais claramente associado ao eixo sintomatológico, como dele se distanciar, chegando, por vezes, a impor-se como parâmetro exclusivo para o diagnóstico. Ainda que Freud não tenha associado explicitamente a perversão a uma modalidade de transferência que lhe fosse correspondente, é possível afi rmar que este eixo componente “transferencial” tenha esteio na sua obra. Isto se dá particularmente nos trabalhos posteriores aos Três ensaios, quando a distinção entre o recalcamento e a recusa já estava bastante esclarecida, como no artigo de 1927 sobre o fetichismo. Na escola lacaniana é exatamente a distinção entre estes mecanismos (além da rejeição ou Verwerfung) que possibilita e fundamenta a categorização estrutural dos quadros psicopatológicos, consagrando a tríade neurose, psicose e perversão, cuja etiologia passará necessariamente pela resposta do sujeito diante da ameaça de castração.

Tomarei aqui um trabalho de Jean Clavreul como base para descrever a concepção de perversão adotada pela escola lacaniana, centrada prioritariamente na modalidade de transferência estabelecida na situação analítica. Em uma descrição bastante acurada do fenômeno transferencial observado na clínica psicanalítica da perversão, Clavreul acusa a presença de uma demanda “estranha” e “ambígua” por parte do paciente, afi rmando que “o que ela comporta de desafi o” não pode deixar de aparecer, e as aparências corteses que geralmente os perversos fi ngem não enganam por muito tempo” [3]. Toda a transferência perversa impregna-se por um desafi o, aberto ou velado, sendo que o discurso sobre o amor comporta sempre um ar de “rebelião”. Qual seria o papel então destinado ao analista? Clavreul indaga- se: “Vem o perverso procurar junto a nós uma proteção contra os eventuais problemas médico-legais, tentando assim reduzir-nos ao papel cúmplice do protetor? Ou procura aos olhos terceiros provar sua boa vontade? Vem procurar em sua análise imagens escabrosas adequadas para melhorar o comum de suas práticas perversas? Ou, ainda, quer se livrar de determinada perturbaçãozinha que o incomoda enquanto permanece firmemente decidido a não modifi car nada do essencial?” [4]

Esta situação pode, na prática, criar uma cilada para o analista, que poderia ser expressa, grosso modo, pelo seguinte confl ito: situa- se o analista como apoio para um desejo de cura que pressupõe a supressão das práticas perversas? Isso, naturalmente, o colocaria numa posição moralizante contrária à neutralidade analítica. Concordaria o analista em dar importância secundária ao sintoma, privilegiando a análise como um objetivo em si mesmo? Isto sugeriria uma aceitação tácita da prática perversa, reduzindo a análise à pura condição de pesquisa, o que poderia levar o analista a ocupar o lugar de voyeur. Ou seja, o que pode suceder é que o analista se veja “reduzido ou a uma posição moralizante ou a uma posição perversa, com uma grande facilidade de passar de uma a outra, o que não é surpreendente quando se sabe das analogias estruturais dessas duas posições” [5], conforme conclui Clavreul.

Em síntese, o que a abordagem lacaniana aponta como eixo diagnóstico da perversão é precisamente a predominância do desafi o como fenômeno transferencial, implicando uma não-outorgação da função analítica ao analista, postura em tudo contrária ao posicionamento neurótico perante o “suposto saber” do analista. O que está em jogo para que assim se dê é, sobretudo, a recusa do outro, para além da recusa da realidade. Recusando- se a ser tratado como um neurótico, o perverso busca, na situação analítica, restabelecer as “referências fundamentais da estrutura”, numa expressão de Clavreul. [6]

Para Guy Rosolato [7], outro autor da escola lacaniana, o que o perverso busca nesta operação de desafi o é renegar a lei do pai e substituí-la pela lei do seu desejo, o que significa, dito de outra forma, livrar-se de uma constatação cujo corolário seria o reconhecimento da diferença entre os sexos e o acesso à ordem simbólica. Ele compara esta postura fetichista àquela culturalmente presente no gnosticismo, numa oposição à renúncia peculiar ao obsessivo, que poderia ser comparada àquela presente nas religiões de tradição ritualizada.

A caracterização da perversão por meio da modalidade da transferência estabelecida pelo paciente também está presente na escola inglesa. Donald Meltzer, valendo-se da expressão “perversão de transferência”, descreve este fenômeno clínico afirmando que os perversos “farão um esforço conjunto em determinadas fases do processo psicanalítico para tirar o analista de seu papel habitual e converter todo o procedimento em algo que tem a estrutura de sua tendência pervertida ou viciosa.” E generaliza, acrescentando que este problema “surge em todos os pacientes nos quais a perversão ou o vício têm um papel importante em sua psicopatologia” [8].

Meltzer recorre ainda a Freud, que em 1914 já assinalava o fato de que o perverso não procurava a análise como forma de obter cura, ponto de vista posteriormente corroborado por autores como Gillespie, Khan e Bálint. Aos perversos interessaria, no entender de Meltzer, “aprender a modular seu comportamento total para poderem continuar seu hábito ou vício sem perigo de interferência” por parte da análise, visto que eles “sentem sua perversão ou vício como mais reais do que suas relações sociais” [9]. O que pode ocorrer, entretanto, é que, no decorrer da análise, venha à tona o desespero que, na verdade, se situa por trás de tal intenção, dando oportunidade, assim, ao início de uma luta contra a doença.

Esta observação clínica de Meltzer é muito pertinente para o analista que se engajou alguma vez na análise do perverso, pois afi rma tanto a difi culdade quase intransponível que este apresenta em termos de analisabilidade, como também fala da situação de angústia que pode surgir quando se obtém êxito em tocar efetivamente o que fora recusado. Se não se toca na angústia de natureza psicótica que se oculta maciçamente por detrás da perversão, pode ocorrer o que Meltzer chama de “perversão da situação analítica”, quando a análise assume uma confi guração de impasse e paralisia, com o paciente manifestando seu desprezo pela psicanálise, ao mesmo tempo que devota um temor reverencial ao analista: “Quando a perversão da situação analítica ocorre, a situação total tende a tornar-se estabilizada da seguinte maneira: a forma social da vida do paciente fora da análise melhorou tanto em termos de “sucesso” e “respeitabilidade” que, pelos padrões da psiquiatria social, o paciente seria considerado curado. Ele está “bem adaptado”, mas sua perversão ainda não está “curada”. Na análise, uma certa corrente de crueldade para com o analista persiste no comportamento, ausência das sessões, atrasos, reclamações sobre o pagamento e zombaria dos analistas em geral, “excluindo o presente, é claro”. Mas o material é abundante, tanto em relação a relatos das atividades pervertidas, quanto a sonhos. Sinais de colapso da fé no analista são encarados com sentimento de triunfo e acusações, ao passo que um periódico otimismo traz consigo uma festa perversa como reação terapêutica negativa. Torna-se claro que o paciente vê a mãe-analista como viciada na prática da psicanálise, como uma prostituta ama-de-leite analítica, incapaz de conseguir melhores pacientes, ou incapaz de reconhecer suas limitações. Somente um exagerado “desligamento” e comportamento “científi co” do pseudo pênis-mamilo ganha o respeito, e mesmo o temor reverencial, do paciente. Ele então suspeita de que está na presença de algo grandioso, mas não sabe bem se o analista é como um deus, ou se é satânico”. [10]

Betty Joseph, autora expoente da escola kleiniana, também aborda o fenômeno transferencial perverso, enfatizando a necessidade que tem o analista de detectar a perversão e interpretá-la na própria transferência. Sem que isso se dê, pensa ela, não se toca de fato no problema e, por conseguinte, não se estabelece uma mudança psíquica. De modo semelhante ao que acabamos de ver em Meltzer, Joseph fala de uma forma sutil e diabólica que têm os pacientes perversos de perverter o vínculo transferencial e de pôr à prova a capacidade do analista, o que pode signifi car para este uma armadilha em que possa vir efetivamente a cair. Ora, o que fundamenta esta observação clínica, sob o ponto de vista psicopatológico, é a idéia de que os principais aspectos da sintomatologia perversa devem necessariamente se apresentar na transferência. O problema técnico, para Joseph, é a capacidade do analista para detectá-los, já que algumas vezes sua manifestação se dá de maneira bastante sutil. Trata-se, via de regra, de uma erotização oculta da transferência, às vezes obscurecida por um comportamento aparentemente passivo, que, contudo, pode ter por fi nalidade “destruir a calma e a força” do analista enquanto seio provedor [11]. Encontram-se em jogo a cisão e a identificação projetiva da excitação sexual do paciente, que dela tenta livrar-se depositando-a sobre o analista. A utilização da palavra ou do silêncio para projetar a excitação sobre o analista, bem como a passividade que pode provocar a sua impaciência ou induzi-lo a atuar por meio de interpretações (ou de pseudointerpretações) são, além de mecanismos defensivos, ataques concretos ao analista enquanto objeto odiado e invejado, como observa R. Horacio Etchegoyen [12] ao comentar o trabalho de Betty Joseph.

Foi levando em consideração as observações sobre a transferência perversa, feitas por autores das duas diferentes escolas psicanalíticas, que Etchegoyen propôs a adoção defi nitiva da denominação “perversão de transferência” para este fenômeno, a exemplo do que Freud [13] fizera ao cunhar a noção de “neurose de transferência”, e do que autores da escola kleiniana – particularmente Herbert Rosenfeld [14] – fi zeram ao falar de uma “psicose de transferência”. Para Etchegoyen, justifica-se a formulação do conceito de “perversão de transferência” à medida que fica patente que a perversão possui uma individualidade clínica e que confi gura um tipo especial de transferência.

Freud cunhou o conceito de “neurose de transferência” – uma entidade mais clínica do que propriamente psicopatológica – para designar uma alteração produzida no neurótico por obra do enquadre analítico, que faz com que seus sintomas tendam a manifestar-se no interior mesmo da relação com o analista, portanto, na transferência. Inicialmente sentida como um entrave ao desenrolar da análise, a neurose de transferência passou a ser compreendida como o lugar por excelência onde se concentrarão os esforços terapêuticos, por meio da interpretação da transferência no hic et nunc da sessão analítica.

Como Freud acreditava que o psicótico fosse incapaz de desenvolver a transferência, devido ao seu fechamento narcísico – que praticamente o impedia de estabelecer relações objetais – a análise da psicose era por ele considerada inefi caz. Segundo Freud, faltava ao psicótico aquela analisabilidade peculiar ao neurótico exatamente pela inexistência da transferência, o que o levou praticamente a desencorajar os esforços analíticos frente à psicose, como se vê, por exemplo, no artigo “Análise terminável e interminável” [15]. Isso não impediu que diversos analistas insistissem em experimentar a análise com pacientes não-neuróticos, como fizeram alguns de seus contemporâneos, tais como Karl Abraham e Sandor Ferenczi. Posteriormente, tanto analistas formados na tradição kleiniana (Bion, Winnicott, Rosenfeld e Searles, entre outros), como analistas lacanianos, ousaram encarar este desafi o, obtendo êxito apesar de todas as difi culdades apresentadas pelos pacientes psicóticos para o desenvolvimento de uma análise.

De modo bastante sucinto, o que se concluiu foi que o psicótico desenvolve, sim, um vínculo objetal, mas só que à sua moda. Herbert Rosenfeld, em seu trabalho sobre a transferência psicótica, propôs-se a demonstrar que o paciente esquizofrênico é capaz de estabelecer uma transferência positiva e negativa, sendo possível ao analista interpretar- lhe os fenômenos transferenciais e, ademais, perceber claramente as suas respostas às interpretações. Tais conclusões clínicas encontram um suporte teórico em formulações kleinianas sobre um modo primitivo de estabelecer uma comunicação, que é a “identificação projetiva”, predominante no vínculo do psicótico com o seu objeto. Para Rosenfeld, os pacientes esquizofrênicos mostram muito claramente esta forma de relação de objeto: “com efeito, tão pronto se aproximam de qualquer objeto com amor ou ódio, (os pacientes esquizofrênicos) parecem confundir-se com esse objeto, por causa não só da identifi cação por introjeção como por impulsos e fantasias de entrar dentro do objeto com a totalidade ou partes de seu self, a fi m de controlar o objeto. Melanie Klein sugere aplicar o nome de identifi cação projetiva a esses processos”. [16]

Estabelecer o conceito de “psicose de transferência”, portanto, foi uma empreitada da psicanálise pósfreudiana, a qual teve de se valer de referenciais outros que não os estritamente freudianos, para legitimálo sob os pontos de vista clínico e metapsicológico. Freud não legou um trabalho clínico sobre a psicose, do mesmo modo como não tratou da análise da perversão. Mas foi seguindo os caminhos já abertos pelos analistas que apostaram na ampliação da clínica psicanalítica rumo às patologias não-neuróticas, e apoiado tanto nas conclusões de autores da escola inglesa quanto em lacanianos, como vimos, que Etchegoyen propôs a consolidação do conceito de “perversão de transferência”. Para ele, esta tem como base teórico- clínica a “sutil complexidade das relações narcisistas de objeto” [17], que produzem formas de vinculação diferentes tanto das neuróticas como das psicóticas. A especifi cidade de tal transferência residiria nas tentativas de desestabilização do analista, como vimos acima em Meltzer e Joseph. Ruth R. Malcolm [18] também ilustra este esforço do perverso, mostrando que este pode tentar fascinar o analista e, assim, colocar a sua capacidade de observação no risco de converter-se em escopofi lia. Otto Kernberg [19], igualmente, vê na transferência perversa o risco de o analista ser envolvido nas fantasias perversas do paciente e, assim, levado à condição de espectador das relações de objeto perversas externas à análise. Etchegoyen resume esta posição perversa, que é tanto transferencial como sintomática, afi rmando que o perverso sente o seu sexo “não como um desejo, mas como uma ideologia” [20], sendo a inveja o motor de tal sentimento.

Quanto ao “parentesco” da perversão com a psicose – assinalado por muitos autores, que vêm na perversão, em essência, uma defesa contra a psicose –, este fi caria por conta, entre outros fatores, do predomínio da identifi cação projetiva, da labilidade da relação de objeto, da genitalização precoce, do papel da inveja como motor da conduta e da dissociação do ego. [21]

Pois bem, em resumo, vimos até agora que, por mais que as referências teóricas, a terminologia e o estilo dos autores da escola inglesa difi ram daqueles da escola lacaniana, é muito interessante observar como, na prática, os impasses trazidos pela postura transferencial do perverso são percebidos do mesmo modo por autores das duas escolas, fato que ajuda a legitimar as conclusões de ambas e permite a dedução de uma teoria consolidada da transferência na perversão.

Uma questão que se nos impõe agora, portanto, é a seguinte: as defi nições da perversão pelo eixo da sintomatologia (desvio sexual) e pelo eixo da transferência, como propus, seriam sempre complementares? Ou, quando tomados de um modo mais radical, esses eixos poderiam produzir fi guras conceituais excludentes? Dito de outro modo: todo paciente que apresenta um desvio sexual perverso apresentará, necessariamente, uma perversão de transferência quando submetido ao processo analítico? Ou, ainda, invertendo os termos: todo paciente que apresente uma modalidade perversa de transferência apresentará também um desvio sexual? Cumpre pensar mais detidamente no problema teórico-clínico representado por essas perguntas, submetendo-as às duas escolas psicanalíticas com que viemos trabalhando até aqui.

Para os lacanianos, talvez a questão esteja mais delimitada, posto que a definição do campo da perversão feita prioritariamente pela via transferencial reduz, em sua formulação, o papel do fenômeno sintomático existente para além da situação analítica. O “diagnóstico transferencial” segue um modelo que liga diretamente a estrutura clínica ao mecanismo defensivo predominante na saída do conflito edípico. Assim, a perversão decorre da recusa, como a neurose decorre do recalcamento, e a psicose, da rejeição. O desafio presente na transferência perversa é o elemento central para o diagnóstico, eximindo o clínico de valer-se de algo como um “desvio sexual” para a sua definição. A perversão parece, assim, ser tomada mais na acepção de operador clínico do que propriamente na de categoria psicopatológica. Se tal procedimento tem a vantagem de focalizar claramente o campo do trabalho analítico, por outro lado ele pode “desmaterializar” a perversão, retirando- lhe a sintomatologia sexual, que passa, assim, a ser apenas contingente. O mesmo ocorre com a psicose, que, no diagnóstico estrutural, é irredutível à conceituação psiquiátrica, tornando possível uma psicose sem “loucura”, ou seja, sem delírio ou alucinação. O que define a estrutura psicótica seria a “forclusão do Nome-do-Pai”. Não é que o sintoma, do ponto de vista descritivo, seja simplesmente desconsiderado. Trata-se, antes, da eleição de um recorte, que é a manifestação transferencial, desde que entendida como fenômeno que informa sobre a posição do sujeito dentro do conflito edípico e, portanto, dentro também do sintoma que produz. Importa, para o diagnóstico estrutural, o modo como o sujeito se encontra marcado pela castração. A tomada da sintomatologia como parâmetro seria, nesta concepção, peculiar ao modelo médico ou psiquiátrico. Para a psicanálise haveria um outro recorte, coerente com a sua própria base epistemológica.

Uma ênfase maior no eixo transferencial para a defi nição da perversão, como acabamos de ver, pode ter um grande interesse para a psicanálise, em razão da primazia que confere à situação analítica. Mas quando este eixo se quer exclusivo, é lícito pensar que isso pode ser o resultado de uma certa forma de se ler Freud que leva em consideração um determinado momento de seu trabalho, ou mesmo um certo texto, em detrimento ou com a omissão de outros. Ou seja, quando se radicaliza sobre a preponderância do modelo de perversão presente no artigo sobre o fetichismo [22], é porque se está desconsiderando aquele presente nos Três Ensaios [23], onde está consignado o eixo sintomatológico. Afinal, a defi nição pela estrutura encontra fundamento no mecanismo da recusa, ainda ausente em 1905; foi em 1908 que a noção de recusa se fez presente na obra de Freud, sobre as teorias sexuais das crianças. [24]

Sabemos à saciedade, entretanto, que, em se tratando da obra de Freud, há que se ter cautela ao descartar um ponto de vista expresso em um momento determinado. Por mais que as contradições internas apareçam em seu trabalho, o mais comum é que, no fi m das contas, diferentes pontos de vista, expressos em momentos diferentes, acabem sendo complementares. Janine Chasseguet-Smirgel [25], por exemplo, é uma autora que defende a integração de três momentos da teorização freudiana da perversão [26] como complementares e necessários ao seu entendimento geral.

Vejamos agora como fi ca a mesma questão para os autores kleinianos que trataram da “perversão de transferência”. É verdade que nem sempre a pergunta sobre a coincidência do “desvio sexual” com a “perversão de transferência” é feita de maneira explícita. No entanto, quase sempre a afirmação de tal coincidência fi ca implícita; ao menos é o que podemos concluir examinando os relatos de caso. Meltzer, contudo, preocupou-se com este problema e defendeu abertamente a coincidência do fenômeno sintomatológico da perversão com sua manifestação transferencial. Como vimos acima, ele afi rma categoricamente que a perversão de transferência “surge em todos os pacientes nos quais a perversão ou o vício têm um papel importante em sua psicopatologia”. [27]

Se pensarmos na lógica que rege as relações objetais de um determinado paciente, não seria de estranhar essa coincidência postulada por Meltzer. Afi nal, o analista seria um objeto entre outros, por mais que a relação analítica esteja revestida de um outro caráter contratual. Seguindo a lógica freudiana presente na idéia de “neurose de transferência”, essa coincidência não seria apenas cabível, mas poderia ser mesmo esperada.

Otto Kernberg, no entanto, questiona a validade dessa generalização. Para ele, autores importantes para o estudo da perversão e da perversidade, como Meltzer, Rosenfeld e Bion, caíram no erro de confundir a perversão sexual com a perversão de transferência, usando tais noções como equivalentes, sem diferenciá-las sufi cientemente bem. Para Kernberg, a “síndrome da perversidade na transferência”, como ele a chama, “consiste, em essência, no recrutamento do erotismo e do amor a serviço da destruição” [28]. Trata-se de uma reação terapêutica negativa severa que só pode ter sido confundida com uma patologia sexual específi ca por uma mera semelhança semântica! A “perversão de transferência” pode ocorrer, evidentemente, em pacientes que tenham uma perversão no sentido estrito de “desvio sexual”; e Kernberg julga ser justifi cável esta coincidência, visto que a perversão grave está associada à personalidade narcísica. Mas ela pode ocorrer igualmente em outros pacientes que não apresentem uma perversão sexual específi ca, mas distúrbios narcísicos da personalidade ou aquilo que ele chama de “síndrome do narcisismo maligno”.

Kernberg propõe um quadro amplo para a classifi cação da perversão, mostrando como os fenômenos perversos podem aparecer numa ampla gama de pacientes, que vai desde os portadores da “síndrome do narcisismo maligno” (que apresentam formas severas de sadismo, masoquismo, pedofilia, coprofilia etc.) ou do “distúrbio de personalidade anti-social” (psicopatas), passando pelos perversos propriamente ditos (que são borderlines, em sua opinião), até pacientes com organização neurótica da personalidade (nos quais a encenação perversa não teria o caráter de agressão pré-edípica, mas explicar- se-ia pelos aspectos regressivos do próprio confl ito edípico). Para ele, portanto, o que se articula com o fenômeno da perversão de transferência – que desencadeia sempre respostas contratransferenciais difíceis de serem utilizadas adequadamente a favor da análise – é a organização borderline da personalidade e a correlata estrutura de personalidade narcísica.

Por um interessante volteio, então, vemos como, para Kernberg, em última instância, será a modalidade da transferência estabelecida que defi nirá o quadro estrutural, e não apenas a presença de uma determinada sintomatologia. Aparentemente, acabaríamos chegando a um ponto de vista similar àquele dos lacanianos. Mas me parece que a semelhança é apenas superfi cial, pois, ao contrário destes, Kernberg valoriza sobremaneira o conjunto de sintomas do paciente, aproximando- se, neste ponto, de um olhar que se poderia chamar de “psiquiátrico” [29]. O que ele parece procurar em seus estudos de caso, para além da pesquisa sobre a transferência, é a qualidade das relações objetais dos pacientes, o que pode perfeitamente ser realizado a partir de informações sobre suas vidas obtidas não exclusivamente por meio da reprodução sob transferência na situação analítica.

Para Kernberg, portanto, é possível uma não-confl uência dos eixos sintomatológico e transferencial da perversão sobre o mesmo paciente, ou dito mais precisamente, existe uma zona de intersecção considerável entre o desvio sexual e a perversão da transferência, mas restariam outras regiões em que tal intersecção não ocorre.

Pois bem, para tirar alguma conclusão prática desta confrontação entre os diferentes enfoques da perversão que vimos até aqui, seria interessante levantar os benefícios e as limitações que eles encerram, num esquema que bem pode ser desenhado por meio de paradoxos. Senão vejamos. Na definição mais afeita ao eixo sintomatológico, tal como se depreende de Freud (levando- se em conta sua obra como um todo), considera-se um sujeito que fala de seu sintoma em transferência, mas, ainda assim, vislumbra-se um sujeito-no-mundo por detrás de sua sintomatologia. Afinal, Freud subordinou a neurose de transferência à neurose real, dando à primeira o caráter de operador clínico da análise. Por outro lado, se se fica excessivamente preso à sintomatologia, incorre-se no risco de abandono do recorte clínico propriamente psicanalítico – isto é, fundado em uma epistemologia particular da clínica psicanalítica –, recaindo-se em um olhar psiquiátrico sobre o sintoma. Nesse caso, a análise pode perder sua efi cácia como método de encontro da verdade peculiar ao sujeito, restringindo-se a algo tal como uma psicoterapia de apoio, a um esforço adaptativo ou educativo (cognitivo) ou, às vezes, a nada.

Na visão predominantemente transferencial, tem-se o mérito da manutenção do crivo especifi camente psicanalítico, que protege a análise de simplifi cações clínicas que podem resultar, por exemplo, na limitação da comunicação aos contornos conscientes do ego. Por outro lado, do ponto de vista epistemológico, não é impossível que, levado este posicionamento às últimas conseqüências, a psicanálise perca o contato com toda a psicopatologia possível.

Maurice Dayan [30], tratando desta questão, fala em “singularidade idiopática” para se referir à experiência de um sujeito em análise, experiência que não se parece com a de nenhum outro sujeito. Na clínica haveria, pois, apenas arranjos sintomáticos idiopáticos. Isso não signifi ca, contudo, que não encontremos regularidades sintomáticas nos nossos pacientes; caso contrário, sequer poderíamos pensar em uma psicopatologia. Mesmo considerando a singularidade idiopática, dedutível da escuta analítica de um sujeito único, as exigências culturais gerais, cujo protótipo seria o complexo de Édipo, colocam-se para todos os sujeitos, concorrendo para a construção de um “sintoma universal”. Isto ocorre à medida que cada sujeito, ao se deparar com as exigências civilizatórias, tem de processá-las a seu modo singular, produzindo, a partir daí, uma síndrome “patológica” particular, ou seja, o seu sintoma.

Sob a ótica da clínica, a rigidez da abordagem transferencial pode signifi car uma verdadeira recusa ao sintoma do paciente, tal como este se apresenta em sua narrativa. Neste caso introduz-se um fator de risco para determinados sujeitos, que vão então reencontrar uma situação traumática neste não-reconhecimento que tal postura do analista implica. Isto pode ocorrer, por exemplo, quando o analista insiste reiteradamente na interpretação da transferência de pacientes não-neuróticos, para os quais tal conduta é nociva ou, no melhor dos casos, inócua. É claro que, nos casos em que isso ocorre, trata-se de uma falta de maleabilidade do analista, mais do que de um problema intrínseco ao modelo da interpretação transferencial. O erro correlato, quando se privilegia o eixo sintomatológico, seria exatamente o de desprezar fenômenos transferenciais fundamentais à análise.

Ora, esses paradoxos, sabemos, estão longe de representar exclusivamente o confl ito entre as defi nições de perversão e as formas de se trabalhar teórica e clinicamente com as mesmas que daí decorrem. Eles têm, na verdade, uma validade mais ampla, aplicando-se ao trabalho psicanalítico em geral, considerados o amplo espectro da psicopatologia e os problemas concernentes à técnica e à formação de analistas.

A referência à transferência na formulação do diagnóstico, evidentemente, é fundamental quando o que se tenciona é um diagnóstico psicanalítico. Torna-se ainda mais relevante quando se entende por “diagnóstico” não uma categorização nosográfi ca, mas uma consideração dinâmica e relacional cuja função é constituir-se como um operador clínico. No entanto, seu valor torna-se relativo quando se procura validá-la como critério para um diagnóstico descritivo, para além do setting analítico. Penso que o diagnóstico transferencial refere-se mais à qualidade da relação objetal do que à fenomenologia sintomatológica do sujeito, isto é, ele fala mais do como do que do quê. O conteúdo sintomático é contigente e comporta um certo grau de plasticidade; portanto, o desvio sexual stricto sensu nem sempre é coincidente com a psicopatologia da perversão propriamente dita. É assim, por exemplo, que a patologia fundada na recusa – perversa, por defi nição – pode estender-se, sob o ponto de vista sintomatológico, do desvio sexual para as mais diversas modalidades de adicção. O aspecto relevante a ser considerado, então, é a natureza e a qualidade da relação de objeto, que comporta, em uma de suas dimensões, a relação do sujeito com a falta.

Além do mais, segundo a minha compreensão da transferência, é enganoso supor que esta signifi que apenas uma repetição tal e qual de um padrão de direcionamento ao objeto. A transferência na clínica contém também, inseparável da repetição, um gesto que aponta exatamente para o novo, num impulso à restauração por meio de uma compreensão diferente de si, que se pede ao analista e dele se espera obter. É verdade que, no caso da perversão – ou de outras patologias em que o ódio, a inveja e destrutividade assumam o papel central – este pedido torna-se mais difícil de se escutar, em razão daquelas respostas contratransferenciais, passíveis de surgirem no analista, que prejudicam a sua disponibilidade para o holding. No entanto, creio que é a esta forma de se compreender a transferência que se condiciona o alcance de sua instrumentalização clínica, que é o que permitirá a abertura para a eventual mudança psíquica do paciente. No reverso desta postura, podemos perpetuar descrições de casos de perversão que mais se assemelham a peças de acusação moral, criminal ou religiosa...

Sustento, portanto, que o par sintoma-transferência deve ser levado em conta na observação diagnóstica psicanalítica, de forma articulada e com a devida cautela, resguardando- se o recorte epistemológico e o método propriamente psicanalíticos, mas sem estereotipias que possam fazer uma teoria prévia prevalecer sobre a experiência viva.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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