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ÍNDICE TEMÁTICO 
43
Acasos
ano XXII - dezembro de 2009
200 páginas
capa: Miriam Nigri Schreier
  
 

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Resumo
Resenha de Josette Monzani e Luiz R. Monzanni (orgs.), Olhar: Fabio Herrmann – uma viagem psicanalítica, São Paulo, Pedro e Paulo Editores, 2008, 376 p.


Autor(es)
Pedro Henrique DÁvila Mascarenhas

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 LEITURA

Teoria dos campos: uma interpretação ampla e crítica da psicanálise

[Olhar: Fabio Herrmann – uma viagem psicanalítica]


Theory of the Fields: a wide, critical interpretation of Psychoanalysis
Pedro Henrique DÁvila Mascarenhas

Este é um livro-ato, segundo os autores organizadores. O que vem a ser isso? Pode ser que se refi ram à homenagem que presta a Fabio Herrmann. Mas também pode ser que se refi ram a não podermos pensar este livro fora do ato que o cria. Estariam se referindo ao fato de que esta obra não pretende ser apenas um conjunto de textos, mas também um ato de criação que envolve o momento da leitura, para além do daquele da sua manufatura, incluindo o próprio momento de elaboração desta resenha, e assim por diante, ato em processo, sujeito em processo? Produção constante, não produto acabado. Questão que já nos introduz na visão da Teoria dos Campos, pois, como veremos, o sentido de um conceito se limita com a geração de novo conceito e assim por diante.

Trata-se de um número da Revista Olhar do Centro de Educação e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Carlos. Olhar: Fabio Herrmann: Uma viagem psicanalítica é uma coletânea sobre as principais ideias de Herrmann. Traz escritos de psicanalistas que vêm por estas se interessando, embora se inicie com artigos do próprio autor. Presta homenagem a este, mapeando a criação de seus conceitos, evocando seu humor, sensibilidade e perspicácia, evidenciando seu modo inédito de pensar a psicanálise, como único pensador brasileiro que formulou uma teoria geral da psicanálise, a Teoria dos Campos. Teoria esta que vai alicerçar o projeto de tornar a psicanálise uma ciência geral da psique.

No prefácio, Leda Herrmann faz uma resenha ou síntese organizadora das diversas partes do livro, a saber: textos inéditos, no fi lão de contos psicanalíticos ou fi cções freudianas; teses críticas; textos clínicos; textos derivados de dissertações de mestrado; textos de interlocução com a teoria dos campos; e fotos e grafi smos de Fabio. Esta resenha, por sua vez, limita seu foco, detendo-se em alguns artigos das duas primeiras partes, isto é, nos textos inéditos e teses críticas, além de indicar algo da apresentação e do prefácio, visando a realçar a contribuição específi ca da Teoria dos Campos.

Comentando a contribuição de Fabio Herrmann, Leda Herrmann destaca “suas duas ideias formadoras: a de método interpretativo como ruptura de campo e a de absurdo como o que constitui as regras que estruturam o sentido humano, a psique, considerada seja do ponto de vista do indivíduo, seja do ponto de vista social” (p. 376). A autora veio a chamar, em sua tese de doutorado, esse ponto central de: ideia de dupla face método/absurdo. Em Olhar, ela resenha toda a obra de Fabio Herrmann, livro a livro, indicando os temas percorridos em cada um, mas destacando os três estruturantes da série Andaimes do real. Em relação a Andaimes do real: o método da psicanálise, esclarece a formulação dos conceitos campo, relação, ruptura de campo, expectativa de trânsito, vórtice, luto primordial. Mostra, em Andaimes do real: psicanálise do cotidiano, a análise da produção do cotidiano, por meio da investigação da rotina, considerada outro lado do absurdo (ou real). Por exemplo, possibilita- nos compreender que a rotina torna opacas as regras absurdas que regem a vida em sociedade, para produzir a realidade compartida. Faz-nos acompanhar, em Andaimes do real: psicanálise da crença, a abordagem da lógica do absurdo. Esclarece, por exemplo, a função defensiva face ao absurdo e o conceito de crença, que se refere àquilo que sustenta as representações nas neuroses e nas psicoses.

No que diz respeito a outros livros de Fabio, aponta suas respectivas especifi cidades. Assim, A infância de Adão desvela, por meio de contos ensaísticos, o caráter fi ccional do conhecimento psicanalítico. Somos informados sobre Da clínica extensa à alta teoria: meditações clínicas, livro ainda não publicado, que explicita a concepção de alta teoria em formulações do método psicanalítico e denuncia aquela clínica padrão que atribui às regras do setting a efi cácia terapêutica da psicanálise e a tendência existente, no meio psicanalítico, a adotar concepções fetichistas da técnica. Ao ver de Fabio Herrmann, a clínica chamada padrão estaria, na verdade, compreendida pela clínica extensa, desenvolvida em qualquer setting, mas fundamentada pelo método da psicanálise.

Apresentada a obra, o livro permite-nos estender nosso conhecimento, ao trazer três artigos recentes do próprio autor, “Psicanálise, fato e verdade”, “Questões amorosas” e “Questões femininas contra o tempo”, todos eles, englobados pelo “Filão dos contos psicanalíticos ou fi cções freudianas”.

No primeiro, o pensamento crítico do autor passa por vicissitudes históricas da ideia de verdade, na fi losofi a e na ciência, não sem ironia, pois dispensa a tarefa enfadonha de historiar suas transformações. Assinala que, à falta de uma concepção dominante ou indiscutível de verdade, no meio psicanalítico, não tardaria a surgir a desconfi ança em relação à própria existência do psiquismo e a qualquer verdade factual a seu respeito. Por outro lado, escolas psicanalíticas estariam se digladiando, até hoje, para saber qual é a detentora da verdade e portanto herdeira do conhecimento freudiano. Em relação ao período escolástico da psicanálise, argumenta Fabio Herrmann, “se cada qual tem seu deus exclusivo, mas o milagre é o mesmo, o efeito psicanalítico, fi ca provada a falsidade de todos eles” (p. 28).

Uma questão é retomada ao longo de toda a sua obra: por que a psicanálise funciona como terapia e o que garante sua efi cácia terapêutica em diferentes práticas interpretativas? O autor aponta para uma fundamental acepção heurística de verdade, distinta de qualquer acepção comprometida com verifi cabilidade, um avanço que irrompe na ciência da psique. Consequentemente, este paga um certo preço: “O valor de uma interpretação se restringe à produção de nova interpretação, um conceito se limita à geração de novo conceito e assim por diante” (p. 29).

A partir disso, “perdeu-se, portanto, a crença na existência objetiva do inconsciente, mas não a crença em sua capacidade heurística” (p. 31). Aqui, a concepção de livro-ato, processo de construção e não produto acabado aparece com toda a sua força.

O segundo artigo de Fabio é composto por dois textos que estavam num mesmo arquivo do computador e Leda reuniu. Assim se somaram e se articulam “Depois, o amor” e “Alta”, formando “Questões amorosas”. Quotidiano, amor, tempo, questões que a palavra não alcança ou não pode dizer. Esses são alguns dos lugares temáticos pelos quais Fabio navega na primeira parte. Alguns, salpicados por pensamentos que são quase pensamentos-personagem, tais como: “com que novo amante nos presenteará o tempo?”; “Dividir com justiça os direitos e retribuir proporcionalmente… bom ponto de partida… só depois descobre-se quão enganoso é” ou “como a vida não se repete e nunca tivemos esta idade, olhamo-nos ainda uma vez com curiosidade, admitindo que não chegamos realmente a conhecer a vida, em qualquer de seus estágios”. Ou ainda: ”esperamos com curiosidade a morte, imaginando que completará nossa contemplação com um toque fi nal de dignidade, de indiferença aos acidentes do corpo e do espírito” (p. 36-8). Assim caminha “Depois, o amor”.

Já “Alta” mostra-se mais curto, analítico e expositivo. Certeiro.

Qual é o estado que se busca ao fi ndar um tratamento? Garantia de imperturbável normalidade? Nunca. Atingir o último degrau do modelo de desenvolvimento do psiquismo? Solução idealista, agrega o autor. E acrescenta, junto com outros autores evocados, que toda análise envolve uma história de amor, constituindo-se já num adágio psicanalítico do manejo do amor de transferência, que permitirá que o analisando desenvolva e modifi que suas próprias relações adultas. Depois, com a duração da análise o amor é diferente. Fantasias inconfessáveis esperam compreensão implícita e imprecisa. Acordos discretos se formam no par. Mas conclui: o amor deve chegar a seu termo, a análise pode meramente terminar. O amor de transferência dissolve-se na vida misteriosamente, possibilitando a sublimação e contemplação recíproca que forjarão as características da alta.

Quais são as questões femininas contra o tempo? Os homens não sabem se cuidar… e que foi feito de minha vida? Uma das mais comuns alegações das mulheres casadas afi rma que os homens são crianças crescidas incapazes de se cuidar. Quando a união conjugal dura o sufi ciente para ultrapassar uma certa idade, a troca no contrato emocional se instabiliza. A mulher que se interessava mais pelos fi lhos e pela casa, deixando o marido de lado, sente-se ameaçada por um possível rompimento. O marido não a abandonaria porque não sabe se cuidar. Se isso acontece, é porque outra o roubou, prometendo-lhe, mas jamais cumprindo, os cuidados indispensáveis, pois ele ainda não consegue se cuidar.

Em “Que foi feito de minha vida?”, entra em cena a ladainha “Dei a você os melhores anos de minha vida”, questionando o marido ou questionando a injustiça do tempo: onde perdi a minha vida? A resposta só pode ser: lá mesmo onde se ganha, vivendo. Não existe resposta à dor do tempo, tanto para o homem como para a mulher. Frente à exigência ao marido, querendo a devolução da vida que empenhou, o choque da constatação de que a vida trocada já foi vivida, não cabendo devolução. Ter sobrevivido já é um privilégio, comenta o autor, num cá entre nós com o leitor. A melhor parte da vida é a que nos cabe viver ainda, não porque venha a ser boa, mas porque é a única.

O capítulo “O método psicanalítico segundo a visão de Fabio Herrmann: ruptura do sentido como condição para a construção de novos sentidos” apresenta um texto de Marilsa Taff arel, que, numa abordagem epistemológica, destaca a questão do método na teoria dos campos. Assinala que o ponto crucial do método interpretativo psicanalítico situa-se na ruptura de campo, a qual se dá em três tempos: apreensão fenomenológica ou deixar que surja; momento hermenêutico, isto é, eleição de um interpretante ou tomar em consideração e terceiro, um tempo anti-hermenêutico ou desconstrutivo do contexto do sentido imperante. No primeiro momento, trata-se de uma pré-teoria; no trabalho da livre associação e da atenção flutuante ou escuta de esguelha, podem surgir meias palavras, sons anódinos, alguma ideia de passagem etc. Já o segundo momento permite a formação de uma teoria mínima, um germe de sonho que irá pautar a interpretação. Aqui se imagina o desejo e formulam-se pontuações para romper o campo. A partir da ruptura, dá-se o que Fabio chama de expectativa de trânsito, um momento de ausência de representações, seguido do vórtice, momento, por assim dizer, caótico, caracterizado por representações as mais dissonantes, sem ligação umas com as outras.

Marilsa comenta também a forma da organização psicanalítica ofi cial internacional, a ipa, na qual destacar-se-iam quatro posições adotadas por seus membros, que permitiria nomeálos: os hermeneutas, os hermeneutas científi cos, os positivistas e os anti-hermeneutas. Fabio situar- se-ia preponderantemente na posição dos hermeneutas científi cos, por realçar a força da interpretação, porém discordando da ideia de que esta força estivesse no seu caráter explanatório.

Dois autores, Laplanche e Melsohn, são comparados pela autora com Herrmann, em suas respectivas formas de tratar de conceitos relacionados com a ideia de representação inconsciente. Para Marilsa Taff arel, Fabio Herrmann discordaria da visão positivista de Laplanche, mas concordaria no que diz respeito à visão central da desconstrução de sentido em detrimento da interpretação de sentido, contido no discurso livre associativo. Com relação a Melsohn, ela lembra que Fabio conhecia sua posição sobre a representação inconsciente baseada na percepção expressiva de Cassirer, a qual elimina a pressuposição de um inconsciente conteudístico. Afi rma porém que Fabio se diferencia, pois “mantém o inconsciente do outro lado da representação, embora indissoluvelmente ligado a ela” (p. 49). Embora a autora desenvolva esta ideia em outros textos seus, aqui ela somente a indica.

Mostra-nos que o autor concebe o inconsciente como uma estrutura lógico-afetiva intrincada com representações que constituem a face visível do que ele denomina campo, ou inconsciente. Penso que essa questão se constitui numa das pedras básicas das questões metodológicas da Teoria dos Campos.

Aline Sanches escreve “Concepção de inconsciente a partir de uma revisão crítica da psicanálise”, apresentando de que modo o inconsciente pode ser concebido como essencialmente produtivo, e não representativo, deixando de se referir a uma instância interiorizada no indivíduo, indo assim além dos contornos da subjetividade, para abranger a produção cultural e social. Inconsciente insubstancial, sem conteúdos tais como ideias, sentimentos, emoções ou mecanismos psíquicos. Enquanto o registro consciente segue a lógica ordenada e organizada, o inconsciente segue a lógica do absurdo, ocultado pela superfície representacional. Portanto, segundo Sanches, a representação não pertence ao inconsciente, mas é seu produto. Numa operação inversa, do produto para a lógica produtiva, vislumbraríamos o conjunto de regras que sustenta a representação, isto é, o campo.

Continuando a acompanhar a elaboração da autora, um campo se constrói na confl uência entre real e desejo. O real de ordem múltipla e o desejo de ordem singular estão em permanente comunicação. O real, sendo onde tudo se fabrica, dobra-se sobre si mesmo, tomando-se por objeto e produzindo este real interiorizado, isto é, o desejo, que sempre ansiará por retornar à reintegração, movimento de conexão com o real.

Camila Salles Gonçalves escreve “Do absurdo”. Afi rma que embora nenhuma teoria psicanalítica explique o absurdo da condição humana, a teoria dos campos tem no absurdo um tema central. A autora o retoma, por meio de exemplos da literatura, expondo o que agora é preciso sintetizar, sugerir apenas: sendo o absurdo a outra face da rotina, que é também o meio uma maneira de afastá-lo, delineia-se o par conceitual, absurdo/rotina. Uma teoria abrangente do real é construída fundada neste par. Real e realidade são cuidadosamente diferenciados pela teoria dos campos, relembra a autora. Real sendo o incessante processo de produção de sentido psíquico do mundo, enquanto realidade, o fruto da rotina instituída no cotidiano. A ruptura de campo evidenciaria a face real do cotidiano.

Maria da Penha Lanzoni, em “Campo transferencial”, aborda a origem e evolução do conceito de transferência ao longo das obras de Freud e Klein, para introduzir a crítica de Melsohn e Herrmann aos conceitos de inconsciente e de transferência. Mostra de que modo o conceito de campo deriva da crítica do conceito de inconsciente, isto é, do exame dos fundamentos deste. Segundo a conhecida frase de Herrmann: o inconsciente não existe, há o inconsciente.

A autora assinala que o sentido de falsa conexão marca o nascimento e todos os desenvolvimentos posteriores da conceituação de transferência. Já o conceito de campo transferencial aponta para um presente radical, aquele que determina as posições relativas de analista e paciente. Somente o rompimento deste campo permitirá que surjam suas regras e sentidos. O campo transferencial envolve as transferências do analista e do paciente indiscriminadas e é por meio delas que experimentamos o analisando. O analista é, ele mesmo, além de qualquer repetição atualizada, uma forte intersecção de inúmeras fi - guras outras.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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