EDIÇÃO

 

TÍTULO DE ARTIGO


 

AUTOR


ÍNDICE TEMÁTICO 
  
 

voltar
voltar à primeira página

Resumo
Resenha de Flávio C. Ferraz, Tempo e ato na perversão, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005, 110 p. Coleção Clínica Psicanalítica.


Autor(es)
Rubens Marcelo Volich
é psicanalista, doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot, professor do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática – De Hipócrates à Psicanálise e de Hipocondria – Impasses da alma, desafios do corpo (Casa do Psicólogo, 2000 e 2002), de Segredos de Mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista (em coautoria com Alexandre Faisal, Atheneu, 2010) e co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma (Casa do Psicólogo).

voltar à primeira página
 LEITURA

Nas teias da perversão

Rubens Marcelo Volich


Resenha de Flávio C. Ferraz, Tempo e ato na perversão, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2005, 110 p. Coleção Clínica Psicanalítica.

“Decifra-me ou te devoro! ”. O secular enigma da esfinge tebana se reatualiza a cada encontro humano. Diante do outro, somos convocados a decifrar o lugar para o qual seu desejo nos convoca, assim como o desafiamos a descobrir o lugar que lhe atribuímos no nosso. Nesse jogo de adivinhações recíprocas, amorosas ou mortíferas, sutis ou explícitas, é traçada a trama da subjetividade humana. No encontro ou na ausência, na intimidade ou na exibição, são tecidas as tramas do desejo em uma infinita diversidade. Seus fios formam desde as composi ções mais harmônicas, que atraem e encantam, às mais bizarras figuras, que repugnam, mas nem por isso deixam de nos fascinar.

Há muito Flávio Carvalho Ferraz se interessa por essas tessituras. Como um etologista, ele observa, coleta e cataloga as espécies que encontra, porém, sem perder a curiosidade e a imaginação da criança que segue por horas uma formiga até o formigueiro, mas que também a transporta aos mais fantásticos cenários. Assim, ele é capaz de revelar a organiza- ção e a poesia que se escondem por detrás das formas esgarçadas do desejo, como ao investigar o universo dos loucos de rua (Andarilhos da imaginação, 2000), mas tamb ém o caos e a destrutividade que se dissimulam nos comportamentos aparentemente mais harmônicos da modernidade (Normopatia, 2002).

Difícil tarefa a que fui solicitado. Não tanto pelo desafio de acompanhar o autor por todas essas peripécias, que, ao contrário, me encantam. Mas pelo delicado lugar de compartilhar com ele, como colega e amigo, uma longa história de aventuras, inquieta ções e criações clínicas, teóricas, didáticas e editoriais. Aceitei o convite movido pelo contato gratificante com a obra cujo tema, complexo, carregado de preconceitos e de armadilhas para a clínica, é tratado por Flávio de forma clara, viva e conceitualmente rigorosa, revelando uma escuta clínica sensível, cuidadosa, e, sobretudo, livre. Prevenidos de minha parcialidade, ainda assim, considerem ser esta uma leitura importante.

Tempo e ato na pervers ão insere-se em continuidade direta e aprofunda alguns temas desenvolvidos por Flávio em Perversão (2000), livro inaugural da Coleção Clínica Psicanalítica, da qual também essa obra faz parte. Já ali ele sugeria transformar as complexidades e as reconhecidas dificuldades do manejo clínico de suas manifesta ções em uma reflexão sobre a dimensão ética dessa clínica. Um olhar incauto poderia considerar esse convite uma provocação, um desvario. Caracterizada pelo desvio, pela afronta, pela transgress ão, por uma visão quase utilit ária da alteridade, como poderia a perversão ser pensada em uma dimensão ética?

O desconcerto diante dessa proposta é revelador do quanto um certo preconceito e doses de moralismo ainda impregnam nossas representa ções da perversão, apesar de todas as mudan- ças ideológicas, culturais e dos costumes do último século, permitindo também compreender os motivos pelos quais a clínica da perversão ainda provoca controvérsias apaixonadas, apesar da evolu ção da nosografia e dos recursos clínicos.

Para sustentar sua proposta, Flávio se inspira no veio freudiano que contribuiu para resgatar a perversão do terreno do juízo moral, revelando- a em uma perspectiva de continuidade com o funcionamento “normal”, como uma conseqüência da natureza pulsional da experiência humana que compreende em seu desenvolvimento as manifestações perversas polimorfas da sexualidade da infância, estruturantes não só da sexualidade mas tamb ém da subjetividade. Mais que uma organização psicopatol ógica, um sintoma, um comportamento, a perversão é um modo de organização subjetiva e de relação com o outro que, naturalmente, manifesta- se também na transfer ência, em qualquer enquadre terapêutico.

Dessas constatações Flávio nos faz vislumbrar dois importantes fios que tecem as teias da perversão, o da sintomatologia e o da transferência perversa. Já evocados em seu primeiro livro, eles se tornam mais visíveis no segundo, revelando as minúcias e os ardis da trama perversa em seus diferentes enlaces e matizes, na clínica, na organiza ção e na vivência do tempo, nos nós e impasses dos atos e das palavras.

No primeiro capítulo do livro, acompanhamos a evolu ção histórica e conceitual dos eixos sintomatológico e transferencial da perversão na Psicanálise. Lembrando a import ância e o caráter inovador das posições de Freud sobre as perversões, o autor ressalta que nelas prevalecia uma vis ão sintomática que contribu- íra para o estabelecimento de uma referência clínica tornada clássica: as manifestações perversas revelam explicitamente aquilo que, devido ao recalcamento, é impossível de se manifestar nas neuroses. As neuroses seriam, portanto, o negativo da perversão. Essa distinção entre neurose e pervers ão refinou-se simultaneamente ao aprofundamento da teorização metapsicológica, culminando com a descrição de dois outros importantes processos estruturantes das perversões: a recusa e a dissocia ção. Assim, enquanto as dinâmicas do recalcamento são reconhecidas como a marca registrada das neuroses, a recusa (da castração e, em certa medida, da realidade) é a marca característica das perversões.

As dificuldades da clínica das perversões provocaram durante muitos anos um intenso debate sobre a possibilidade do tratamento psicanalítico dessas manifesta ções. A superação dessas controvérsias tornou-se possível a partir da ampliação dos recursos da análise da transferência, promovida principalmente pelas correntes kleinianas e lacanianas da psicanálise. A exemplo do observado na clínica das psicoses, o fio da transferência permitiu não apenas viabilizar a clínica das manifestações perversas, mas também melhor compreender as tramas dessas manifestações, cada vez mais multiformes, disseminadas e exacerbadas no mundo contemporâneo.

Lembrando o caráter “estranho” e “ambíguo” da demanda, e o “desafio” e a “rebeli ão” inerentes à transferência perversa, Flávio explicita as ciladas que espreitam o analista. Entre “moralista” (que se vê incitado à supress ão das práticas perversas) e “voyeur” (atribuindo import ância secundária ao sintoma, privilegiando a análise), ele mesmo corre o risco de se ver complementarmente capturado pela trama perversa, reduzido ora a uma posi- ção moralizante ora a um insidioso gozo com a escuta das práticas do paciente.

Os psicanalistas lacanianos ressaltam que, contrapondo- se claramente ao lugar de “suposto saber” peculiar à transferência neuró- tica, a transferência perversa desafia o saber do analista, e, no limite, recusa-o enquanto outro, revelando a tentativa do perverso de renegar a lei do pai para substituí-la pela lei de seu próprio desejo, como aponta Guy Rosolato. D. Meltzer, da escola inglesa, destaca essa mesma tentativa do perverso de não reconhecer o analista em sua fun- ção ou mesmo, às vezes, em sua pessoa, sugerindo o termo “perversão de transferência ” para descrevê-la. Ele ressalta, porém, que esse tipo de transferência também ocorre em diferentes momentos da análise de outros pacientes, não necessariamente perversos. Na transferência perversa, o paciente não tenta utilizar os recursos da análise para transformar-se ou buscar a cura, mas, em claro movimento de sabotagem da proposta analítica, para aprender a modular seu comportamento com vistas a manter o há- bito ou o vício sem risco de ser importunado. Por sua vez, Otto Kernberg aponta que um dos maiores riscos dessa modalidade de transferência é de o analista se ver capturado e enredado pelas fantasias perversas do paciente. Da mesma forma, Betty Joseph explicita a sutileza que muitas vezes reveste essas armadilhas que representam um risco de que as interpretações (ou pseudo-interpretações) do analista se constituam sobretudo como atuações diante das projeções e ataques insuportáveis do paciente à análise e ao analista.

À luz dessas revelações, é possível compreender as reticências quanto às possibilidades de análise das pervers ões, os freqüentes impasses e momentos de paralisia do processo analítico e principalmente as angústias vividas pelo analista que se dispõe a empreendê-las, mobilizadas pela atitude de desprezo e de desafio do paciente ao processo e ao analista. Nesse contexto, evidencia-se a utilidade clínica do termo “pervers ão de transferência”, criado por D. Meltzer e consagrado por Horácio Etchegoyen em seu tratado de técnica psicanal ítica. Assim como a descri ção da “psicose de transfer ência” viabilizou a clínica psicanalítica das psicoses, ao ampliar a idéia de “neurose de transferência”, a revelação da dimensão perversa da transfer ência avançou no caminho para o reconhecimento das modificações necessárias ao dispositivo psicanalítico para o tratamento de manifesta- ções não-neuróticas do sofrimento humano.

Seguindo os fios da transferência e do sintoma perversos, Flávio lembra a utilidade do diagnóstico transferencial desenvolvido na perspectiva lacaniana, que associa a estrutura clínica ao mecanismo defensivo: a pervers ão à recusa, o recalcamento à neurose e a rejeição à psicose. Porém, ele alerta para o risco de essa visão “desmaterializar” a perversão, esvaziando a importância de sua dimensão sintomática e das repercussões desses modos de funcionamento para a vida do sujeito. Ele lembra que essa leitura tende a priorizar um recorte da obra freudiana que privilegia o modelo mais tardio da perversão, encontrado no artigo sobre o fetichismo (1927) e centrado na recusa, em detrimento das contribuições dos Três ensaios para uma teoria da sexualidade (1905), que revelaram a dimensão pulsional e a função estruturante da pervers ão para a subjetividade.

Flávio parece encontrar um menor risco de dicotomia na visão de D. Meltzer que sustenta a “coincidência do fenômeno sintomatol ógico da perversão com sua manifestação transferencial”, uma vez que o analista é um objeto entre outros da vida do paciente. Ele lembra, por ém, que essa questão suscita controvérsias mesmo no campo kleiniano. O. Kernberg critica essa leitura de Meltzer (mas também de Rosenfeld e de Bion) que “confunde pervers ão sexual com perversão de transferência”. Kernberg ressalta a importância de uma discriminação mais fina do fenômeno transferencial, ao descrever o fenômeno da “perversidade da transferência ”, uma reação terapêutica negativa severa na qual o erotismo e o amor são recrutados a serviço da destruição. Essa manifestação pode ocorrer, segundo ele, em pacientes que não apresentem nenhuma perversão sexual específica, mas que apresentam distúrbios narcísicos de personalidade, por ele caracterizados como “síndrome do narcisismo maligno”. Assim, a perversidade de transferência pode ser observada tanto em pacientes com formas severas de sadismo, masoquismo, pedofilia, coprofilia etc., mas também em pacientes psicopatas, em alguns neuróticos e também nas organizações borderline. Aparentemente próxima da perspectiva lacaniana, a leitura de Kernberg se distingue dela ao valorizar as manifestações sintomáticas e, sobretudo a qualidade das relações objetais do paciente.

Confrontando todas essas visões, Flávio conclui que o eixo sintomatológico considera um “sujeito que fala de seu sintoma em transferência ”, mas que permite ainda vislumbrar “um sujeito no mundo por detrás de sua sintomatologia ”. Esse eixo comporta o risco de o analista ficar “excessivamente preso à sintomatologia”, de modo a abandonar o recorte clínico para cair numa visão psiqui- átrica do sintoma, esvaziando a análise de sua “eficácia como método para o encontro da verdade peculiar ao sujeito ”, transformando-a em uma psicoterapia de apoio ou mé- todo adaptativo ou educativo. Por outro lado, se o mérito do eixo transferencial consiste na manutenção da especificidade da perspectiva psicanalítica, protegendo-a das simplifica ções clínicas de moldagem consciente do ego, o risco deste eixo reside no perigo epistemológico que, no limite, conduz a Psicanálise à perda de “contato com toda a psicopatologia possível” (p. 37-8). Ele alerta que, em última inst ância, a rigidez da perspectiva transferencial pode levar à recusa do sintoma do paciente, que, diante dessa limita ção por parte do analista, pode se ver confrontado a enquadres e interpretações inó- cuas e mesmo nocivas.

Naturalmente, esses dilemas e paradoxos não são exclusivos da clínica da perversão. A partir de sua análise das dificuldades e dos desafios da perversão ao processo psicanalítico, Flávio convida a uma reflexão mais geral sobre a função do diagnóstico na análise, sugerindo que o diagnóstico psicanalítico não se restringe à identificação de uma entidade nosográfica mas que deve ser considerado como “uma considera ção dinâmica e relacional cuja função é constituir-se como operador clínico. [...] o diagnóstico transferencial refere- se mais à qualidade da relação objetal do que à fenomenologia sintomatológica do sujeito” (p. 40). Como sabemos, a importância dessa posição revela-se particularmente útil na clínica contempor ânea, cada vez mais confrontada a uma multiplicidade de organizações subjetivas e psicopatológicas de manejo particularmente difícil, às vezes impossível, no enquadre psicanalítico clássico.

Sugerindo uma visão da transferência mais ampla que a clássica visão de repetição de relações objetais, o autor ressalta que, associada à repetição, existe também na transferência “um gesto que aponta para o novo num impulso de restauração por meio de uma compreensão diferente de si, que se pede ao analista e dele se espera obter”. As dinâmicas perversas são um obstáculo tanto à escuta do novo pelo analista, como ao próprio pedido do novo pelo paciente, uma vez que a posição deste último dificulta a disponibilidade do analista para o holding, condi- ção necessária para a constitui ção do inédito.

Através da análise de “Júlio”, Flávio nos convida a acompanhar a materializa- ção da trama na qual se organizam e se manifestam as armadilhas da perversão de transferência. Em um recorte do caso, observamos passo a passo como o tom levemente depressivo, a angústia e o sentimento de inferioridade com relação a seu analista, presentes no início da sessão e relacionados a suas vivências da sessão anterior, cedem, após um momento de silêncio, a uma mudança de tônus, à aceleração do discurso que se intensifica e se transforma em ironia, arrog ância intelectual, desprezo e esforço de cooptação do analista, tudo isso como reação a uma interpretação transferencial. O relato da situação retrata claramente diferentes mecanismos da perversão de transferência: inicialmente, Júlio se apresenta numa condição supostamente submissa, sofredora, penalizada, mas, sutilmente, tece a trama de sedução, atraindo o analista para a armadilha onde ele pode ser capturado e imobilizado. O analista é convidado à intimidade de uma troca, à revelação exclusiva ao paciente de um segredo de sua profissão, acumpliciando-se com ele na posse de um suposto segredo que promete um gozo imaginário, mas que, ao mesmo tempo, explicitaria a fragilidade do analista, denegrindo- o, diminuindo-o e o desautorizando.

Flávio discute o caso evidenciando diferentes desdobramentos possíveis para as leituras segundo os eixos sintomatológico e transferencial. A sedução e o convite à intimidade são dispositivos característicos da transferência perversa que buscam capturar o analista numa relação dual para eliminar qualquer possibilidade de terceiridade, uma característica da estrutura ção anti-edípica, também encontrada em pacientes borderlines, como aponta Luis Cláudio Figueiredo. A tentativa de manutenção da dualidade ocorre, portanto, sob o signo da fantasia incestuosa, buscando eliminar o pai como terceiro, como representante da lei, tentando assim evitar o crivo da castração.

Ao se considerar acima de qualquer lei, ao desautorizar toda ordem que não emane de seu desejo, o perverso recusa qualquer limite que possa sugerir-lhe os limites de seu desígnio. Ao revelar a importância do mecanismo da recusa na perversão, Freud evidenciou essa que se constitui como uma das marcas positivas e registradas da perversão.

Esse mecanismo é analisado de forma particular no segundo capítulo do livro no contexto da relação à temporalidade, em particular sua recusa. Flávio relembra inicialmente a evolução do conceito de recusa em Freud, inicialmente tomada com relação à castração e posteriormente relacionada à realidade.

Apoiando-se em um coment ário de Laplanche e de Pontalis, Flávio sugere que o elemento sobre o qual incide a recusa é constituído pelas “condições primárias do pensamento, ligadas, de algum modo, às categorias básicas de espaço e tempo – as categorias a priori do conhecimento na filosofia kantiana” (p. 54). Por participarem da estruturação das experiências de ausência/presença, movimento, separação e processualidade, também essas experiências acabam sendo afetadas pelo mecanismo da recusa, como observamos nas adições (recusa da falta), nos pacientes borderlines (recusa da separação), bem como em algumas formas de transtornos corporais (recusa do corpo) delineando todo um campo de manifestações subjetivas que, para além da pervers ão, podem ser definidas como patologias da recusa.

O fio da onipotência perpassa todas essas manifestações da recusa resultando em figuras que revelam a impossibilidade de reconhecer faltas, limites e falhas da existência ou de diferentes dimensões da própria experi ência. Em outro recorte clínico, Flávio mostra como para seu paciente “André” a recusa do tempo articulava-se intimamente à recusa de aspectos de sua vivência corporal, tornando impossível para ele admitir qualquer falha ou marca que pudessem evidenciar a passagem do tempo, o envelhecimento, e, no limite, a morte. Lembrando as evidentes semelhanças entre os modos de funcionamento de seu paciente e a clássica história de Dorian Gray, de O. Wilde, nosso autor discute a função de diferentes estratégias que visam a burlar as implacáveis marcas do tempo que passa, como as constantes modelagens corporais, a constituição de fetiches, que substituem o verdadeiro pelo falso, e tamb ém a substituição freqüente dos parceiros que envelhecem, estratégias bastante disseminadas e respaldadas na ideologia e nos comportamentos contemporâneos.

A partir das formulações de Lanteri-Laura, Flávio lembra que a recusa do tempo na perversão é mais que uma fixa ção nas fases pré-genitais do desenvolvimento libidinal, constituindo-se como um verdadeiro desprezo pela hierarquia dos estágios libidinais. Ao ignorar essa hierarquia, o sujeito tenta preservar, de forma onipotente, a crença de ser ele o mestre da temporalidade, regendo o ritmo da vivência e da passagem do tempo exclusivamente segundo a lei de seu próprio desejo, uma fantasia que busca, no limite, negar a realidade inexorável da morte. De forma semelhante, Chasseguet- Smirgel também chama a atenção para essa característica da atividade sexual perversa como “fora do tempo”, pela recusa do tempo de matura ção e desenvolvimento biológico do organismo (nas fantasias e práticas pré-genitais e na pedofilia), e também pela recusa das diferenças geracionais (nos componentes incestuosos de muitas práticas perversas).

Flávio ressalta que a perturbação da vivência do tempo, mesmo que evidente na perversão, transcende essa manifestação, sendo também encontrada, com articula ções diferentes, tanto nos quadros de autismo, em certos quadros de ansiedade, nas organizações borderlines, em algumas manifestações neuróticas, como em algumas formações obsessivas e mesmo, em certa medida, em uma certa organização e vivência da “normalidade” contemporânea. É possível observar, por exemplo, o pâ- nico diante da processualidade, decorrente da necessidade de se sujeitar à inelutável passagem do tempo, uma manifesta ção freqüente da “psicopatologia cotidiana”. Nesse caso, não se trata propriamente de uma recusa do tempo “mas de uma espécie de luta compulsiva contra ele. [...] o fracasso da recusa conduz a uma ansiedade desesperada que pode ter como último fulcro o terror da morte” (p. 66).

Assim, é possível considerar os diferentes modos de relação ao tempo como crité- rios diferenciais da organiza- ção subjetiva e das manifesta ções psicopatológicas em particular. Flávio sugere que as perturbações da temporalidade na neurose caracterizam- se por uma luta contra o tempo, manifesta na forma- ção de sintomas. Nos quadros borderlines, essas perturba ções se expressam por meio dos comportamentos de descarga, de acting outs. Na perversão, encontramos a recusa do tempo propriamente dita. No autismo, é a própria estruturação da realidade, e da temporalidade em particular, que se encontra comprometida em um processo mais próximo da rejeição do que da recusa, expressando-se por meio de falhas dos processos de integração da personalidade. Finalmente, na existência humana, a relação ao tempo encontra-se no âmago da experi ência da angústia.

Buscando afinar o delineamento das tramas perversas, o terceiro capítulo do livro se dedica a uma elucidativa comparação da função do ato e dos comportamentos na perversão com as atuações e manifestações da neurose obsessiva e em outros quadros, em uma nova perspectiva da relação com a Lei e com os limites.

Para essa comparação, Flávio se inspira nas hip óteses freudianas que relacionam as perversões a certas características de cultos gnósticos primitivos, marcados pela presença explícita do sexual e da agressividade, enquanto a neurose obsessiva poderia ser compreendida como um correlato patológico de uma espécie de religião particular, onde, à semelhan- ça daqueles da religião coletiva, os rituais, cerimoniais, crenças, proibições, culpas e expiações, carregados de significado simbólico, correspondem a reações do sujeito diante de leis e prescrições.

Acompanhando as leituras de Guy Rosolato e J. Chasseguet-Smirgel, Flávio destaca que enquanto a neurose obsessiva pode ser compreendida como uma religião privada ritualizada, orientada para Deus, a perversão o seria como uma “religião do Diabo”, uma manifestação da gnose, formas rituais primitivas, anteriores ao cristianismo, ligadas à natureza, ao corpo, à sexualidade e às livres expressões instintivas. Lembrando o mecanismo da recusa na perversão, a gnose apresentava uma contesta ção livre e permanente da Lei com vistas a alcançar o conhecimento e o acesso pleno à divindade e mesmo “roubar o lugar de Deus”. Por sua vez, a religião tradicional ritualizada estruturou-se com base em proibições de express ões e impulsos primitivos, com função semelhante à do recalcamento na neurose obsessiva.

É íntima a semelhança entre a crença dos gnósticos – a de serem escolhidos, especiais e detentores dos segredos de acesso à divindade e à criação – e as fantasias dos perversos de serem os privilegiados detentores dos segredos do desejo sexual e do gozo, ou ainda de serem auto-engendrados subjetiva e sexualmente. Flávio aponta que enquanto o perverso “julga conhecer o segredo do prazer sexual, o neurótico obsessivo duvida e deve se furtar ao contato e ao prazer” (p.79). Na clínica, as manifesta ções transferenciais dessas duas atitudes permitem distinguir entre essas duas organiza ções. Chegamos assim, por outro caminho, à compreens ão do desafio e desdém perverso pelo saber do analista, considerando seu saber superior ao dele, e da rever ência e devoção do neurótico obsessivo pelo suposto saber do analista, na esperança de um dia alcançá-lo obtendo sua redenção.

Essas atitudes diante do saber manifestam-se também em formas distintas do fazer. Como aponta Rosolato, o fazer obsessivo obedece ao detalhe, ao respeito dos procedimentos da Lei, à obediência ritual, enquanto o fazer perverso é mais propício a questionamentos e reformas, inversões e revoluções que fazem progredir a cultura. Traçando um paralelo com a tipologia desenvolvida por Freud em Os tipos libidinais (1931) – o erótico, o obsessivo e o narcí- sico e suas diferentes combina ções –, Flávio pondera que o tipo obsessivo funciona segundo uma obediência ritual, resistindo a mudanças, enquanto o tipo narcísico, prot ótipo do sujeito da recusa, próximo ao perverso, pode sim, em princípio, promover mudanças e revoluções, mas pode também provocar a desorganiza ção e a destruição pelo não reconhecimento da Lei e pela não consideração do outro e da própria instância superegóica. Evocando a filosofia moral de Bergson, ele sugere compreender a ética individual do obsessivo como próxima da moral estática, comum cotidiana, conformista quanto às exigências sociais, enquanto a do tipo obsessivo narcísico poderia se aproximar da moral dinâmica, inovadora, transcendente das obrigações, capaz de romper com as normas do grupo, subverter e trazer a mudança, porém respeitando algumas exigências do superego.

Esses elementos elucidam a natureza anti-social de muitos comportamentos perversos. Na relação do perverso com o mundo não é poss ível encontrar o gradiente intermediário, representado pelo componente obsessivo, marcado pela mediação supereg óica. Nosso autor aponta que as mudanças que ele promove prescindem de valores e negligenciam necessidades coletivas transformando- se em uma espécie de ideologia da “aceitação de qualquer coisa como moralmente válida [que se traduz] em uma ideologia do valetudo ” (p. 86), anulando os fundamentos éticos do sujeito, parte de sua personalidade. Como resultado da perda da capacidade de se indignar, de constituir uma dúvida moral, ficam solapadas as identidades subjetiva e cultural, soterradas sob a pressão cada vez maior em nossos dias de valores efêmeros e como fenômenos de moda, cultura de massa e interesses econômicos.

O fio da transferência revela ainda uma outra caracter ística diferencial entre o funcionamento perverso e o neurótico obsessivo. O primeiro busca insistentemente manter ou promover a mistura, a indiferenciação, a fusão, o contato corporal ou com o objeto de desejo, em função do não reconhecimento da Lei e dos limites. Por sua vez, como fruto do recalcamento e da impossibilidade de percep ção do desejo, o neuró- tico obsessivo desenvolve estratégias para manter distin ções e impedir o contato, pelo comportamento, como na interdição e no tabu de tocar, e pelo pensamento, nas dinâmicas do isolamento que evitam o contato com (e entre) as idéias, contaminadas na fantasia pela sexualidade e pela agressividade.

Inspirado por P. Fédida, Flávio lembra que a proibição de tocar faz parte do instituí- do civilizatório primordial. No desenvolvimento da espécie e também no do sujeito individual, o pensamento substitui parte da relação com o mundo inicialmente ocupada pela ação. O pensar denota a constituição de uma representa ção interna do mundo, a passagem do princípio de prazer (marcado pelo imperativo da ação para a satisfa- ção imediata do desejo) para o princípio de realidade (que permite imaginar e adiar a satisfa ção do desejo). Na neurose obsessiva o pensamento pode se tornar um substituto completo da ação limitando e, no limite, impedindo a ação e o contato com o mundo e com a realidade. Na perversão, o ato resulta da precariedade dos processos de pensamento, instaurando o regime da impulsividade e da busca da descarga e da satisfação imediata.

É importante lembrar que, mesmo quando se manifesta em comportamentos (nos rituais, por exemplo), o ato obsessivo ainda é dominado pelo pensamento. Como sugere O. Fenichel, as dinâmicas obsessivas se caracterizam pela compulsão e as perversas, pela impulsão. Na compulsão, “o neurótico obsessivo sente-se compelido a fazer uma coisa que não gosta de fazer”, enquanto o perverso “sente-se obrigado a gostar de uma coisa mesmo contra sua vontade” (apud, p. 95). O ato obsessivo comporta uma dimensão sintomática, simbólica, de formação de compromisso entre instâncias psíquicas que evidencia o desprazer. O ato perverso é fruto da precariedade da organiza ção daquelas instâncias, constituindo-se quase que como um impulso de descarga imediata com vistas à obtenção do prazer, sem forma ção sintomática e carente de dimensão simbólica.

Aproximando-se da conclus ão, Flávio nos alerta ainda para mais uma emboscada. Aparentemente, o ato perverso busca o prazer imediato, permanente e a qualquer custo do perverso, enquanto o sintoma neurótico seria caracterizado pelo desprazer. Ele lembra, porém, que na neurose obsessiva o gozo é experimentado na pró- pria organização e manuten- ção da defesa sexualizada e dos sintomas, como satisfa- ções substitutivas. Assim, enquanto o perverso desafia e transgride aberta e declaradamente os limites e as regras, a desobediência e o desafio obsessivos insinuam-se ardilosa e silenciosamente sob o manto do sintoma, constituindo- se como uma verdadeira armadilha para o clínico.

Mais um enigma que nos espreita. Seguramente, não o último.
topovoltar ao topovoltar à primeira páginatopo
 
 

     
Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
Sociedade Civil Percurso
Tel: (11) 3081-4851
assinepercurso@uol.com.br
© Copyright 2011
Todos os direitos reservados