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Resumo
Resenha de Abrão Slavutzky e Daniel Kupermann (orgs.), Seria trágico... se não fosse cômico - humor e Psicanálise, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, 351 p.


Autor(es)
Nayra C. P. Ganhito
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, membro do Coletivo Escuta Sedes, autora do livro Distúrbios do sono (Casa do Psicólogo) e de vários artigos e capítulos de livros, professora convidada do Curso de Psicanálise do referido Departamento no ano letivo de 2021.



Notas

1. Jones e Pontalis, respectivamente.

2. Trata-se de uma leitura de O arco e o cesto, de Pierre Clastres, que contrapõe a posição social de dois pané (homens destituídos de sua masculinidade) entre os índios Guaiqui.

3. No mito, a velha graîa cura a deusa Deméter de sua melancolia exibindo seu sexo com caretas e movimentos insólitos ou com piadas e obscenidades.


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 LEITURA

Rrose Sélavy: o véu que nos protege

Nayra C. P. Ganhito


Resenha de Abrão Slavutzky e Daniel Kupermann (orgs.), Seria trágico... se não fosse cômico - humor e Psicanálise, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, 351 p.

Em tempos que seriam trágicos se não fossem cínicos, eis que o humor psicanal ítico, há muito relegado ao limbo, finalmente sai do armário. Reunida em comemoração ao centenário do clássico livro dos chistes (1905), esta saborosa coletânea vem catalizar a tendência esboçada nos últimos anos: uma vigorosa retomada do tema com base nos textos freudianos, iluminando o rico manancial ainda pouco explorado das questões que se entreabrem para a teoria e a prática psicanal íticas. A primeira quest ão, portanto, refere-se às razões de este reinvestimento fazer-se oportuno no exato contexto do mal-estar atual - na cultura, na Psicanálise e em suas relações recíprocas.

Estamos em plena era dos transtornos do humor, que abrangem uma gama crescente de variedades psí- quicas. Os antigos humores corpóreos ressurgem com força sob a roupagem moderna dos neurotransmissores. A escala linear de polaridade bin ária depressão/mania empobrece o campo mais complexo dos afetos ali confinados, subtraídos de qualquer sentido subjetivo. Além disso, o discurso da propaganda não desconhece a potência de contágio do princípio do prazer (Birman, p. 83): Humor, hoje, é também o nome da última fragrância lançada pela Natura.

O livro lança um olhar provocante e bem humorado sobre nossos dias e os descaminhos da Psicanálise - afinal, o humor freudiano se quis rebelde e jamais resignado. Visando a "resgatar a potência intrínseca ao Witz, intuída por Freud" (p. 10), sublinha as relações dinâmicas entre o trágico e o cômico: "um pequeno deslize no acento de uma cena pode transformar uma tragédia em comédia - e vice-versa" (Kehl, p. 60). Freud mapeou as fontes de angústia na modernidade, mas também fez o elogio da transitoriedade da experiência humana e do humor como saída subjetiva "sublime" (Kupermann, p. 31). A Psicanálise se constituiu entre os dois registros - mais especificamente, entre os registros do drama e do chiste (Birman, p. 92), apesar do esquecimento deste último pelos pós-freudianos e das ambival ências do próprio Freud (Mezan, p. 134).

O humor é também o elemento sem o qual todo caminho epistemológico desenha- se como paranóia (Prado de Oliveira, p. 268). Trata-se então de redimensionar a ética e a estética psicanalíticas como saber alegre e terapêutica efetiva, recuperando o que foi recalcado em seu processo de institucionalização, deixando como restos o formalismo, a obsessividade, a melancolização (Birman, p. 96). O drama, a razão cí- nica, a euforia ou a analgesia farmacológica não são as únicas formas de lidar com o trá- gico de nossa existência.

Por simpatia à causa, podemos responder ao chamado "social" da piada e, compelidos pelo princípio do prazer, passar adiante o achado, as boas novas, aceitando a hospitalidade própria do Witz, que convida o destinat ário a completar o sentido com suas próprias referências (Figueiredo, p. 288).

Os onze ensaios percorrem em conjunto pontos essenciais da teoria freudiana e seguem na companhia de Lacan, Winnicott, Ferenczi e "outras paróquias" - a arte contemporânea, a antropologia, a filosofia oriental e ocidental, em especial Bergson. Variedade que corrobora a posição freudiana que viu na forma a essência da efic ácia do Witz: surgem estilos. Definições do Witz que são elas mesmas um Witz pontilham todo o livro, que conta ainda com a participa- ção especial de verdadeiros humoristas: Luis Fernando Verissimo e os caricaturistas Santiago e Aroeira.

Não faltam, em cada um dos artigos, os exemplos - anedotas, piadas, histórias espirituosas e cenas clínicas -, preferências estéticas e metodologia usada no livro dos chistes. Entre elas, várias passagens da vida de Freud, um homem espirituoso.

A minúcia aborrecida do livro dos chistes teria contribu ído a torná-lo "o menos lido dos livros de Freud" e ainda "o mais chato" [1]. A metapsicologia, "uma das faces pesadas da Psicanálise", pode ser como a explicação que mata a piada (Slavutzky, p. 218), quando nos tornamos técnicos. No entanto, a "caligrafia do detalhe" fundamental no argumento freudiano participa da própria construção do chiste: "uma decisão mínima, o detalhe de um gesto que vira um sentido pelo avesso" (Souza, p. 318).

Assim, em uma época que estudou o cômico e o riso na economia das emoções, por meio da filosofia e da psicologia científica nascente, a originalidade de Freud voltou- se para a formação psíquica do chiste - desafio que se renova em nossos dias. Articulando-o com o riso e com o inconsciente, evidenciou em sua "incisiva concis ão significante" a marca do desejo daquele que o formula (Birman, p. 99-101).

Aparentemente isolado na obra, o Witz, escrito concomitantemente aos "Três Ensaios", compõe organicamente o conjunto de trabalhos que consolidou o primeiro sistema da Psicanálise (1900-1905). A “criança sempre viva com seus impulsos” do livro dos sonhos ganha contornos com a sexualidade infantil polimorfa e com o estudo do pensamento infantil a partir do jogo e do desamparo. Anuncia, além disso, intuições que só mais tarde encontrariam formulação conceitual, ligadas à agressividade, ao narcisismo, ao ponto de vista econômico, à sublima ção e ao prazer (Mezan, p.131-134).

Da ordem do infantil e do libidinal que o riso evidencia e regido pelos processos primários, o chiste burla a racionalidade do processo secund ário por meio de uma retórica lúdica que suspende provisoriamente os interditos que pesam sobre fantasmas sexuais e agressivos. Mas, ao contrário do sonho, que realiza desejos na intimidade do sonhador, a cena lúdica do chiste se manifesta “a céu aberto” na cena social (Birman, p. 98, 102).

O que Freud chamou de terceira pessoa, o ouvinte – acrescentando um terceiro personagem à cena cômica, dual – tem uma função essencial de testemunho sem o qual o “circuito do prazer” (Mezan, p. 156) não se completa. Após um instante de desconcerto, sua risada avaliza o que há de espirituoso no dito, liberando o riso do narrador e o desejo no campo intersubjetivo, numa experiência de transgressão (Birman, p. 103). “O riso vem como resto da estratégia de despistar o recalque e partilhar com o outro, como um segredo, as extensões de nossa castra- ção” (Souza, p. 319).

Por isso o Witz pode ser tomado como modelo de toda a estética freudiana – as fontes da criação e da fruição no jogo entre criador e destinat ário (Mezan, p. 190). Piadas e humor são manifestações diferentes do Witz preciosas para a investigação dos processos sublimatórios – convidando a pensá-los como “potência criativa erótica” e não como “deserotização do alvo da pulsão” (Kupperman, p. 61).

“Inapreensível como um espírito que passa” (Minnois, apud Slavutzky, p. 206), fugaz e volátil, o humor “não se deixa definir muito seriamente ” (Pereda, p. 115). A palavra remonta à teoria hipocrá- tica dos humores do corpo que determinam os temperamentos básicos. A psiquiatria clássica, herdeira dessa tradi ção, formulou a timia, o “estado de ânimo” que resiste na língua como o bom e o mau humor. A Psicanálise recuperou a articulação hipocrática corpo-alma implicando no humor o corpo erógeno-pulsional, atravessado pela linguagem. O senso de humor não coincide com o bom humor, mas concerne a um certo posicionamento subjetivo em face do saber de nossa condição sexuada e mortal (Pereda, p. 124).

O termo Witz, de difícil tradução, deriva do verbo wissen, que remete tanto ao saber quanto ao essencial a ser sabido – o x da questão (Mezan, p. 140). Isto indica uma relação especial do chiste com a verdade: fagulha de verdade – não toda – que cintila por um instante, à qual se alude tangencialmente, somente de esguelha, na diagonal.

Enigmaticamente, este que Freud considerou um “dom precioso e raro” entre as virtudes psíquicas foi objeto de apenas dois trabalhos, separados no tempo por 20 anos. O breve artigo “O humor ” surge repentinamente em 1927 no importante X Congresso Internacional de Psicanálise, terminando com uma provocação aos analistas: “ainda há muito a aprender sobre o superego e as vicissitudes do além do princ ípio do prazer”. Como se aos setenta e um anos, já doente, depois dos piores anos de sua vida (Slavutzky, p.222) e de posse da segunda tópica, finalmente ousasse formular as dimensões de suas intui- ções iniciais acerca da “pot ência” – clínica e heurística – do Witz.

O artigo é aberto com a mesma piada do condenado à morte que fecha o livro dos chistes, com a questão: como se pode rir em situa- ções onde se esperaria ang ústia e desespero, num processo que não é meramente defensivo nem psicopatoló- gico? (Kuppermann, p. 25). Nem mania, na qual “não há trabalho de luto e o princípio de realidade está ausente” (Slavutzky, p. 219), nem fetiche, formulado também em 1927. O humor freudiano é a arte de rir apesar da dor, das penas e da finitude em nossas existências, lembrando a sensibilidade do artigo sobre a transitoriedade: uma “possibilidade de experienciar algo que continuamente esquecemos, que somos fundamentalmente passagem de um ponto a outro” – queda, risco, vertigem, mas também prazer no “estilhaçamento de nossas imagens”, aumentando seu campo de circulação (Souza, p. 315).

As relações do humor com o narcisismo são portanto paradoxais. Como um catalisador do gozo dos demais, o humorista tem uma face sedutora (Birman, p. 87). Suas criações, como quaisquer outras, visam a aspirações do ideal do eu e ao amor de outros investidos – dos pais da infância ao público (Mezan, p. 188): a sublimação é um destino pulsional, mas também do narcisismo infantil.

No entanto, a despeito do triunfo do ego afirmado por Freud, quem resulta “patético” no humor é justamente o eu, pela denúncia da falência das aspirações narcísicas, embora sustente uma “dignidade” ausente na piada ressentida e na autodegradação melanc ólica (Pereda, p. 124).

A aguda lucidez do humor expõe de maneira “delicada e inteligente a cicatriz em nossos narcisismos”: ao ego demasiado cheio de si, impõe-se “como o pequeno estilete (estilo) que desenha o corte que nos desinfla, fazendo verter com o riso um pouco de nosso desespero” (Souza, p. 316). Desse modo, aplaca a visão paranóide do mundo em troca da capacidade de sorrir dos infortúnios comuns (Slavutzky, p. 217).

A comicidade faz recair o ridículo sobre o divergente, reforçando a norma e os laços identitários do grupo – um narcisismo das pequenas diferenças. Mas o humor implica a angústia de desterritorializa ção e da perda de referências identitárias pró- pria dos processos criativos, manifesta na “ambiguidade irresolúvel” do tragicômico e no riso que engendra: um riso ambivalente, misturado às lá- grimas (Kuppermann, p. 24). O preço da irreverência, que implica certo ceticismo quanto aos códigos e ideais da cultura, é a dificuldade de compartilhar as ilusões “normais” que mitigam o desamparo (Kehl, p. 78). “Em almas serenas não existe o Witz” (Novalis, apud Figueiredo, p. 289): o paradoxo de humoristas com vidas depressivas abre uma indagação quanto às relações recíprocas entre a capacidade de humor e certa melancolia não negada (Slavutzky, p. 220).

O humor intervém justamente “em situações-limite, de súbito investimento do aparelho psíquico por excessivo aporte pulsional, onde se espera a angústia e a invas ão do real” (Ungier, p. 235) – portanto, lugar potencial do traumático. Pode então funcionar como “uma cortina que nos protege do sol pulsional excessivo” (Souza, p. 317), “o último véu em relação ao real, como na piada do condenado ” (Pereda, p. 125).

Isto implica que o eu possa, “prestes a sofrer a execu- ção”, sacrificar sua perfeição imaginária, “duplicando-se e debruçando-se sobre o narcisismo ferido com benevolência, como um pai que, em vez de criticar, ri das bobagens do filho” (Kehl, p. 62) .

Assim, a (desconcertante) hipótese de 1927 transforma o que foi visto como relaxamento parcial do recalque, em 1905 – quem diria? –, em um sobreinvestimento do superego. Pela única vez na obra, surge uma face amorosa e tolerante dessa inst ância, “perdida em face ao trágico e severo superego de ‘Totem e Tabu’’’(Slavutzky, p. 213). O eu abre-se a ela confiantemente, investindoa de modo a reencontrar, no lugar da voz do pai castrador, o pai que brincava e protegia, que também concerne à inf ância (Mezan, p. 63). O drama egóico pode então ceder a uma tragicomédia inspirada nos temas neuróticos que ridiculariza os personagens supereg óicos, num movimento contrário à culpa obsessiva e à certeza paranóica (Pereda, p. 123). Em Freud, a figura do órfão, identificado “até certo ponto com o pai” – atendo-se à formação de um ideal de eu com o signo da alteridade –, se contrapõe à do herói, identificado de modo absoluto ao pai idealizado, fálico e indestrut ível (Kuppermann, p. 35).

Essas considerações convidam a pensar o uso do humor na clínica, que permanece suspeito de sedução, por suas implicações eróticas e pulsionais. Joel Birman mostra que a desdramatiza- ção da cena psíquica ocupou o centro do projeto terapêutico freudiano desde a teoria da fantasia até o final da obra, enunciado como passagem “da miséria histérica à infelicidade banal” e mais tarde como mal-estar irremedi ável do sujeito na cultura. O drama não coincide com o trágico, ao contrário, funciona como massa de nuvens encobridora. Se a neurose não é mais que o drama forjado pelo psiquismo sobre o trágico inevitável, o humor é o que pode esvaziar “o estilo de fatalidade” das queixas, desdramatizando a narrativa. O riso pode então, paradoxalmente, “abrir as portas do inferno” – ao que é da ordem do horror e do mais além em nosso psiquismo, mediando a passagem do sinistro para o familiar, por meio do princípio do prazer – como o demonstra a risada de pacientes em face a certas interpretações cujo conteúdo não justificaria manifestações de hilariedade (p. 89-93).

O humor pode veicular agressividade, verdades veladas no limite da ofensa, mas também agenciar as transfer ências de investimento de certas idéias implicadas, segundo Freud, na terapêutica da paranóia e nas altern âncias mania-melancolia (Prado de Oliveira, p. 269). A ironia pode ser uma estrat égia de divergência sem enfrentamentos, jogando com a ambigüidade da palavra “em seu próprio terreno”, desarmando as réplicas com pouco gasto psíquico (Kehl, p. 68). Freqüentemente desmonta a cena paranóica ou birras obsessivas, principalmente quando inclui a admissão de alguma falha que expõe o desejo do analista (Slavutzky, p. 210, 213).

Frente a seu paciente que se tornou ameaçador, o analista encena uma pantomima: puxa os cabelos e se desespera, perguntando o que pode fazer com ele ou ele consigo. Surpreso por ter sua loucura substituída pela do analista, torna-se filósofo: “O que pode fazer por mim?! Veja só! O que os seres humanos sempre fazem entre eles! Vai tentar alguma coisa e vai errar – este foi e sempre será o nosso destino! Não se preocupe, doutor.” Depois, o riso de ambos, reconhecendo sua sabedoria. “Quanto mais grave e perigosa a situação analítica, mais o humor se torna delicado e o riso, sorriso ” (Prado de Oliveira, p. 274) – algo precioso no manejo de novos sintomas na clínica contemporânea..

“O chiste é como alguém que via de regra devia apenas representar e, em vez disso, simplemente age” (Schlegel, apud Figueiredo, p. 292). A bem-humorada provoca ção em ato de Ignácio Gerber à SBP (p. 283-286), comentada por Luís Cláudio Figueiredo, encontra sua efic ácia na forma insólita para os padrões de uma reunião científica. De inspiração bioniana, inclui o desenho japon ês de um círculo que não fecha e a parábola na qual o mestre zen faz transbordar o chá na xícara do professor universitário falastrão, sentenciando: “Quando a taça está cheia, não cabe mais chá” – uma interpretação aos psicanalistas.

As definições na Psicanálise, a clínica à luz das teorias e o Witz têm em comum este “não poder conter ou conter- se”. Entretanto, há uma hospitalidade em jogo no Witz, cuja ética acolhe o estranho enquanto tal, sem domesticá- lo (Figueiredo, p. 294). O riso oriental se aproxima do ato analítico e da palavra eficaz de Bion. Nem representação nem comunicação: “palavras que nos intimam a vir a ser, bem mais que nos excitam a compreender” (Valéry, apud Figueiredo, p. 292).

O chiste, este “clarão que repentinamente rasga o céu interior da consciência”, impõe freqüentemente “uma pausa desagradável na conversa ” (Suzuki e Schlegel, p. 291): desconcerto. Em seguida, alegria intensamente pulsional, que nos ilumina, por meio do novo sentido criado: esclarecimento. “Depois que o riso cessa, um silêncio contemplativo entra em cena, soberano. Recuperamos o infantil que nos habita na irrever ência ao sentido, sempre que nos dispomos a perder o equilíbrio” (Souza, p. 316).

Assim, a analista escuta a placa arrevezada “Vende peixe-se” em meio às divaga- ções de seu paciente pressentindo um cardume de idéias: “Ah, é uma pescaria... peixese! ” No manejo transferencial, o humor privilegia a invenção à decifração do passado: “a relação entre inconsciente e linguagem não tem nem fundo nem raso, apenas a ação, o enredamento: “peixemonos! ” É também aquilo que pode traçar uma ponte sobre o canal da Mancha, ligando o objeto a de Lacan ao objeto transicional de Winnicott (Ungier, p. 243-246).

A figura do psicanalista de ar circunspecto, envolto num silêncio solene – ineficaz frente à angústia de seus pacientes, como nos filmes de Woody Allen – não cola mais. O humor sobre analistas, no cinema ou em caricaturas, testemunha algo sobre como se analisa, dessacralizando “barba, divã e instituições”. A rigidez manifesta nas imposta- ções da voz e “até na musculatura ” indica um resto de nossa formação e uma dívida – ali onde contribuímos para que a destituição do analista como “amo do saber e do gozo” permane ça pendente (Pereda, p. 126; Slavutzky, p. 214).

Ferenczi e Winnicott, que assimilaram abertamente o jogo e o brincar em seu estilo clínico, são freqüentemente considerados analistas maternantes. Mas a desfaliciza ção e feminilização nisso implicadas se referem à descren ça na soberania da interpreta ção, no analista como “substituto paterno” e nas garantias no exercício da clínica (Kuppermann, p. 42-45). Hoje vemos esboçar-se, aqui e ali, uma atitude mais despojada que favorece transferências mais horizontais, na linha da fratria – nem pai da Lei nem mãe boa, posições que deslizam facilmente para o registro fálico.

Finalmente, enfatizemos que o humor pode ser a saída astuciosa e vital dos mais fracos. Maria Rita Kehl mostra com graça que apesar da rela ção do humor com o infantil, sublinhada por Freud, a infância, marcada pelo desamparo e pelas paixões edípicas, é uma idade ameaçada de humilha ções. O senso de humor das crianças seria um meio de domínio e elaboração dessas angústias, favorecendo a passagem da posição de objeto (passivo) de riso à atividade, numa reversão equivalente à descoberta do jogo do Fort-Da. Processo gradual que pode paulatinamente transformar pequenos palha- ços que divertem os adultos em argutos humoristas, capazes de ironias sutis quanto à rigidez e ao automatismo da vida adulta (p. 63, 68).

A atitude humorística pode responder a situações inevitáveis e universais, mas também a discursos e poderes opressores, transformando- os em objeto de chiste e de riso, numa alternativa à posição masoquista conseq üente à identificação com o agressor. Não por caso Freud e Bergson, dois judeus, escreveram os trabalhos fundamentais sobre o humor no século XX em um ambiente anti-semita. O humor judaico foi tão crucial na constituição da tradição judaica como na construção desses discursos particulares (Birman, p. 105).

Chaim Katz inverte a questão, pensando o riso por meio do qual uma coletividade discrimina certos membros, no caso, por sua posição sexual. Preocupado em mostrar que o riso não se restringe a algo negativo ou relacionado ao recalque, já que é força, intensidade pulsional com potencial criativo, mostra através das brechas do estruturalismo antropológico [2] que tal riso expressa menos o desprezo que a tentativa de exconjurar o medo e o horror daquilo que o diferente presentifica como latente em cada membro da coletividade: nossa polimorfia pulsional. Mas não só: aponta também sua positividade realizada, denunciando o que escapa à ordem social vigente, ajudando a pensar a clínica de psicóticos e perversos (p. 332-336).

Justamente nesse ponto, com Daniel Kuppermann, podemos introduzir a questão do enigma do riso das mulheres. Do catolicismo à inven ção do falocentrismo na Grécia antiga, tradição em nada estranha à nossa cultura nem à Psicanálise, o riso da mulher guarda algo de obsceno. Sendo ainda hoje um alvo freqüente das piadas masculinas, pode uma mulher rir e fazer rir em sociedades que ainda temem e reprimem seu riso?

Paradoxalmente, o Witz é da ordem do prazer preliminar (tão caro às mulheres...) para a descarga gozosa do riso. Renato Mezan mostra que a atitude receptiva à excita ção que o outro provoca no modelo do Witz arranha a concepção de prazer que predomina em toda a obra freudiana: domínio ou expulsão do estímulo visando à diminui ção ou à abolição da tens ão dentro do aparelho psíquico (p.190). Um caminho para pensar as relações do humor com a feminilidade.

Aqui, algumas figuras se insinuam, sugestivas: a velha grávida que ri e faz rir, paradigm ática do realismo grotesco; Iambe-Biobó, a face recalcada do mito de Medusa, representante do horror à castração [3] e as mulheres de Almodóvar que, surradas pela vida, ainda riem. “Nenhuma inveja do pênis ou recusa da castração na brincadeira com palavras obscenas que elas engendram – o riso dessas mulheres que se sabem insuficientes acontece entre companheiras de descrença da métrica e rima falicista” (Kuppermann, p. 38).

Condenados à morte que todos somos, podemos ainda sonhar com uma comunidade de “companheiros de descrença” (e não de desespero) em qualquer soberania, divina, egóica... ou de gênero, por meio do gaio saber do humor “em face à orfandade do homem moderno, da morte e da feminilidade.” (op.cit., p. 36-38)

Um bigode na Mona Lisa – cujo sorriso intriga os séculos – rompe o aconchegante senso comum, seus valores e seus clichês. O humor denuncia o gosto como hábito, destilando o pouco de liberdade que ainda temos. Para André de Souza, a obra irreverente de Marcel Duchamp ilumina, no trânsito entre pólos opostos de nossa cultura, o que cai na passagem, fazendo-nos rir desses restos recusados que também são nossos. A báscula entre os opostos feminino/ masculino foi um de seus grandes temas (p. 321, 322).

A propósito, Rrose Sélavy foi o nome adotado por Duchamp quando quis mudar de identidade, fazendo- se fotografar como personagem feminino. Nome que brinca com rose/eros, eros c’est la vie e, por que não, la vie en rose.
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