voltar à primeira páginaResumo Enquanto a Psicanálise vive o risco de tornar-se uma “ciência objetiva”, o psicanalista vê-se diante da exigência de levar em conta a questão da narratividade histórica, tal como ela foi problematizada pela descoberta de Freud. Autor(es) Sandra Lorenzon Schaffa é psicanalista, membro da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo. Notas 1. Expressão que deriva de french bash, do verbo to bash, derrubar com um golpe violento (prática que consiste em bater nos franceses), ou Freud War (guerras contra Freud), moda lançada pelos novos revisionistas da história da Psicanálise, agora encabeçando o Livre noir de la Psychanalyse (Catherine Meyer) e o Dossier Freud (M. B. Jacobsen e S. Shamdasani). 2. Le magazine littéraire, n. 443, janvier 2006, p. 34. 3. Sur l’histoire du mouvement psychanalytique, Gallimard, 1991, p. xvi. 4. L’ombre de l’objet, Editions du Seuil, 1990, p. 13. 5. É preciso notar que a tradução francesa de Cornelius Heim para Der Mann Moses und die monotheistische devolve ao título da obra, abreviado por Strachey, a expressão “O homem Moisés”. A abreviação foi mantida pela edição brasileira: Moisés e o monoteísmo. 6. L’homme Moïse et la religion monothéisme, Gallimard, 1986, p. 132. 7. cit. por Moscovici em seu prefácio in L’Homme Moïse et la religion monothéiste, op. cit., p. 26. 8. L’homme Moïse et la religion monothéiste, op.cit., p. 113. 9. cit. por Roudinesco, Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro, 1998, p. 519, grifos meus. 10. L’homme Moïse et la religion monothéiste, op.cit., p. 114. 11. Idem, op.cit. p. 115, grifos meus. 12. Idem, op.cit., p. 115, grifos meus. 13. Texto inédito. 14. La psychopathologie de la vie quotidienne, Gallimard, 1997, p.412. 15. P. Fédida, cit. pelos autores, Revista Natureza Humana, no prelo. 16. L’Entretien infi ni, Gallimard, 1969, p. 348. 17. “Quem? Joyce, hoje?”, inédito. 18. Résultats, idées et problèmes, PUF, 1985, p. 236, grifos meus. voltar à primeira página
| | TEXTOO homem freudiano e a loucura da históriaSandra Lorenzon Schaffa
Comemorando os 150 anos do nascimento do pai da psicanálise, O Magazine Littéraire, em janeiro de 2006, publicou um dossiê “Aos anos Freud: história da Psicanálise através do mundo”. A partir do depoimento de Elisabeth Roudinesco, assim como de analistas de diversos países, retraçou a “prodigiosa expansão da Psicanálise através do mundo”. Inserindo-se nas controvérsias que ocupam a mídia, os chamados Freud bashing [1], a revista francesa recolheu opiniões de vários comentadores, entre os quais Elisabeth Roudinesco, para enfrentar a nova onda de fúria anti-freudiana. Por que tanta raiva? – questiona Roudinesco em sua réplica (Pouquoi tant de Haine? ed. Navarin). Essa autora empenha-se nesse livro num trabalho crítico, uma anatomia do Livre noir de la Psychanalyse. “A Psicanálise foi tratada de “ciência boche” (alemã) pelos franceses, “ciência judia” pelos nazistas, “ciência burguesa”, pelos soviéticos. E agora, “falsa ciência”. Bom pedigree !”, ironiza a autora na entrevista ao Magazine Litteraire [2]. A perspectiva de um revisionismo histórico, pondo em questão a confi abilidade da Psicanálise, a partir do ponto de vista da escrita de sua história, traz à baila nada menos que o problema da verdade e da certeza que sustenta sua Erzählung, sua narratividade. Coloca o psicanalista diante da exigência de tomar em conta a questão temporal tal como ela foi problematizada pela própria descoberta de Freud.
Ao escrever a História do movimento psicanalítico, Freud poderia ter sido então movido pela necessidade de engajamento, de chamar à ordem: “uma política da Psicanálise que se põe em obra”, como formula J- B. Pontalis no prefácio à edição francesa dessa obra [3], diante da impossibilidade de controlar o “movimento” que se começava a desviar das concepções fundadoras, delegando à escrita a função de firmar o sentido doutrinário da trajetória percorrida.
No entanto, o compromisso de salvar a doutrina não faria de seu único fundador um historiador menos frágil. Ao ter de sustentar os incessantes remanejamentos impostos pelo caráter inesperado de suas descobertas – os pensamentos do sonho (Traumgedanken), a transferência de pensamentos (Ubertragungsgedanken), a compulsão a repetição (Wiederholungszwang) –, a escrita freudiana criava conceitos que não se entregavam pacifi - camente ao empenho de um estabelecimento inequívoco das bases sobre as quais se erguia o edifício psicanalítico. Se, de sua experiência com Charcot, Freud trouxera a possibilidade de conceber um pensamento “separado da consciência”, essa clivagem, na qual reconheceria a condição formadora do sintoma, o faria opor-se a Janet, reconhecendo no sintoma um processo de formação a ser relevado e não uma insufi ciência. O processo de formação do sintoma é, para Freud, a resultante de um desvio (Umweg) do desejo, cujas formas de apresentação fizeram da teoria freudiana do sonho, da sexualidade, do sintoma, correspondentes das operações de transformação que pertencem ao domínio da transferência. Mas, que regime de verdade reinvindicar para sua ciência ao abandonar a tradição de Veritas est adaequatio rei et intellectus (verdade é a adequação do intelecto à coisa)? Onde se apoiar ao remontar ao solo das origens primeiras e, ainda mais, como ele próprio declarava, tomar partido da antiguidade e da superstição popular legando ao ostracismo a ciência positiva?
A pertinência ao domínio da transferência faz com que a descoberta freudiana corresponda a um fracasso do registro temporal comprometido com as possibilidades de representação dos destinos singulares e sociais do homem referentes às defi nições sociológicas e políticas do indivíduo e da relação inter-individual.
Que representação da temporalidade caberia ao historiador da Psicanálise, a partir desse objeto insólito concebido por meio de uma ruptura com a perspectiva temporal, onde o sentido de progresso não é senão o da reconstrução do passado com base no presente? Marie Moscovici empresta de Nietzsche a expressão “inatual” para designar o regime temporal da Psicanálise, o caráter abissal da perspectiva “desse objeto que ao se inscrever na história do espírito humano teria mudado a concepção mesma do que pode ser esse espírito” [4].
Ao registrar a história de sua própria disciplina, a escrita freudiana, mais agudamente do que na História do movimento psicanalítico, nas Conferências introdutórias ou no Estudo autobiográfico, encarna- se brutalmente num regime de inatualidade em sua obra final, em seu “Romance Histórico” (como aludiu na correspondência com A. Zweig). Com O homem Moisés e a religião monoteísta [5], Freud nos leva a acompanhar a travessia de seu Homem em sua radical extemporaneidade. Sobre a dimensão atual / inatual desse tempo freudiano lemos, no prefácio de 1938, escrito em Viena na véspera do exílio: “Nós vivemos em um tempo particularmente curioso. Nós descobrimos com surpresa que o progresso concluiu um pacto com a barbárie” [6].
A questão freudiana da verdade histórica materializa-se em seu romance secreto, como o batiza Moscovici no prefácio à edição francesa. O Homem Moisés freudiano sustenta a tensão máxima entre ficção e verdade. Sem economizar recursos literários, poéticos, o autor sela, acima de tudo, um compromisso indissolúvel com a verdade.
A tensão que tomava verdadeiramente o autor, confessa-a numa carta a A. Zweig, em 16 de dezembro de 1934: “Deixe-me em paz com o meu Moisés. Que eu tenha fracassado nessa tentativa para criar alguma coisa – a última provavelmente – já me deprime bastante. Não que eu não me tenha desligado. O homem e o que eu queria fazer dele me perseguem continuamente. Mas é impossível, os perigos exteriores e os escrúpulos interiores não me deixam outra saída. Acredito que minha memória dos acontecimentos recentes não seja muito segura. Que eu vos tenha escrito numa carta precedente que Moisés era egípcio, isso não é o essencial, por mais que seja o ponto de partida. Não é mais a difi culdade interior, pois podemos ter isso por certo. Mas o fato de que tenha sido obrigado a erigir uma estátua tão espantosa de grandeza sobre um solo de argila, de sorte que qualquer louco possa derrubá-la” [7].
A leitura de Moisés, longe de colocar o leitor diante do resultado de uma interpretação, o conduz para o interior de um vórtice interpretativo.
Escreve Freud: “O relato bíblico que nos chegou contém dados históricos preciosos, inapreciáveis mesmo, que foram deformados sob a influência de tendências potentes e ornadas das produções da invenção poética. Até aqui nós pudemos adivinhar no curso de nossa investigação uma dessas tendências deformantes. Essa descoberta nos mostra a via a seguir. Temos de descobrir outras dessas tendências. Se dispomos de pontos de referência para identifi car as deformações criadas por essas tendências, nós traremos à luz, por trás delas, novos elementos de verdade histórica” [8]. Numa carta a Lou Salomé, Freud resume o conteúdo do livro e conclui com as seguintes palavras: “As religiões devem seu poder coercitivo ao retorno do recalcado, são reminiscências de processos arcaicos desaparecidos e altamente efi cazes da história da humanidade. Já o afi rmei em Totem e tabu. E agora condenso isso numa fórmula: o que fortalece a religião não é a sua verdade real, mas sua verdade histórica” [9].
O empreendimento do Moisés reproduz em sua escrita a história da descoberta do inconsciente. A análise do assassinato paterno, interpretado pelos produtos (sintomas) do esquecimento, leva Freud a um encontro com a loucura constituinte dos mitos religiosos. A leitura freudiana do texto bíblico descobre a operação do deslocamento e da condensação na invenção do monoteísmo e da fi gura de Moisés em um tempo mítico. Reconstrói sua origem no politeísmo egípcio do qual ele se originou. A escrita freudiana sustenta-se num estado de memória anacrônica: “Nos é naturalmente impossível saber, escreve Freud, em que medida os relatos relativos aos tempos remotos remontam a escritos antigos ou a tradições orais, e que lapso de tempo escoou, em cada caso, entre o acontecimento e sua notação” [10]. E prossegue adiante: “De um lado, remanejamentos intervieram que os falsifi caram, mutilaram e amplifi caram no sentido de suas intenções secretas até que os reverteram fazendo-os signifi car o seu contrário; de outro lado, (os relatos) foram objeto de uma piedade, plena de consideração, que queria tudo conservar tal como se encontravam, sem se preocupar se diversos elementos concordavam ou se destruíam. É assim que quase todas as partes comportam lacunas evidentes, repetições embaraçosas, contradições manifestas, indícios que traem as coisas cuja comunicação não era buscada. Passa-se com a deformação de um texto o mesmo que com um assassinato. A difi culdade não é executar o ato, mas eliminar os traços” [11].
Reconhecemos o autor da Interpretação dos sonhos audaciosamente empenhado em desvelar o sonho (a potência mortífera de seu pensamento) e o sintoma (os contrainvestimentos da neurose) de seu Homem. O que encontra no texto bíblico nas “lacunas evidentes, repetições embaraçosas, contradições manifestas, indícios que traem as coisas cuja comunicação não era buscada” é, pois, a manifestação da resistência formadora da nossa humanidade. “Gostaríamos de emprestar à palavra Entstellung (mudança de posição), continua Freud, o duplo sentido que ela pode reivindicar, mesmo que não seja o uso dos nossos dias. Ela não deverá signifi car mudar o aspecto de alguma coisa, mas também mudar qualquer coisa de lugar, deslocá-la para algures. Em muitos casos de Entstellung de um texto, nós podemos portanto esperar encontrar escondido, aqui ou ali, o elemento reprimido ou negado, mesmo se ele é modifi cado e arrancado de seu contexto. Apenas não será sempre fácil reconhecê-lo. As tendências deformadoras que nós queremos descobrir já agiram sobre as tradições, antes de todas as redações.” [...] “Não temos o direito de pedir às formações mítico-religiosas observar grandes considerações no lugar da coerência lógica.” [12]
Enfrentar a loucura produtora das formações míticas da história que compuseram a escritura bíblica leva Freud a conceber a fi gura de um Leitfossil, fóssil diretor. O fóssil dá a medida do anacronismo que orienta a decriptação das marcas temporais. A ousadia desse pensamento, em seu movimento de ultrapassar o sentido manifesto e a aparência natural da realidade humana, coloca-nos diante da descoberta da Psicanálise, do surgimento, no interior do processo, do próprio instrumento, a interpretação, expurgando-o de sua origem sagrada. Em “A propósito das origens judaicas da psicanálise” [13], Anna Verônica Mautner coloca-nos diante da idéia de que Freud nos brindou com “um confessionário sem perdão”. Não se trata numa psicanálise, afi rma a autora, de perdão, gesto comprometido com um sentido religioso, mas de “reinserção no mundo dos vivos.”
A interpretação implica um ato inominável tal como a escrita freudiana o executa. Leva-nos a situar a prática da análise fora do domínio da compreensão humana. Freud mostrou que o trabalho da interpretação é distinto da função intelectual. Esta, ensina a Psicologia da vida cotidiana, está ligada à projeção: “Uma psicologia projetada no mundo exterior”. Tal como mostrou- nos a análise da superstição, essa mesma “função intelectual que nos é inerente” é a responsável pelas concepções mitológicas e religiosas do mundo. “Uma psicologia projetada no mundo externo”, escreve Freud. Ao que acrescenta: “poderíamos atribuir-nos a tarefa de decompor, colocando-nos nesse ponto de vista, os mitos relativos ao paraíso e ao pecado original, ao mal e ao bem, à imortalidade [...] E de traduzir a metafísica em metapsicologia” [14].
A inteligência que serve ao analista reivindica o animismo que Freud reconheceu no pensamento do sonho e que presta serviço – pela contratransferência – à imaginação da violência selvagem da transferência e da compulsão a repetição situadas no domínio da crença que desafi a o pensamento filosófico. A diferença da posição do analista e do fi lósofo foi debatida no I CIFP, Congresso Internacional de Filosofi a e Psicanálise, por Luís Carlos Menezes e Alan Meyer em “A linguagem e o ‘aquém’ da linguagem na Psicanálise”. Esses autores, “assumindo explicitamente uma posição psicanalítica”, defi nem: “Tal posição implica uma diferença na relação com a teoria para o filósofo e o psicanalista. Essa distinção decorre da relação do analista para com a teoria que encontra um limite produzido a partir de sua própria prática. Esse limite faz com que sua leitura não assegure nenhuma fixidez normativa, que se move e trabalha na leitura, em função mesmo da evolução pessoal do analista” [15].
No diálogo promovido pela Liga das Nações entre Freud e Einstein, “Por que a guerra?” (Warum Krieg?), carta escrita em 1933, Freud responde a Einstein: “O senhor me surpreendeu ao submeter-me à seguinte questão: o que podemos fazer para desviar os homens da fatalidade da guerra? O sentimento de minha própria incompetência – ousarei dizer da nossa – assustame de pronto, pois isso me pareceu ser uma tarefa diante da qual fracassam os homens de estado.” [...] “O senhor começa pela relação do direito com o poder. É certamente o ponto de partida que convém à nossa investigação. Ousaria eu substituir a palavra “poder” por aquela mais dura, mais crua, “violência”? Hoje, o direito e a violência são, aos nossos olhos, antinômicos. É fácil de demonstrar que um se desenvolveu a partir do outro e, se remontarmos às origens primeiras, chegaremos sem difi culdade à solução do problema.”
Ganhariam, a essa altura, as expressões Freud bashing, Freud wars, outra gravidade se, retiradas do uso corrente, repercutissem nesse terreno no qual se constrói o texto freudiano, onde se ergue a interpretação do Homem freudiano como a espantosa estátua do Moisés sobre o solo friável da argila?
A Psicanálise vive o risco de tornar-se uma “ciência objetiva”. Com essa observação, Maurice Blanchot denuncia essa nossa resistência cujo nome poderia ser “necessidade de certeza”, e que, em nome de concessões ao “desejo de imobilizar a verdade a fi m de dela dispor comodamente”, cede aos propósitos de “descrever e determinar a realidade interior do sujeito, manobrá-lo com receitas aprovadas e reconciliá-lo consigo mesmo fazendo-o cúmplice de fórmulas satisfatórias [...]” [16].
A objetivação do pensamento expurga a equivocidade que habita a raiz da língua, insistiu Freud em “O sentido antitético das palavras primitivas”. A leitura do Homem Moisés impõe-nos a suspensão de nossas certezas e a insatisfação de nosso desejo de imobilização da verdade. “O equívoco é próprio da essência da palavra humana concreta” [17], analisa Fabio Herrmann em seu trabalho sobre Joyce, no qual reconhece que a escrita joyciana desafi a toda possibilidade de objetivação, o que vale pensar que não interpretamos a obra: a obra nos interpreta.
A leitura de uma grande obra pode ser a ocasião de um trabalho de análise: acompanhar o trabalho de decomposição de nossa psicologia projetada no mundo exterior, tal como nos leva a testemunhar o Homem Moisés, aceitando que o texto nos interprete. A interpretação é um ato decisivo. Freud, no capítulo sobre “o trabalho do sonho” da Interpretação dos sonhos, evoca Nietzsche para nomear a derrocada de todos os valores psíquicos que a transferência põe em jogo. Mais do que um sentido latente, a interpretação da transferência encontra o bárbaro, o selvagem, o inominável. Encontra o indizível na origem da linguagem.
O interesse maior da figura impressionante de Moisés erigida sobre o solo frágil da argila está na possibilidade louca de sua derrocada. Está precisamente na constituição friável do solo, na matéria, a argila, na qual se decompõe e se pode recriar a obra. O sentido do efêmero foi caro a Freud. Seu valor deve-se à confi ança no trabalho do sonho, mas também no trabalho do luto. Freud conclui assim seu artigo sobre o “Efêmero”: “Somente depois de superado, o luto fará aparecer que a alta estima em que tínhamos nossos bens culturais não sofreu com a experiência de sua fragilidade. Nós reconstruiremos tudo que a guerra destruir, talvez sobre uma base mais sólida e mais duradoura que antes” [18].
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