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Resumo
Resenha de Silvia Alonso, Danielle Breyton e Helena M.F.M. Albuquerque (orgs.), Interlocuções sobre o feminino, São Paulo, Escuta/Instituto Sedes Sapientiae, 2008, 414 p.


Autor(es)
Rubens Marcelo Volich
é psicanalista, doutor pela Universidade de Paris VII – Denis Diderot, professor do Curso de Psicossomática do Instituto Sedes Sapientiae. Autor de Psicossomática – De Hipócrates à Psicanálise e de Hipocondria – Impasses da alma, desafios do corpo (Casa do Psicólogo, 2000 e 2002), de Segredos de Mulher: diálogos entre um ginecologista e um psicanalista (em coautoria com Alexandre Faisal, Atheneu, 2010) e co-organizador e autor dos livros da série Psicossoma (Casa do Psicólogo).


Notas

1 S. Alonso, A. C. Gurfinkel, D. Breyton, Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo, São Paulo, Escuta, 2002.


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 LEITURA

Novos matizes do feminino

[Interlocuções sobre o feminino]


New shades in the feminine
Rubens Marcelo Volich

A cena é bucólica. Tentando esconder, sem sucesso, sua nudez, uma mulher linda, escultural, se ergue no centro de uma concha, que emerge de águas tranquilas. A sua direita, um casal alado a impulsiona com seu sopro para a margem, onde uma mulher a espera com um manto bordado de flores.

Não é difícil reconhecer nessa imagem O nascimento de Vênus, pintura de Botticelli que representa o mito da deusa do amor, do erotismo, da beleza, da feminilidade. Nesse quadro de 1483, os Ventos do Oeste, símbolo das paixões espirituais, impelem suavemente Vênus em direção a Hora, deusa das estações, que se prepara para recebê­ la. Desde a Grécia Antiga, o mito condensa crenças, valores e imagens que até hoje marcam representações, fantasias e o imaginário cultural relacionado à mulher.

Como muitas obras do Renascimento, em uma época em que maioria da produção artística se atinha a temas religiosos, a nudez de Vênus afrontava, com suas "influências pagãs", a representação da mulher daquela época. Como tantas outras obras (e mulheres...) acusadas de ousadia, heresia e transgressão, a Vênus de Botticelli parecia condenada às fogueiras de Savanarola, mas sobreviveu.

Nascida das águas, salva do fogo da intolerância, a imagem dessa Vênus atravessou os séculos sustentando o mito do feminino. Porém, contemporâneas à harmonia dos traços, ao equilíbrio das personagens, à delicadeza dos movimentos daquela deusa-mulher, vicejavam também as representações diabólicas, as fantasias lúbricas, a tentação e o terror das misteriosas figuras das feiticeiras, e o mesmo desejo irresistível e ambivalente de conhecê­ las e queimá­ las.

Ainda hoje, a imagem terna, luminosa e delicada da Vênus convive com a de uma mulher envolta por uma névoa sombria, misteriosa, sulfurosa, que intriga, seduz e provoca aqueles que dela se aproximam. A arte, a literatura, a filosofia sempre se viram provocadas e inspiradas pela surpreendente versatilidade da figura feminina, oscilante entre a fragilidade e o poder, a ingenuidade e a argúcia, o angelical e o demoníaco. Certamente, não seria a psicanálise que resistiria ao desafio de decifrar tais mistérios.

Ao tentar fazê­ lo, Freud muitas vezes foi hesitante e, algumas, esquivo. Confessava-se "pouco à vontade" para abordar a questão do feminino, considerava o psiquismo da mulher um "continente negro" e, visivelmente, preferia observá­ las a partir do olhar masculino, convidando as analistas mulheres a contribuírem para a revelação dos enigmas femininos.

Apesar de seu constrangimento, Freud tentou teorizar sobre a experiência do feminino, assim como tentaram fazê­ lo as primeiras psicanalistas mulheres que aceitaram seu convite. Porém, naqueles tempos, todos estavam por demais impregnados das forças narcísicas e transferenciais exercidas pela jovem teoria freudiana. Uma teoria do pai. Um olhar de homem. Uma escuta masculina.

Melanie Klein foi a primeira a tentar se libertar dessas forças, ao contrapor o seio à referência absoluta do falo, postulada por Freud em sua teoria psicossexual, porém sem conseguir evitar a lógica da presença/ausência de um órgão real ou simbólico como organizador das identificações e experiências masculinas e femininas. Uma nova geração de psicanalistas e a revolução promovida pelas teorias de Lacan foram necessárias para permitir que, por mais que simbólica, a história identificatória dos gêneros não mais permanecesse prisioneira dos "destinos anatômicos", revelando a potência organizadora e desorganizadora dos laços do desejo, a força dos ideais e do imaginário sociocultural.

É nessa linhagem, fértil e clinicamente importante, que se inscreve Interlocuções sobre o feminino, a nova coletânea organizada por Silvia L. Alonso, Danielle M. Breyton e Helena M. F. M. Albuquerque. Ela reúne trabalhos de psicanalistas do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, a partir da proposta do grupo de estudo, clínica e pesquisa sobre O feminino no imaginário cultural contemporâneo, coordenado por Silvia desde 1997. Debruçando-se sobre diferentes temas ligados a manifestações do feminino na atualidade, o grupo busca articular a metapsicologia e a clínica psicanalíticas com manifestações da vida cotidiana, fatos culturais, laços sociais e expressões sintomáticas que incidem sobre o corpo e nas relações intersubjetivas.

Numa feliz reincidência na fórmula que marcou a qualidade da primeira coletânea do grupo (Figuras clínicas do feminino no mal-estar contemporâneo ), os trabalhos deste segundo volume foram inicialmente preparados para a II Jornada Temática sobre o Feminino, do Departamento de Psicanálise. Ao dirigir-se à escuta, à crítica e, posteriormente, à leitura de colegas afetivamente próximos, os textos ganharam densidade, potência e uma qualidade de escrita que merece ser destacada.

Fruto dessas trocas, debates e reflexões clínicas, os autores delineiam, em textos consistentes e muito bem elaborados, a imagem da Vênus contemporânea. Sem se afastar da delicadeza dos traços de Boticcelli, cada capítulo revela diferentes texturas, novas matizes e imagens latentes àquela figura harmoniosa do feminino, que, em nossos dias, cada vez mais apresenta suas fissuras, sombras e distorções.

Nesse grande painel coletivo, é difícil escolher para onde olhar. O leitor se encontra, então, como diante de uma tela de Chagall, ou de surrealistas, que apresentam em cada canto de seus quadros diferentes cenas ou objetos, que podem ser admirados isoladamente ou no contexto global da obra. Cada observador é livre para fazer sua escolha, percorrendo segundo seus desejos, seus interesses, suas necessidades os múltiplos temas do livro: as manifestações estéticas e poéticas do feminino; os equilíbrios algumas vezes frágeis e deslocados entre o feminino e o masculino; as novas estéticas do corpo da mulher; as relações de atração, servidão e encontro nas modalidades amorosas; as novas configurações, emergências e enigmas da sexualidade; os dilemas, paixões e conflitos entre de mães e filhas; configurações clínicas da pulsão oral e agressiva na mulher; os diferentes tempos do feminino; a relação da mulher com os discursos do saber.

Fundo de tela, primeiras imagens

Para os que preferem um roteiro para sua observação, é possível atentar inicialmente para o pano de fundo da obra. No prefácio, Silvia Alonso esboça de forma sucinta e precisa as principais mudanças nas representações, no lugar e nas funções social, familiar e profissional da mulher desde o século XII até os nossos dias. Ela lembra como o surgimento da psicanálise foi revelador do potencial de transformação do lugar social da mulher, a partir do reconhecimento da repressão sexual. Mas ela aponta igualmente como a visão freudiana, marcada pela cultura do século XIX, também se constituiu como obstáculo para as transformações desse lugar, na medida em que via na maternidade um dos principais atributos do feminino. A autora comenta a importância da tecnologia nas mudanças da experiência das mulheres no século XX, quando novos métodos anticoncepcionais permitiram separar sexualidade e procriação, e novas tecnologias criaram possibilidades inéditas para o desejo de ter um filho. Silvia lembra ainda o caráter paradoxal dessas e de outras conquistas. A ampliação do reconhecimento social e a maior liberdade alcançadas pelas mulheres foram acompanhadas por transformações importantes no imaginário sobre o feminino, cada vez mais marcado pela sensualidade e pelo prazer. Essas representações frequentemente acabam por se constituir como uma servidão a um imperativo do gozo, a experiências de violência que mais imprimem às vivências das mulheres as marcas do excesso e do fetiche, tentando dar forma a corpos marcados pelo vazio.

Os autores de Interlocuções sobre o feminino diversificam e aprofundam as discussões desses temas.

Inicialmente, é possível acompanhar as representações dessas dinâmicas em diferentes modos de expressão artística. A partir da obra da fotógrafa Cindy Sherman, Alessandra Ribeiro aponta como a perspectiva da ironia, do grotesco e do estranho na figuração da mulher se torna uma crítica e uma denúncia às leituras clássicas sobre a construção dos papéis masculino e feminino, sugerindo que o mais superficial, associado ao feminino, poderia se constituir como uma possibilidade de subjetivação. Paula Francisquetti nos faz reencontrar a imagem da Vênus, não mais sob a luz renascentista de Boticcelli, mas através do olhar atual da artista cubana, Ana Mendieta, em sua obra Vênus Negra, apontando que essa figura da Vênus não é apenas um convite à pura fruição estética, mas também um ato intencional de provocação e de ativação de elementos vitais, onde vida, amor e morte são inseparáveis e o conflito, onipresente. Contrapondo-se à tranquilidade da Vênus clássica, essa Vênus moderna emerge perturbadora em sua dimensão política, em uma arte articulada à cultura-revolta.

Ana Cecília Mesquita inspira-se no cinema de Pedro Almodóvar para revelar diferentes dimensões da relação das mulheres ao desejo. Lembrando a grande capacidade de Almodóvar de figurar a complexidade e as possibilidades que o ser humano tem de viver sua sexualidade, ela aponta que essas mulheres "não abrem mão de seus desejos, por mais estranhos que possam parecer ou por mais alto que seja o preço a pagar", quase sempre, elevado. É também através das lentes de três outros cineastas, reunidos no filme "Eros" (2004), que Miriam Chnaiderman analisa diferentes figurações do feminino. Segundo ela, Soderbergh apresenta uma mulher inteiramente fabricada pela fantasia masculina, enigmática, como descreveu Freud. Kar-Wai representa a relação homem-mulher como um pacto triste e óbvio que leva à morte da relação, e, concretamente, da mulher, lembrando a visão lacaniana. Antonioni afirma de forma contundente a força de Eros, fazendo acontecer em ato/imagem o feminino como "outridade diabólica", uma mulher mulher, limite do não-figurativo.

Desafios teóricos e marcas corporais

O caráter contestador, crítico e mesmo revolucionário de tais representações do feminino é revelador das profundas transformações sociais e nos modos de subjetivação ocorridas ao longo do século XX até hoje, questionando frontalmente os papéis e representações não apenas da mulher mas também do homem. Nesse sentido, a teoria psicanalítica também necessita ser questionada em seus limites conceituais. Novas construções metapsicológicas são necessárias para sustentar a escuta clínica e a compreensão das novas configurações sociais em torno da questão dos gêneros.

Assim, Flávio Carvalho Ferraz efetua uma crítica meticulosa das posições de Freud e de Lacan a respeito do feminino, colocando em xeque o primado do masculino, e contrapondo a elas a construção de Robert Stoller sobre os gêneros, não mais organizada em torno da questão da falta ou do negativo atribuídos à mulher. Flávio aponta a urgência de "uma revisão dos conceitos e da linguagem psicanalítica, a fim de que nossa prática não se perca diante dos imperativos que nos fazem as mudanças culturais". Essa revisão deveria levar em conta outras configurações da sexualidade, da psicopatologia, da família e da vida conjugal.

Alguns efeitos perversos da surdez psicanalítica a essas novas configurações são analisados por Lia Pitliuk. Em seu trabalho sensível, ela parte da constatação de que muitas falas de seus supervisionandos têm um tom "moralista, e mesmo salvacionista, em relação ao tema do fálico e do não-fálico". Lia apresenta as mudanças ocorridas no processo de uma paciente a partir de ter sido possível na análise fazer eco a manifestações do feminino encobertas pela fala "não quero me analisar", em vez de interpretá­ la como resistência. Uma frase como a da sua paciente pode conduzir ao oposto do que suporíamos literalmente, uma resistência não à análise mas ao que faz obstáculo à análise.

Para Renata Cromberg, a denegação do feminino pode ter efeitos devastadores tanto na teoria psicanalítica como no plano social. Ela aponta para a continuidade histórica entre o soterramento da obra de duas pioneiras da psicanálise, Margareth Hilferding e Sabina Spielrein, a misoginia do final do século XIX, o percurso tortuoso de inclusão da bissexualidade na teoria psicanalítica e o exercício atual de fantasias perverso-polimorfas e bissexuais por meio da internet, na proximidade da família. Renata defende uma nova ética social, que transcende a experiência individual para se manifestar no cuidado da vida em geral, que se sustente no reconhecimento ao mesmo tempo das marcas do corpo da mãe como dádiva altruísta, e do corpo materno perecível, castrado, mas renovável através da troca, do contato corporal com o outro.

Nas vivências relacionadas aos ideais e nas perturbações da relação com o olhar materno, encontram-se também algumas das raízes da prática cada vez mais frequente das inscrições corporais, tatuagens e condutas de automutilação. Alessandra Sapoznik analisa a experiência de mulheres com uma percepção instável do próprio corpo e de sua imagem, que muitas vezes resultam em perturbações no campo alimentar, que marcam certas partes de seu corpo ou recorrem a práticas de automutilação. Segundo ela, há algo da subjetividade dessas pessoas que solicita do analista um olhar fresco e um interesse genuíno, livre com relação à compreensão das vertentes patológicas de tais expressões.

Analisando uma outra vertente dessas manifestações, a "estética da magreza" contemporânea, Elaine Armênio sugere que a busca da magreza para (muito) além do saudável, caracterizada pela subtração das marcas históricas e pelo mínimo de expressão, possui traços comuns com os encontrados no minimalismo, na figuração das estátuas de Giacometti, no traumático e na literatura do testemunho de sobreviventes do Holocausto. A relação das anoréxicas e das bulímicas a esse padrão de beleza revela as marcas do traumático, do sublime, da histeria, do ascetismo do heroísmo e da melancolia.

Amor e sexualidade em tempos modernos

A experiência amorosa inspira alguns dos autores. Decio Gurfinkel discute a mítica do encontro amoroso na perspectiva de Freud, Lacan e Winnicott. Para esse último, a ideia de encontro ocupa um lugar privilegiado, situando-se no contexto da transicionalidade, da experiência da ilusão. Decio analisa a natureza do trabalho de Eros e seus desdobramentos questionando se ele não corresponderia à instauração de um espaço de ilusão e de encontro amoroso entre eu e outro, ou entre feminino e masculino, se a teoria sobre a transicionalidade não seria um modelo frutífero para compreender o conceito psicanalítico de genitalidade.

Gisela Haddad discute o amor romântico e a fidelidade, dois mitos da vida amorosa ainda arraigados em homens e mulheres, apesar da maior liberdade sexual, relacional e da diversidade de organizações familiares e conjugais na atualidade. Ela aponta que o adjetivo "romântico" encerra o paradoxo do ideal amoroso, ao comportar a reflexão e a utopia, a consciência da perda e a esperança em resgatá­ la, a experiência do limite e a luta para superá­ lo, espaço importante para sonhos e ilusões. Em nome desse ideal, a ideia de fidelidade se constitui como elemento privilegiado de controle das relações amorosas.

Também Susan Markuszower reflete sobre o amor nos tempos modernos. Ela analisa os conflitos entre o ritmo das mudanças no âmbito social vividos por uma paciente e as articulações intrapsíquicas que ela efetuava com relação a essas mudanças, levando a um descompasso entre o ideal da mulher contemporânea, independente e autônoma, e suas amarras com a mulher do passado, desidealizada pela sua passividade, dependência e submissão. Como muitas outras mulheres, a paciente ficava impedida de desfrutar plenamente das conquistas femininas da modernidade por encontrar-se tolhida por conflitos remanescentes da sua trajetória edípica.

Descompassos semelhantes podem ser encontrados em muitos outros aspectos da vivência do feminino. Como aponta Ana Lúcia Panachão, mudam os tempos, mas a histeria continua sendo uma dinâmica privilegiada que organiza a relação das mulheres ao desejo e à cultura. A clínica com jovens histéricas revela frequentemente o sintoma de frigidez. Essas jovens têm necessidade de corresponder aos ideais culturais de perfeição e a um imaginário social que acena com a falsa ideia de que há um modelo de mulher que se define pela beleza, magreza, adornos, atividade sexual, exigindo delas ao mesmo tempo um posicionamento fálico que, muitas vezes, as faz prescindir da potência fálica masculina. A frigidez denunciaria assim as dificuldades de acesso a um gozo propriamente feminino, impedido pelos imperativos fálicos que regem a sociedade.

Sílvia Sinisgalli relata ainda as dificuldades até hoje existentes para lidar com a histeria, especialmente no contexto de um hospital geral, onde essa manifestação recebe os mais diversos diagnósticos como depressão, transtorno bipolar, tentativas de manipulação, epilepsia, distimia ou fibromialgia... Considerada "doença do passado", ainda hoje ela incomoda, levando à incompreensão ou abafamento dos sintomas e a inúmeros problemas diagnósticos e terapêuticos no meio médico. Sílvia supõe que o recalcamento cultural da histeria estaria relacionado ao narcisismo do mundo contemporâneo, que não admite falhas ou fracassos, o que torna a medicina e as ciências em geral particularmente vulneráveis às armadilhas do funcionamento histérico.

Os primórdios da construção da identidade sexual são discutidos por Paulo Jeronymo de Carvalho e Pedro Monteiro, através da análise de dois meninos pequenos que apresentavam comportamentos "extravagantes", "homossexuais" e "transformistas". Em ambos os casos, os autores identificam vivências precoces de "fraturas da experiência psíquica da continuidade mãe-bebê". Reagindo ao vazio dessa experiência de intensa angústia em um contexto edípico de mães fálicas e pais enfraquecidos, a criança reagiria defensivamente, "grudando" a imagem da mulher-mãe em si. Eles descrevem como a continência transferencial permitiu aos pacientes a restauração do sentido de continência psíquica.

Tiago C. Matheus examina o enigma do feminino no contexto da adolescência. Freud preferia o termo puberdade para caracterizar esse momento segundo da sexualidade humana, que não se restringe a um período cronológico, no qual se reatualizam vivências, conflitos e sintomas infantis resultantes da experiência do sujeito de sua sexualidade e constelação edípica. Dessa forma, questões adolescentes e o enigma do feminino podem ser vividos em qualquer idade e independentemente da constituição anatômica, como mostra Tiago em seu caso clínico "de um homem heteroerótico que já dispunha de cabelos brancos".

Ser filha, tornar-se mãe

A identidade feminina é pensada por Marli Vianna a partir da constatação do número crescente de mulheres com sintomatologia obsessiva. Questionando a relação clássica entre mulher e histeria, e homem e neurose obsessiva, ela sugere que o sintoma obsessivo pode ser uma melhor resposta a certas injunções socioculturais do que o sintoma histérico. A exigência de se fazer reconhecer no universo masculino faz com que as mulheres se afastem da exteriorização de sinais identificados ao sexo feminino. Fazem-se obsessivas, ainda que continuem histéricas, buscando ocupar a qualquer preço a posição fálica, impedindo com isso que a metáfora paterna venha a incidir sobre elas para nomeá­ las como filhas e mulheres.

O acesso ao feminino também pode ser perturbado pela relação da filha com a mãe, como aponta Mirian Rejani. Algumas pacientes expressam seu ressentimento por não terem na mãe o suporte necessário para se tornarem mulher, misturando o desejo de se transformarem no objeto de satisfação de suas mães com o rancor por elas só terem olhos para as imperfeições delas, filhas. Mirian mostra que essas experiências são intensificadas na adolescência e que sintomas apresentados pelas pacientes podem revelar aspectos da sexualidade materna recalcada, mas também apontar o caminho para a construção de uma feminilidade própria, criativa e mais independente dos desejos e da sexualidade da mãe.

Outras dificuldades dessa relação são analisadas por Silvia Alonso, que descreve diferentes impasses na constituição do narcisismo e no desenvolvimento dos movimentos pulsionais que colocam a filha no lugar de "insuficiente" para a mãe. Ao considerar as filhas em total continuidade com elas próprias, as mães as convertem "em bengalas narcísicas" que favorecem relações de espelho, fusionais e de projeção narcisista. A possibilidade de a mãe estabelecer uma relação de cumplicidade confortável com sua filha pode tornar a superioridade materna estruturante e não excludente. No caso inverso, quando a mãe a coloca no lugar daquela que lhe dará a resposta sobre a própria feminilidade - tarefa impossível - surge na filha a vivência de "filha não suficientemente boa".

Maria Elisa Labaki concentra seu olhar na questão da maternidade, destacando a importância de perceber a diferença entre as experiências da gestação, do parto e o exercício da maternidade. A psicanálise, durante muito tempo, dificultou a percepção dessa distinção, ao sustentar a posição central e ideal da maternidade na vivência do feminino. Maria Elisa sugere que a maternidade pouco comporta de desejos narcísicos e falocêntricos de engravidar, ou de ter filhos, e que o desejo que anima uma mulher a engravidar nem sempre é da mesma natureza daquele que a manterá interessada e dedicada a seu bebê. A maternidade, segundo um outro registro, não narcísico, supõe a possibilidade do reconhecimento da perda pela mulher. Dessa forma, ela se revela não apenas como um privilégio da mulher, mas também uma condição que pode ser vivida pelo homem, no contexto das homoparentalidades, e também "em outros espaços de reverberação do pulsional", como a clínica psicanalítica.

A possibilidade de pensar clinicamente as hipóteses de Maria Elisa nos é oferecida por Tales Ab'Sáber. Relatando as consultas terapêuticas de um menino de quatro anos que não falava, diagnosticado como autista, o autor revela como a "distorção na sensibilidade originária de uma mãe frente ao seu bebê" pode se configurar como uma "relação de objeto, que rouba o espaço potencial e simbólico daquela nova origem". A relação da mãe do paciente com a sua própria mãe e seu próprio irmão morto impediu que ela suportasse as qualidades "próprias ao universo da preocupação materna primária, e sua devoção altamente potencial". O olhar do analista propiciou a integração da experiência da criança e a consciência da mãe de sua alienação com relação às vivências de seu filho, levando Tales a sugerir que o menino não era um autista, embora talvez, "de certa forma, sua mãe fosse uma autista para ele".

Danielle Breyton, Helena M. F. M. Albuquerque e Verônica Mendes de Melo refletem sobre o tempo de espera de casais para a realização de procedimentos de reprodução assistida. Frequentemente longa, essa espera "em silêncio" gera nos pais sentimentos de abandono e angústias relacionadas à vivência da infertilidade com sentimentos de culpa e inferioridade. Através de grupos operativos, as autoras buscam promover nesses casais "a passagem de uma posição passiva - de objeto, submetido a procedimentos médicos - para uma posição ativa - de sujeito, que historiciza" tanto a vivência da infertilidade como a organização de um outro tempo de gestação, que permita a invenção e o sonho do filho a ser concebido, de forma a preparar o cuidado dele, se ele chegar, ou a possibilidade do luto, caso ele se revele realmente impossível.

Maria da Graça Baraldi, Maria das Graças da Hora e Therezinha Prado Gomes discutem as implicações dessas novas formas de procriação com as fantasias incestuosas e suas interdições. O anonimato do doador pode intensificar fantasias sobre os laços de parentesco e sobre a possibilidade de relações incestuosas com meio-irmãos, ou mesmo com o pai biológico. A reprodução assistida pode ampliar a rede de parentesco, criar novas posições quanto à paternidade, diferentes da dos processos de filiação clássicos, ou mesmo de adoção. As autoras destacam a importância das condições psíquicas dos pais para acolherem o filho gerado pela reprodução assistida reconhecendo-o como um outro, de forma a permitir não apenas sua inserção na família, mas também a representação de sua condição de filiação.

Violência, oralidade, agressividade

O desamparo, a dependência, a violência e a submissão são algumas das experiências com as quais se confrontam homens e mulheres em seu desenvolvimento individual e na vida social. Apesar desse caráter comum, essas vivências se manifestam com frequência e forma específicas na condição feminina. Lucía Fuks aponta que a subordinação social das mulheres favorece que elas sejam amiúde as destinatárias de violências estruturais e conjunturais, articuladas ao poder e aos papéis de gênero. Ela denuncia o acobertamento e as tentativas ideológicas de naturalização dessa violência, revelando suas consequências traumáticas como a desestruturação psíquica, perceptiva, psicomotora, do raciocínio e emocional, que impede uma reação adequada aos ataques. A psicanálise, através de suas dimensões ética e terapêutica, pode contribuir para romper o silêncio em torno dessas questões, possibilitando a reestruturação subjetiva das vítimas da violência, e revelando os processos de dominação no campo da construção e da instituição social do gênero.

Encantada pela inspiração premonitória de La Boetie, que, há quatro séculos, já apontava a possibilidade de fragilização dos modos de subjetivação que tornam todos presas fáceis da servidão, Maria Laurinda Ribeiro de Souza revela como a presença do desamparo e da cumplicidade com o agressor em vítimas de violência são ingredientes dessa servidão. Relacionando as experiências de servidão, do masoquismo e do desamparo com a vivência do feminino, ela sugere que a possibilidade de travessia pelo trágico do desamparo e a "aceitação da feminilidade" se constituem como formas possíveis de ultrapassagem do "encanto sedutor" promovido pela servidão.

Fátima Milnitzky envereda pela dimensão da humilhação na vivência da violência e do masoquismo, discutindo em dois casos clínicos uma variante feminina do masoquismo em homens. A noção de humilhação comporta uma forma relacional entre uma instância que humilha e outra que é humilhada. Aquele que sofre a humilhação é tomado não como pessoa, mas como instância. Lembrando que na psicanálise a noção de humilhação não tem estatuto de conceito, Fátima sugere que conceito de fantasia pode oferecer um elo para relacionar masoquismo e humilhação.

As manifestações transferenciais desses processos primitivos muitas vezes não são acessíveis às leituras psicanalíticas clássicas. Aline C. Gurfinkel analisa os efeitos no campo analítico de pacientes que substituem a fala pelo silêncio, apresentando somatizações, adições, transtornos alimentares ou outras expressões de quadros narcísicos ou fronteiriços. Em mulheres que apresentam perturbações das funções alimentares, Aline constata que o exagero nos cuidados maternos muitas vezes encobre a falta de cuidados básicos necessários, ausência de objeto que ampare o sujeito do excesso de excitação. A transferência deve poder distinguir fala-da-mãe/fala-da-filha e o que é silenciado por ambas e acompanhar a passagem "da fusão mais primitiva, dos primeiros momentos do alimentar-se, à relação de alteridade na qual se pode comer junto e viver uma relação de comensalidade/reciprocidade".

Por sua vez, Liliane Guimarães Mendonça percebe nas famílias em que emerge a anorexia a indistinção de lugares de pai, de mãe, de filha, e principalmente a fusão e a mistura das duas últimas. Inexistem os ritmos ausência-presença, falta-saciedade; não se constituem relevos, nuanças. A mãe parece surda aos pedidos da filha, oscilando entre a ausência e a intrusão. Os pais de anoréxicas são frequentemente desvalorizados pelas mães na função de pai e marido, descritos como ausentes, frágeis ou inexistentes. Liliane sustenta que a possibilidade de escuta analítica, individual ou familiar pode contribuir para a ressignificação dos mitos familiares e para a constituição e reconhecimento dos lugares na família, favorecendo um funcionamento menos patológico.

Em sintonia com suas colegas, Vera B. Zimmermann chama a atenção para o fato de que, há alguns anos, a busca de tratamento na faixa etária entre cinco a dez anos era constituída predominantemente por meninos, com problemas de agressividade e agitação. Hoje mais meninas chegam com essas queixas, ansiosas, agressivas e temerosas. Na sessão, falam, discutem e brigam, não apenas desenham e brincam, trazendo conflitos com o corpo e com a beleza, vivendo intensas rivalidades e competições. Muitas mães dessas pacientes falham na contenção, justamente quando as filhas atravessam momentos psíquicos que lhes demandam muita segurança identificatória, o que favorece a irrupção da hostilidade própria à sociedade contemporânea, e ataques nas relações entre as mães e filhas. Vera sugere compreender essas manifestações para além da questão da diferença sexual, considerando-as no contexto das dificuldades da menina para alcançar o reconhecimento do outro.

Maturidade

Buscando compreender um outro momento da experiência feminina, Mabel Casakin analisa as experiências de mulheres na menopausa, marcadas por uma alta dose de angústia e uma sensação de "depressão", numa adesão quase incondicional à visão médica que considera esse sintoma como "típico" dessa fase. Ela examina as principais queixas apresentadas por essas mulheres: perda da beleza, da capacidade de seduzir, da feminilidade, da maternidade, da ascendência sobre filhos já grandes, a sensação de proximidade da velhice e da morte. Mabel aponta a importância de elaborar o luto da percepção de que alguns sonhos dessas mulheres jamais serão realizados, para que "um novo começo" seja possível, para continuar suas vidas sobre bases reais.

Fátima Vicente amplia essas reflexões ao analisar as implicações ideológicas e subjetivas da abordagem da menopausa pela "medicina de gênero", que a define priorizando a medida da extinção da produção hormonal. Ela lembra que a ideia de climatério, hoje pouco utilizada, é mais abrangente, incluindo alterações físicas e psíquicas num tempo indeterminado o que torna necessário ao médico ouvir as queixas das mulheres para saber o que se passa com elas. A expressão menopausa, apenas referida à idade e à produção hormonal, opera um deslizamento semântico que anula o reconhecimento da subjetividade submetida a uma experiência de crise, retirando da mulher a possibilidade de articular essa crise em uma narrativa significativa, e de lidar com ela de forma ativa para se constituir como sujeito das saídas possíveis ao desejo feminino nessa época da vida.

(R)Evoluções da Vênus

Após contemplar essa tela imensa e diversificada, talvez precisemos de um tempo de repouso e de reflexão.

Interlocuções sobre o feminino provoca, instiga, renova nosso olhar, nossa escuta. De repente, a Vênus de Botticelli nos parece estranha, desconhecida. Sem que tenha perdido sua beleza, sua candura, sua paz, ela agora incomoda, perturba, desafia. Talvez por passarmos a enxergar o quanto aquela imagem tranquila e serena já anunciava em seus traços os riscos que espreitavam a mulher que ali nascia: os Ventos do Oeste se transformando em tormentas, as águas calmas em mar revolto, o manto protetor em véu que acoberta, em "burkas", mortalhas e ideologias que sufocam e oprimem.

Tormentas ainda hoje presentes, apesar de todas as conquistas sociais das mulheres. Violências muitas vezes acobertadas, dos lugares mais distantes e primitivos, onde a lapidação, as mutilações genitais e os castigos corporais são ainda inscritos na lei social, até as mais modernas cidades, onde a violência física e moral, a humilhação e os abusos (não só sexuais) de mulheres são apenas maquiados pela tecnologia e pelo consumo, através de imagens cada vez mais plásticas, belas, mas artificiais, do feminino.

Turbulências que convocam o movimento, a resistência e a transformação do potencial destrutivo que sempre se esconde por detrás dos narcisismos das pequenas diferenças.

Nesse sentido, cabe aqui nossa gratidão aos autores da coletânea. Inspirados por uma visão aberta da psicanálise, com seus trabalhos, eles nos ajudam a tecer o manto do pensamento, da crítica e da liberdade, como forma de proteger não apenas a Vênus, as mulheres, mas também todos os homens, da violência, da intolerância, do preconceito.

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