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Resumo
Resenha de Silvia Bleichmar, Paradojas de la sexualidad masculina, Buenos Aires, Paidós, 2006, 256 p.


Autor(es)
Daniela Danesi
é psicanalista, membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e professora do curso Clínica Psicanalítica: Conflito e Sintoma.

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 LEITURA

A difícil travessia em direção ao masculino

Daniela Danesi


Resenha de Silvia Bleichmar, Paradojas de la sexualidad masculina, Buenos Aires, Paidós, 2006, 256 p.

Há cerca de três anos participo de um grupo de estudo e supervisão com a psicanalista argentina Silvia Bleichmar. Ao longo desse período, percorremos temas caros à psicanálise, tais como a sexualidade e outros aparentemente mais distantes, como no seminário sobre inteligência, ambos extremamente inquietantes e desafi adores.

Esses encontros ocorrem aos domingos de manhã, naturalmente acompanhados de certa inércia e preguiça de exercitar os neurônios em um dia consagrado ao descanso. Entretanto, o contato com Silvia rapidamente afasta essa sensação de que o dolce far niente está sendo sacrifi cado. Somos imediatamente capturados pelo seu vigor, acompanhado de bem-vindas doses de humor; pelo seu raciocínio rápido e temperado com o encantamento dos insights que vai tendo à medida que responde às perguntas sobre a velha feiticeira.

Acima de tudo, somos convidados a compartilhar de sua clínica, pano de fundo sempre presente à elaboração de conceitos teóricos, como uma bússola a indicar o rumo do qual um psicanalista não pode se afastar.

Essas características e, por que não dizer, qualidades, são reencontradas ao acompanhar sua produção escrita. Três de seus livros encontramse publicados no Brasil: Nas origens do sujeito psíquico: do mito à história (Artes Médicas, 1993); A fundação do inconsciente: destinos de pulsão, destinos do sujeito (Artes Médicas, 1994) e Clínica psicanalítica e neogênese (Annablume, 2005).

Em Paradojas de la sexualidad masculina (Paidós, 2006), ainda inédito no Brasil, Bleichmar, ao mesmo tempo que inaugura um novo campo de interesses, retoma – e em muitos momentos aprofunda – elaborações teóricas já enunciadas em outros escritos seus.

Percebe-se claramente que as novas formulações vão construindo contornos mais precisos e densos, formando verdadeiros alicerces teóricos que caracterizam um pensamento próprio e original dentro da psicanálise. Esses alicerces sustentam a possibilidade de estender suas refl exões para várias ramifi cações, ligadas tanto à clínica de adultos como àquela de crianças.

Cada capítulo desdobra-se em inúmeras e fecundas direções, tendo, como pano de fundo, a preocupação central de que a psicanálise se mantenha viva e em consonância com as questões e problemáticas que atravessam nossa época.

Nesse sentido, torna-se leitura fundamental para quem busca acolher, trabalhar e problematizar os conflitos e sofrimentos decorrentes das novas constelações familiares, neo-sexualidades, novos modelos de reprodução e criação. Encontramos também um olhar que reafi rma, fazendo eco a outros autores, a importância de distinguir homossexualidade de perversão, circunscrevendo esta última à ética das relações humanas.

Bleichmar propõe que a psicanálise tem como grande tarefa e desafi o, nesse momento, a busca de uma defi nição dos aspectos universais da constituição do psiquismo, para poder discriminá- los das formações histórico-culturais de instauração da subjetividade.

A produção de subjetividade é da ordem histórica, social e política; alude aos modos com os quais cada sociedade determina as formas através das quais um sujeito se constitui como sujeito social e se insere no mundo em que lhe cabe viver. A constituição do psiquismo, por outro lado, busca delimitar um conjunto de variáveis que implicam certa universalidade, cuja permanência se sustenta mais além de certas mudanças na produção de sujeitos históricos (p. 83).

Antes de comentar a temática específi ca deste livro, gostaria de recortar quatro importantes elaborações teóricas trabalhadas por Silvia, tanto em seus seminários como em sua produção escrita, que formam a trama conceitual a partir da qual ela se debruça sobre esta nova temática.

1. Questionamento da teoria da castração, quando concebida como carência ou presença de pênis, para enfatizar a contribuição lacaniana do caráter ontológico da falta como constitutivo da relação com o outro no processo de humanização.

2. Redefinição do conceito de Édipo, pensado não mais como complexo e sim como estrutura fundante do aparelho psíquico que Bleichmar, percorrendo trilhas já abertas por Laplanche, vai reposicionar como o efeito decorrente da assimetria constitutiva entre a criança e o adulto. Essa assimetria, tanto sexual como simbólica, determina a possibilidade de subjetivação de todo ser humano. Liberto das amarras que o aprisionavam à forma como foi pensado por Freud a partir da sociedade patriarcal do século xix e ao modelo de família correspondente a esse momento histórico, o Édipo recupera, então, o grande lugar de paradigma universal como proibição que toda cultura exerce com relação à apropriação do corpo da criança como lugar de gozo do adulto.

3. Desenvolvimento de uma crítica severa a algumas interpretações psicanalíticas que apontam para uma intencionalidade do inconsciente. Através dessas formulações, busca recuperar a descoberta freudiana originária: o fato de que o inconsciente, fechado a toda referencialidade, funcionando sob a legalidade do processo primário, despojado de subjetividade em sentido estrito, não seja considerado como uma segunda consciência, depositário da única verdade do sujeito. Em função disso, a autora aponta o risco que ocorre em algumas análises de se interpretarem moções inconscientes – como, por exemplo, fantasias homossexuais – como se fossem relativas a uma outra “identidade”, e que seria de signo inverso à do ego. Toda identidade, por ser um conglomerado defensivo, só pode estar instaurada no ego; assim sendo, “homossexualidade e heterossexualidade são categorias cuja relação lógica é de articulação-exclusão; defi nem-se pelo ‘ou’: homossexualidade ou heterossexualidade, o qual a deixa de fora de toda possibilidade de formar parte do estatuto do inconsciente, cujo modo de funcionamento, o da lógica do processo primário, caracteriza-se pela ausência de contradição” (p. 194).

4. Busca da superação da dicotomia entre biologismo e estruturalismo, propondo, como enfoque, os modos singulares históricos de constituição do sujeito. Na origem destes encontramos o outro-cuidador, dotado de inconsciente, que ocupa um lugar fundamental na implantação de uma sexualidade sempre traumática que obrigará o infans a um processo psíquico de ligação e elaboração.

Em seu novo livro, Bleichmar reafi rma essas idéias. Brincando com a imagem de uma música, poderíamos dizer que essas formulações compõem o estribilho e, a cada livro, novas estrofes são acrescentadas.

Adentrando a temática específi ca de Paradojas de la sexualidad masculina, ela propõe a necessidade de reparar “a dívida com os homens que se aventuraram no divã” (p. 13).

Vivemos numa época na qual convive, principalmente nos grandes centros urbanos, uma vasta gama de modelos de masculinidade. A título de exemplo podemos citar o legítimo representante do ideal de masculinidade, apoiado na força física e na imagem de herói destemido, como o governador da Califórnia Arnold Schwarzenegger, até o metrossexual David Beckman, que aponta para uma modalidade masculina contemporânea que alia as características aparentemente marcantes do sexo masculino com a vaidade feminina. Nesse largo espectro encontramos também as sofridas questões de Agustín/Gabriela, caso narrado por Bleichmar no capítulo 5, cujo pedido, feito ao governo argentino, de autorização para início de um tratamento hormonal que impeça o desenvolvimento de sua puberdade, se apóia na convicção de possuir uma alma feminina aprisionada num corpo de menino.

Em seu livro, Bleichmar lança-nos uma questão: continua sendo possível a idéia da existência de um único sexo, o masculino?

Responde ser esta uma teoria sexual infantil que as crianças fantasiam no momento da descoberta da diferença anatômica dos sexos. A psicanálise, ao ter se apropriado dela, transformando- a em paradigma universal, viu-se impedida de elaborar uma teoria própria sobre a constituição da masculinidade.

Convida-nos, assim, a observar a grande exploração que foi feita, a partir de Freud, sobre a sexualidade feminina com sua troca de zona e de objeto. A sexualidade masculina, ao contrário, por ter sido pensada dentro de uma certa linearidade, teve como objeto de estudo sua evolução e destinos, mas não sua constituição.

Segundo a autora, a teoria de que o masculino sustenta sua zona e seu objeto desde o início e para sempre, e para a qual o surgimento de fantasmas femininos no homem é efeito da bissexualidade constitutiva, trouxe uma série de enganos nas intervenções clínicas, que precisam ser repensados.

Partindo da idéia de que o animalzinho-bebê se humaniza a partir dos cuidados oferecidos por um outro – cuidados que, ao mesmo tempo que satisfazem as necessidades de sobrevivência, erogenizam o corpo do infans – encontramos como posição de partida da cria humana um lugar passivo com relação ao adulto cuidador.

Essa primeira etapa de passividade, embora siga caminhos distintos para o menino e para a menina, vai ter como conseqüência, também no menino, uma mudança de zona e de objeto, visto que a mãe dos primeiros cuidados sofre uma mudança de olhar no momento edípico.

Prosseguindo nesta construção, encontramos o eixo central da contribuição teórica elaborada pela autora, no qual desenvolve a idéia de que a identifi cação masculina, no menino, constitui-se na passagem de passivo para ativo, pela introjeção do atributo genital de outro homem que vai lhe outorgar potência e virilidade.

Nesse sentido, assim como é impossível o posicionamento feminino sem passar pelo atravessamento fálico, a masculinidade seria impensável sem submeterse fantasmaticamente a uma iniciação por meio da qual outro homem oferece à criança as condições da masculinidade (p. 236).

É precisamente aqui que encontramos o grande paradoxo da constituição masculina: o de permanecer suscetível para sempre ao fantasma da homossexualidade.

Conforme seu estilo de escrita, Silvia permite- nos acompanhar essas elaborações, ilustrando- as com uma vinheta clínica.

É preciso comentar que, ao ler o caso do pequeno Manuel, encontramos uma analista comprometida com a ética freudiana: é a clínica que deve conduzir a novas ressonâncias teóricas, caso contrário a teoria corre o risco de engessar a escuta.

Ao ver seu pequeno paciente brincando com soldados que espetavam um ao outro com suas baionetas, num jogo de exercício sádico, interpreta esse conteúdo manifesto como um desejo homossexual inconsciente, desencadeando em Manuel uma intensa crise de angústia acompanhada de uma recusa em permanecer na sessão.

Poder escutar a reação de Manuel como algo não redutível à resistência abre-lhe este novo campo de refl exões, no qual vai considerar que os fantasmas de masculinização podem se expressar, em muitos casos, por meio da busca de incorporação da virilidade a partir da relação com outro homem.

A autora também transita por interessantes estudos antropológicos que descrevem rituais de masculinização em culturas antigas, como nos gregos e godos, e também em culturas contemporâneas, como os aborígenes da América ou os Sambias da Nova Guiné.

Esse rico diálogo transdisciplinar lhe permite correlacionar as fantasias trazidas por seus pacientes homens, que considera da ordem da constituição masculina, com os rituais de passagem à masculinidade estabelecidos nessas culturas.

Conclui: “não está distante de nossas próprias descobertas em psicanálise o fato de que o começo deste processo, que consiste em romper com a mãe para dar fi m à infância, tenha como objetivo suprimir o vínculo de passividade ou dependência e inculcar uma agressiva auto-sufi ciência” (p. 57).

Impregnados dessa rica e original formulação, adentramos capítulos que nos permitem pensar a forma pela qual a psicanálise pode acolher e possibilitar uma verdadeira atuação sobre o sofrimento de nossos pacientes, afastando-nos de uma escuta preconceituosa que estaria contaminada de formulações teóricas historicamente datadas, para de fato “intervir de modo simbolizante no destino psíquico do sujeito” (p. 209).

Silvia apresenta-nos uma série de histórias sobre pessoas que não se adaptam à bipartição, culturalmente estabelecida, entre masculino e feminino, na qual a maioria dos seres humanos busca se acomodar. Compartilhando de seus confl itos, transitamos pelas complexas questões propostas pela transexualidade, intersexualidade e travestismo.

Tomo a título de exemplo a história do jovem Martín, Marta na atualidade, cujos percalços assemelham-se aos dos personagens apresentados por Pedro Almodóvar no fi lme Má educação. Através dele a autora convida-nos a pensar sobre as articulações e as diferenças entre sexualidade, gênero e sexuação, afi rmando a necessidade de reposicionar metapsicologicamente esses elementos:

entre a biologia e o gênero, a psicanálise introduziu a sexualidade em suas duas formas: pulsional e de objeto, que não se reduzem nem à biologia nem aos modos dominantes de representação social, mas que são, precisamente, as que fazem entrar em confl ito os enunciados atributivos com os quais se pretende uma regulação sempre inefi ciente, sempre no limite (p. 107).

Acompanhando as histórias que a autora nos dá a conhecer com extrema sensibilidade, e acima de tudo respeito, encontramos o aspecto mais vibrante e criativo de seu trabalho, a saber, seu compromisso ético e, do meu ponto de vista, também político, com o momento histórico no qual ela e seus pacientes vivem.

Afinada com seu tempo, Silvia permite-se diálogos enriquecedores com autores e pesquisas de diversas disciplinas, sem nunca perder de vista a especifi cidade da psicanálise e o trabalho rigoroso com a teoria.

Fazendo jus a esses comentários, aconselho, para fi nalizar, um olhar pausado sobre o posfácio, cujo título, A hora de um balanço, torna-se um verdadeiro convite a repensar nossa própria posição diante da psicanálise e das questões propostas pela contemporaneidade.
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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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