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Resumo
Com o intuito de verifi car o impacto da Teoria dos Campos sobre a noção de eu, examinam-se aqui três concepções do eu, buscando correlacioná- las e estabelecer sua potência de ruptura em relação às noções clássicas da mesma idéia. Dentre as teorias sobre o eu consideradas, são psicanalíticas a de Freud e a de Fabio Herrmann. A terceira é uma teoria literária, enunciada por Machado de Assis no conto O espelho. Assim, o diálogo entre os autores psicanalistas vai sendo tecido e bordado com o fi o literário, representado pela lucidez machadiana. Pensamos ser esta uma maneira de mantermo- nos fi éis ao espírito psicanalítico presente no estilo de Freud e também no de Fabio Herrmann.


Palavras-chave
ruptura de campo; noção de eu; ego; Fabio Herrmann.


Autor(es)
Camila Pedral Sampaio
é analista em formação pela Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo e professora doutora na Faculdade de Psicologia da PUCSP.


Notas

* Este texto foi a base do que foi apresentado no IV Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos, ocorrido em setembro de 2005 e dedicado ao exame da noção de ruptura de campo. Na ocasião, participei, com Leda Herrmann e Maria da Penha Lanzoni, de uma mesa cujo tema era: O impacto da ruptura de campo sobre a Psicanálise: inconsciente, transferência e a noção de eu. Coube-me o desenvolvimento deste último tópico. O resultado é o presente texto.

1 Opto por referir-me a eu em vez de ego em todo o texto, já que esta é a forma como o conceito é referido na Teoria dos Campos. Quando faço citações diretas da obra de Freud, no entanto, uso o termo ego, tal como indicado na tradução utilizada.

2 Ver em Freud a Conferência XVIII, das Introdutórias (1916-17), “Uma difi culdade no caminho da Psicanálise” (1917) e “As resistências à Psicanálise” (1925).

3 S. Freud (1917), Conferências introdutórias à Psicanálise XVIII, “Uma difi culdade no caminho da Psicanálise”, p. 178. (Grifos da autora.)

4 S. Freud (1923), “O ego e o id”, p. 37.

5 Gosto, especialmente, do texto de Liana Albernaz de Melo Bastos: Eu-corpando – o ego e o corpo em Freud.

6 S. Freud (1939), “Esboço de Psicanálise”, p. 170.

7 S. Freud (1923), “O Ego e o Id”, p. 39.

8 S. Freud (1932), Conferência XXXI, “A dissecção da personalidade psíquica”, p. 80.

9 S. Freud (1923), “O ego e o id”, p. 30-41.

10 S. Freud (1932), Conferência XXXI, p. 81.

11 S. Freud (1923), “O ego e o id”, p. 45-64.

12 S. Freud, op. cit., p. 49.

13 S. Freud (1932), Conferência XXXI, op.cit., p. 64.

14 S. Freud, op. cit., p. 80-81.

15 S. Freud, op. cit., p. 81-82.

16 S. Freud, op. cit., p. 82.

17 S. Freud, (1914), “Sobre o narcisismo: uma introdução”, p. 103.

18 M. de Assis (1882), “O espelho”.

19 S. Freud (1932), Conferência XXXI, p. 84.

20 F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos.

21 F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos, p. 142.

22 F. Herrmann, op. cit., p. 142.

23 F. Herrmann, op. cit., p. 142.

24 F. Herrmann, A psique e o eu, op. cit., p. 49.

25 S. Freud (1932), Conferência XXXI , op. cit.

26 F. Herrmann, Introdução à Teoria dos Campos, op. cit., p. 144.

27 M. de Assis (1882), “O espelho”, op. cit., p. 268.

28 F. Herrmann, A psique e o eu, p. 103.

29 F. Herrmann, op. cit., p. 209.

30 F. Herrmann, op. cit., p. 211.

31 S. Freud (1911), “Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfi co de um caso de paranóia”.

32 F. Herrmann, A psique e o eu, p. 162.

33 F. Herrmann, op. cit., p. 162.

34 M. de Assis (1882), “O espelho”, p. 275.

35 F. Herrmann, A psique e o eu, op. cit., p. 178.

36 F. Herrmann, op. cit., p. 185.



Referências bibliográficas

Bastos L.A.M. (1998). Eu-corpando – o ego e o corpo em Freud. São Paulo: Escuta.

Freud S. (1911/1976). Notas psicanalíticas sobre um relato autobiográfi co de um caso de paranóia. In: esb (Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud). Rio de Janeiro: Imago, vol. xii.

____ (1914). Sobre o narcisismo: uma introdução. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xiv.

____ (1917/1976). Conferências introdutórias à Psicanálise xviii. “Uma difi culdade no caminho da Psicanálise”. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xix

____ (1923/1976). O ego e o id. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xix.

____ (1925/1976). Conferências introdutórias à Psicanálise xviii. “As resistências à Psicanálise”. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xix

____ (1932/1976). Conferência xxxi. “A dissecção da personalidade psíquica”. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xxii. ____ (1939/1976). Esboço de Psicanálise. In: esb. Rio de Janeiro: Imago, vol. xxiii.

Herrmann F. (1999). A psique e o eu. São Paulo: HePsyqué. ____ (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo

Machado de Assis (1882/1937). O espelho. In: Papéis avulsos. Rio de Janeiro/São Paulo/Porto Alegre: W.M. Jackson.





Abstract
In order to examine the impact of the Multiple Fields Theory on the notion of the self, three conceptions of the self are examined here, trying to relate them and establish their potentiality of rupture in relation to the classic notions of the same idea. Among the theories studied two are originated in Psychoanalytical Theory: the fi rst by Freud and the other by Fabio Herrmann. The third one is a literary theory expressed by Machado de Assis in the short story “The Mirror”. This way, the dialogue between the psychoanalysts and authors starts to be woven and embroidered with a literary thread, represented here by the Machadian perspicuity. This paper is thought to be a way of keeping ourselves faithful to the psychoanalytical spirit present in both, Freud and Fabio Herrmann styles.


Keywords
field rupture; notion of self; ego; Fabio Herrmann.

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 TEXTO

O impacto da ruptura de campo sobre a Psicanálise

o eu: um ser atônito


The impact of field rupture on Psychoanalysis.
The Self: a perplexed being
Camila Pedral Sampaio


Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
Prefiro as linhas tortas, como Deus. […] Se eu tivesse uma
perna mais curta, todo mundo havia de olhar para mim: lá vai
o menino torto subindo a ladeira do beco toc ploc toc ploc.
Eu seria um destaque. A própria sagração do Eu.
[Manoel de Barros. Livro sobre nada]

O eu [1] como idéia psicanalítica

Com a noção do eu decorrente da descoberta psicanalítica ocorre, desde o início, algo interessante. Por um lado, ela produz um verdadeiro bombardeio dirigido àquele que foi instituído pela fi losofi a cartesiana como um eu necessário, soberano em seu domínio, capaz de atingir a verdade por meio de uma lógica do discurso. Este eu pensador, dominador, fonte de auto-observação e controle, atravessado, sim, pela dúvida, mas por uma dúvida metódica, o que lhe restitui a dignidade, este eu é que será fundamentalmente desmontado pelas idéias correlativas à invenção psicanalítica.

É ele, podemos sugerir, o alvo da revolução psicanalítica que destronou a soberania da consciência e da racionalidade, constituindo, segundo Freud, como se sabe, o terceiro dos golpes desferidos pelo pensamento ocidental sobre nosso amor próprio. Golpe psicológico, precedido pelos igualmente dolorosos golpes cosmológico e biológico, aplicados sobre as concepções de si do homem, respectivamente por Copérnico, que retirou a terra do centro do universo, e por Darwin, que pôs fi m à presunção humana de representar um ser superior, dotado de uma posição privilegiada na Criação [2]. Podemos presumir, diz Freud, que o golpe psicológico foi o mais violento. Deduzido das duas descobertas essenciais da Psicanálise, a saber, a de que nossa vida pulsional não pode ser inteiramente dominada e a de que os processos mentais são em si mesmos inconscientes e só chegam ao eu de modo indicial e muito incompleto, equivale “à afi rmação de que o eu não é senhor da sua própria casa” [3], nem mesmo em sua própria casa, melhor dizendo.

Apressa-se Freud em esclarecer que não é a Psicanálise a primeira a propor tal idéia, cabendo- lhe, no entanto, a incumbência de apresentar, a partir de sua clínica, os argumentos empíricos capazes de sustentá-la. Na ocasião, ele se refere explicitamente a Schopenhauer, dividindo com o fi lósofo a responsabilidade pela noção de inconsciente, que assemelha nosso eu a uma função de desconhecimento, contrariamente ao eu soberano da fi losofi a cartesiana. Em outra ocasião, Freud cita Groddeck, “o qual nunca se cansa de insistir que aquilo que chamamos de o nosso eu (ego) comporta-se essencialmente de modo passivo na vida e que, como ele o expressa, nós somos ‘vividos’ por forças desconhecidas e incontroláveis” [4].

No entanto, e aqui o interesse da coisa, a idéia de eu, bombardeada, diminuída em seu poder, destronada mesmo, sobrevive e, a bem dizer, não chega a perder de todo sua dignidade. O resultante disso é um eu dividido, angustiado, afetado em sua capacidade de representação de si e do mundo, noção que foi elaborada ao longo de toda a obra freudiana. O eu da dúvida sem método, da dívida para com os outros, que representam os parceiros necessários em sua constituição.

De todo modo, poderíamos dizer que os poetas e, em sentido amplo, os escritores, sempre tiveram notícia desse eu que, antes de ser agente da própria vida, é atravessado por forças que o determinam e que ele desconhece fundamentalmente. Por isso, aliás, iniciamos este texto com uma pequena referência ao poeta Manoel de Barros, na qual ele retrata poeticamente os paradoxos do eu, montado de pedaços desconexos, buscando grandeza no defeito, atravessado pelo desejo narcísico de reconhecimento e destaque.

Aqui, nos tristes trópicos brasileiros, aliás, não conseguimos nos referir a essa teoria do eu sem que nos seja lembrada uma outra teoria, essa de origem literária, a que foi enunciada por Machado de Assis como “uma nova teoria da alma humana”, no conto intitulado O espelho. Ali, como podemos lembrar, Jacobina, homem taciturno e de pouca disposição à discussão estéril, expõe sua teoria, baseada em um acontecimento que lhe ocorreu na mocidade. Atônitos, acompanham-no seus interlocutores à medida que ele enuncia sua idéia de uma alma dupla, dividida em duas porções interdependentes, uma externa e outra interna, pedaços de ser, montados num ser dessacralizado, mas igualmente atônito. (Haveriam de se passar cem anos, pouco mais, até que Manoel de Barros o quisesse eu, grandioso em sua “torteza” toc-ploc…) Se nos for permitido interferir assim em Machado, substituindo sua idéia de alma pela de eu, teremos, pronta e acabada, uma teoria do eu bastante semelhante à proveniente das descobertas freudianas. Ainda havemos de nos apoiar a seguir nessa teoria machadiana, bastando por ora essa resumida referência, de modo a dar lugar a uma primeira tarefa que o assunto nos impõe, a de constelar brevemente os elementos pelo qual se constitui o eu em Freud.

Obviamente, não é meu propósito aqui, nem cabe, fazer uma exegese da noção de eu na obra de Freud. Outros o fi zeram, e melhor do que eu poderia fazer [5]. Queria, no entanto, transitar por algumas das passagens que constituem essa noção, no intuito de demonstrar que a idéia resultante é, no mínimo, complexa e intrincada e, desde o início, cheia de nuances.

Comecemos pela indagação: quais as suas origens? São vários os modelos de que Freud lança mão para estabelecer a origem do eu. O primeiro deles refere-se à idéia da especialização de uma superfície, a partir do contato com a realidade, como um pão que, levado ao forno, diferencia do miolo homogêneo uma casca. É assim que, no Esboço de Psicanálise Freud, apresenta o eu:

Sob a influência do mundo externo que nos cerca, uma porção do Id sofreu um desenvolvimento especial. Do que era originalmente uma camada cortical, equipada com órgãos para receber estímulos e com disposições para agir como um escudo protetor contra estímulos, surgiu uma organização especial que, desde então, atua como intermediária entre o id e o mundo externo. A esta região demos o nome de ego [6].

Observe-se que a mesma idéia, com uma formulação muito semelhante, aparece em O ego e o id [7] e na Conferência xxxi: A dissecção da personalidade psíquica [8].

Mas a idéia de superfície, até aqui relacionada à exterioridade e à dimensão de casca protetora do eu, fi gura também em outra das metáforas criadas para pensar sua origem: o eu não seria apenas uma entidade de superfície; sendo, primeiro e acima de tudo, um ego corporal, “é ele próprio a projeção de uma superfície” [9], exatamente da superfície corporal, na medida em que o corpo e especialmente sua superfície, a pele, constitui um lugar que origina sensações internas tanto quanto externas e se oferece como um primeiro protótipo para a representação e a projeção desta entidade, justamente incumbida de distinguir e relacionar, por meio de trocas, o dentro e o fora: o eu.

Tomando agora a perspectiva do ponto de vista dinâmico, sobretudo em sua relação com as instâncias ideais, o eu é composto de um precipitado de identifi cações e de investimentos objetais abandonados [10], [11]. Processo esse que é, por assim dizer, produto do longo período de dependência por que passam as crianças em sua infância, o que deixa como legado uma diferenciação no interior do eu, o super-eu e os ideais, representantes e herdeiros da instância parental. Nas palavras de Freud:

O amplo resultado geral da fase sexual dominada pelo complexo de Édipo pode, portanto, ser tomado como sendo a formação de um precipitado no ego, consistente dessas duas identifi cações (a paterna e a materna) unidas uma com a outra de alguma maneira. Essa modifi cação no ego retém sua posição especial; ela se confronta com os outros conteúdos do ego como um ideal do ego ou superego [12].

Graças a essa divisão em seu interior é que o eu pode tomar a si como objeto, observar-se, criticar-se, tratar-se como trata outros objetos, sabe-se lá quantas coisas mais pode fazer consigo mesmo! “Assim, o ego pode ser dividido: dividese durante numerosas funções suas – pelo menos temporariamente. Depois, suas partes podem juntar-se novamente”, diz Freud [13], numa idéia que antecipa a formulação fi nal da cisão do eu nos processos de defesa.

Em relação com o narcisismo, tomando a questão ainda de um outro ponto de vista, o eu seria fruto de uma nova ação psíquica, que pensamos ser da ordem da identifi cação primária, ação responsável por apresentá-lo como um primeiro objeto unificado. Assim sendo, e já a partir do modelo corporal, o eu é fruto e agente de um permanente esforço de síntese e unifi cação. É ele mesmo este esforço de síntese, pelo qual, a despeito da diversidade de identificações e de elementos que o constituem, percebe-se a si próprio como sendo quase sempre o mesmo, e pode até propor-se como veículo e suporte de uma identidade singular. Esse aspecto, Fabio Herrmann veio a chamar de presença no eu de um sentido de imanência, na ausência do qual o sujeito corre o risco de séria perda identitária (o que veio a acontecer justamente com nosso conhecido Jacobina, no episódio a que mais adiante nos referiremos).

Estabelecida, a partir dessas variadas vias, a origem do eu, caberia-nos indagar sobre suas funções. Distingue-o, particularmente, essa já mencionada tendência à síntese de seu conteúdo, à combinação e unifi cação em seus processos mentais. Razão, bom senso, controle, esses são seus méritos, um conjunto de funções positivas: observar o mundo externo, testar a realidade, oferecer um escudo protetor contra estímulos excessivos [14]. Mas, seguindo Freud, não nos deixemos impressionar por tais méritos e capacidades do eu.

A relação do ego para com o id poderia ser comparada com a de um cavaleiro com seu cavalo. O cavalo provê a energia de locomoção, enquanto o cavaleiro tem o privilégio de decidir o objetivo e de guiar o movimento do poderoso animal. Mas muito freqüentemente surge, entre o ego e o id, a situação, não propriamente ideal, de o cavaleiro só poder guiar o cavalo por onde este quer ir [15].

Assim, recorrendo à conhecida formulação de Freud, a condição positiva de condutor vêse comprometida pelo fato de que o “pobre ego” “serve a três severos senhores (o mundo externo, o superego e o id) e faz o que pode para harmonizar entre si seus reclamos e exigências” [16], sempre divergentes e freqüentemente incompatíveis. Cercado por três lados, ameaçado por três tipos de perigos, vê-se como presa da ansiedade – a bem dizer, de três diferentes formas de ansiedade – e falha freqüentemente em sua tarefa de mediação, racionalizando e ocultando seus confl itos e divergências interiores.

Dominado, dividido e subserviente, o eu resulta enfraquecido e oscilante em seu valor próprio, sua grandeza sendo inteiramente dependente dos investimentos amorosos que o tomam como objeto, vindo de outros ou de si próprio. Assim, no auge da infl ação de si mesmo, o sujeito pode acreditar-se o próprio Napoleão, enquanto uma dor de dente o fará recolher-se ao tamanho do dente molar: “A alma inteira encontra-se recolhida na estreita cavidade do molar, diz W. Busch sobre o poeta que sofre de dor de dente”, comenta Freud [17]. O fato é que o valor do eu, ou sua grandeza, empresta-se a partes de si, às representações mais ou menos poderosas, mais ou menos conscientes, pelas quais o eu se faz apresentar.

Vê-se já aqui o quanto nos interessa a teoria do Jacobina que, ao enunciar a chamada alma exterior, diz:

A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de uma camisa é a alma exterior de uma pessoa; – e assim também a polka, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma vacatina, um tambor, etc. […] As duas (almas) completam o homem, que é, metafi sicamente falando, uma laranja; quando perde uma das metades, perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda da alma exterior implica a da existência inteira [18].

Assim, ele antecipa a narrativa do momento de sua vida em que o sustento de toda sua alma e sanidade fi cou reduzido ao reconhecimento de sua posição de alferes, a alma se abrigando inteira naquela farda. Se os interlocutores de Jacobina fi caram estupefatos com essa possibilidade, não menos fi camos nós, ao reconhecermos naquele homem que busca sua inteireza e conforma seu desespero despersonalizante na imagem fardada que lhe vem do espelho, ao reconhecermos ali, eu dizia, uma belíssima fi guração da dependência do eu dos suportes e emblemas narcísicos a que se empresta.

A visão do eu na Teoria dos Campos

Esse esparramar-se do eu sobre os objetos do mundo compartilhado cai bem para seguirmos em nosso propósito e atingirmos o tema deste trabalho. Até aqui, fi camos com Freud, pretendendo sugerir que a noção de eu resultante da proposta teórica freudiana é já uma noção complexa e bastante questionadora em relação ao status do eu em seu aspecto racional, controlador ou capaz de auto-determinação. Freud nos mostra um eu fragilizado, despotencializado e siderado por determinações que em muito o ultrapassam. Mas, ao mesmo tempo, um eu que se ajusta à obra da Cultura, à Psicanálise, e que ainda há de advir ali onde está o id [19]. Essa complexidade talvez seja fruto do fato de que a idéia de eu foi em parte herdada pela teoria psicanalítica das teorias psicológicas que a antecederam, não produzida a partir de seus próprios pressupostos. Bombardeada e “sobrevivida”, ela se mantém assim, meio manca, meio perfurada e ainda inteira, naquela inteireza arlequinal – feita de losangos de diversidade – de que fala Mário de Andrade para caracterizar a cidade de São Paulo.

Até aqui, Machado nos ajudou, mais por gosto do que por necessidade, propondo uma teoria própria da alma humana; talvez ele nos inspire ainda no tema que prossegue. O que interessa agora, para seguir adiante, é saber: qual o impacto da Teoria dos Campos sobre essa noção, já tão abalada, do eu? É grande, adianto. Então, sigamos em frente.

Do ponto de vista teórico, a Teoria dos Campos parte de uma visão muito peculiar do eu. Para ser claro e direto, não acreditamos que a noção de eu seja legitimamente psicanalítica. Todos os conceitos mais valiosos da Psicanálise, da repressão à cisão, do confl ito aos mecanismos de defesa, do trauma à elaboração onírica e à neurose de transferência, apontam sempre para a negatividade, precariedade e fragmentação do sujeito, enquanto a noção de eu se lhes opõe, como defensor da unidade e coerência [20].

Como “Pilatos no Credo”, sua função seria a de permanecer como contraponto, a serviço de permitir que se notem os demais conceitos.

Reconhecendo, então, que a noção de eu é anterior à idéia psicanalítica e que mal e mal se ajusta a ela, o que propõe a Teoria dos Campos é – radicalizando a crítica freudiana à unidade do eu e a qualquer idéia de uma unidade subjetiva que se relacionasse com o mundo – criticar a sobrevivência, na psicanálise, da idéia de um eu total. A relativização crítica desse conceito de eu é o ponto de partida de uma nova teoria do eu. É no livro A psique e o eu que Fabio Herrmann discute duas das teorias que se aventuram nessa posição crítica, discussão sinteticamente retomada no capítulo 12 de Introdução à Teoria dos Campos. Já veremos como ela se encaminha.

O começo de toda a apresentação é a distinção necessária, presente já em Freud, como se viu, entre o eu como um conjunto de funções psíquicas – motricidade, pensamento, percepção, memória, juízo etc. –, um eu-função, e o eu como um conjunto de representações que o sujeito apresenta de si pela vida afora, eu-representação. Do primeiro, pouco ou nada teremos a falar que se acrescente às formulações pré-existentes. A distinção cuidadosa entre eu-função e eu-representação, no entanto, é já um primeiro passo da teorização que se segue no primeiro ensaio em que examina a questão, intitulado: “O eu no fígado da pedra”. “Não se trata”, diz Fabio, “de duas coisas completamente distintas, como nalgumas versões da Psicanálise pode estar sugerido pelo emprego dos termos ego e self, nem de uma só entidade permanente, o Eu, sujeito da consciência, e sua identidade” [21]. De fato, quando o eu-representação sente-se atingido por ataques, quer lhe venham da realidade ou do superego, por exemplo, ele pode ter sua capacidade funcional paralisada. A analogia invocada aqui é interessante: “o eu-funcional é como uma cabina de comando que pode ser ocupada por diferentes pilotos, por diferentes eus-representação” [22]. Nas ocasiões de confl ito grave, o comando se paralisa.

Ora, afinal, do ponto de vista da psicanálise, é o conflito mesmo o que nos caracteriza humanos. Aquilo que acima apontamos, em Freud, como uma divisão do eu em suas funções, divisão que se faz sentir como crítica, como auto-observação, como um tratar a si como a qualquer objeto, é a mostra do conflito no qual porções do eu enfrentam-se com outras. No caso mais conhecido, temos o confronto eu/supereu, que, segundo Fabio, é um só dos casos de confronto entre aspectos do eu. Um só dos casos, o primeiro que nos vem à mente, por ser abordado diretamente por Freud, e que nos apresenta à idéia de duplicação do eu nos processos psíquicos, nome encontrado por Herrmann para falar dessa situação de estarmos sempre, em cada ação psíquica, diante de pelo menos dois eus em contraponto.

Quando ocorre uma ação intrapsíquica, como a do superego sobre o eu, estamos de fato diante de dois eus, de dois sujeitos psíquicos em diálogo: eu e superego. O superego tem propósitos, estoque de memória, identidade, é um eu agente [23].

O superego é então uma duplicação do eu, e isso não parece longe do que o que o próprio Freud enunciou, na medida em que ele se refere ao superego como uma divisão no interior do eu que torna bastante complexa sua estrutura.

No entanto, diz Fabio, para sermos inteiramente fi éis à hipótese freudiana de inconsciente e à redefi nição do lugar da consciência nela implicada, aquilo que nos é confi rmado pela experiência analítica é que, mesmo na vida normal, inúmeras formações psíquicas estão em jogo. Em suas palavras, “é preciso, antes, considerarmos que, a cada ato psíquico, a posição de sujeito desdobra-se de maneira mais complexa; o sujeito está em diferentes posições simultaneamente, eus se formam e se desfazem como estrelas na poeira galáctica, cada qual comportando dimensões inconscientes e campos gravitacionais próprios” [24].

A fidelidade proposta à hipótese freudiana, no entanto, a modifi ca bastante. Vejamos. É que, em vez de pensarmos em um só eu que, sob pressão intensa e insuportável, se rompe, como o cristal que se parte em elementos previamente confi gurados, segundo a hipótese freudiana [25], pensamos agora numa espécie de circulação de eus que se revezam na ocupação do lugar de sujeito psíquico e o disputam, nisso consistindo o confl ito psíquico.

Duas conseqüências se colocam a partir daí. A primeira diz respeito à tendência à síntese e à unifi cação que caracterizam o eu freudiano. Onde, nesse quadro, fi ca essa tendência, realizada como identidade? Teríamos que supor aqui que a faculdade sintética do eu – a tendência à unifi cação de vários sujeitos e suas representações – é nada mais que exatamente isso: uma tendência, ou, se quisermos ser mais precisos, uma ilusão – ou uma obsessão contemporânea/ ocidental, como sugere Fabio. A circulação de representações diferentes do eu – que equivale à circulação de identidades – é antes uma meta que um problema. Caberia justamente ao processo analítico dar voz aos diversos eus, além de remeter-se interpretativamente de formas diferentes a cada um.

A outra possibilidade de unifi cação, aquela que nosso caro Jacobina experimentou temerariamente, que é o predomínio prolongado do domínio psíquico de um só eu, equivale à instalação de uma ditadura psíquica [26]. Soube-o bem o personagem machadiano: bajulado interminavelmente como ‘senhor alferes’, acabou por acostumar-se de tal forma a essa identidade excelente que, um dia, tendo fi cado sozinho e sem mais ninguém que o visse e nele reconhecesse a mesma importância, ali, no roçado deserto, tornou-se um defunto, um boneco mecânico, sem eira nem beira. Ao olhar-se no espelho, não viu mais do que uma sombra desesperadora, de feições inacabadas e incertas. Imagem que só se corrigiu no momento em que, num ímpeto, ele decidiu vestir a farda que tão fundamentalmente o passara a representar. Só então pôde novamente recuperar sua inteireza. Explica Machado: “o alferes eliminou o homem. […] a alma exterior, que dantes era o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que e falava do posto, nada do que me falava do homem” [27]. O alferes eliminou o homem; uma das emanações do eu, num ímpeto de mesmidade e coincidência consigo próprio, tomou o lugar do eu total; melhor dizendo, impediu a continuidade da circulação dos outros eus. A angústia frente à diversidade consigo mesmo foi resolvida à custa do sentimento de realidade e evocou, justamente, a perda do sentido de imanência, aquele que nos mantém certos de sermos os mesmos, em que pese a circulação de posições que vamos assumindo sucessivamente. Nada má, de fato, a teoria de Machado. Ela só não dá o nome aos bois: o inconsciente.

Justamente aí incide a segunda conseqüência dessa teoria do eu proposta pela Teoria dos Campos, em sua pequena – diz Fabio – torção da teoria clássica. É que, a partir dessa concepção da duplicação sub-reptícia do eu nos processos anímicos, estabelecida como fundamento psicanalítico do sujeito, também o inconsciente não pode mais ser pensado como unidade, “já que cada sistema de ação e representação, cada eu, comporta sua própria dimensão inconsciente e é afetado por complexos inconscientes não necessariamente idênticos” [28]. Cada núcleo de sentido corresponderia a uma síntese particular do eu, que procederia por sínteses diferentes e sucessivas. Não haveria unidade, então, nem no eu, o que Freud já percebera, nem no inconsciente, o que nos põe face a uma nova revolução do pensamento. Aqui, temos de dar conta não apenas de que a Terra não é o centro do universo, como também de que não há um único universo, mas inúmeros. Provavelmente aquele em que nos situamos mais freqüentemente não é o melhor. O psiquismo nos aparece então como “conjuntos organizados de representações, que podem atuar como sujeitos ou eus, formados ao longo da existência, contendo um acervo próprio de memórias” [29] e de mecanismos defensivos, ou por outra, na terminologia proposta, contendo seu correspondente inconsciente relativo [30]. O campo resultante da interação entre os vários inconscientes relativos será compreendido então como um espaço psíquico necessariamente não homogêneo nem inteiro, mas como um campo de diversidades e de possíveis.

Freud [31] disse certa vez, ao propor sua teoria acerca da psicose, na análise do caso de Schreber, que caberia ao futuro decidir se havia mais delírio em sua teoria ou mais verdade no delírio do que se queria de início supor. Creio que aqui se apresenta uma oportunidade semelhante, de legar ao futuro uma avaliação da reformulação aqui enunciada. O fato, entretanto, é que a presente teoria parece capaz, como poucas, de dar conta daquilo que se pode caracterizar como a fragmentação do sujeito no mundo contemporâneo. Fragmentação do nosso tempo, recorte dos nossos horizontes, partição das respostas a que somos exigidos, como seres maquínicos que nos apresentamos. Também é de interesse o fato de que uma outra característica componente de nosso mundo, a virtualidade, presente hoje nos nossos mais cotidianos contatos, estará na base do outro modelo proposto para o eu, o do disfarce.

O segundo modelo do eu, discutido no outro ensaio de A psique e o eu, intitulado: “A paixão do disfarce”, pode ser entendido como decorrente dessa idéia de duplicação do eu nos processos psíquicos. Estendendo até o limite a noção de disfarce, num movimento que nos aproxima do prazer de nos apresentarmos como ‘outros’, a partir das brechas criadas pela nossa condição linguageira, Fabio Herrmann discute ali o aspecto virtual, poderíamos dizer, ou imaterial e recriável dessa apresentação de nós próprios a que chamamos eu. Disfarçar-se aparece como a essência mesma de toda narrativa humana, de toda história, sendo sua condição a passagem de nossa existência concreta para uma existência na linguagem ou no campo relacional. A que estaria relacionado o prazer do disfarce, pode-se perguntar?

Herrmann o faz remontar ao advento da subjetividade, concebido como o momento teórico no qual o bebê se liberta do cerco das coisas, reino da pura necessidade. A subjetividade se inauguraria, a partir desta versão das origens do eu, por uma experiência de descolamento em relação ao circuito fi siológico, que se dá por uma espécie de mentira original. Consiste no seguinte: a mãe, ao cuidar de seu bebê, erra, necessariamente. Dá colo a quem grita por fome, embala o que está cheio de xixi, dá o peito quando o pequeno chora por coceiras. Na sintonia desses erros, no contato pré-intencional com a mãe, desponta no pequeno a possibilidade de também errar em seus choros, de modo a “apresentar” à mãe um choro de fome, sem no entanto ter fome, e com isso ver satisfeita a necessidade de colo e aconchego. O que vemos aí é a emergência de um sujeito que se cria nas apresentações de si mesmo, por cima do campo material das necessidades.

A hipótese aqui é que a paixão do disfarce, ao nos levar a disfarçar-nos do que somos e do que não somos, reedita esse momento inaugural de auto-criação do sujeito, pressuposto do eu e da identidade. Assim, o ato de disfarçarse revive a experiência inaugural de criação da identidade. O disfarce revela do eu o essencial, citando o autor: “que meu eu é uma criação de mentira, é uma máscara inventada, cuja invenção seja quem sabe a obra principal de minha vida, pelo menos aquela a que dedico maior esforço” [32]. A novidade, como já poderíamos ter previsto pela discussão do modelo precedente, no entanto, é que atrás do disfarce não há um eu pleno e verdadeiro a ser ocultado. A noção de um eu verdadeiro e pleno não fi gura aqui como contraponto do eu do disfarce. O eu dominante, o mais freqüente, a identidade cotidiana, que se costuma achar que é mais verdadeira, ocupa aqui “o lugar nada glorioso” de ser tão somente um disfarce a mais. O ponto de maior aproximação à verdade está no ato de disfarçar-se, não no resultado do disfarce, digamos. “Fazendo-me outro, faço-me de novo e o fazer conta mais que a forma, verdadeira ou mentirosa, daquilo que me tenho feito durante a vida” [33].

O disfarce, longe de ser então um vício que nos oculta em certo ofício de travestismo, aparece aqui como o próprio modo de ser do homem. Modo de ser às vezes criativo e apaixonante, às vezes defensivo e repetitivo, em qualquer caso um modo de ser que atravessa toda a nossa vida social.

A patologia do disfarce, já no-la mostrou Jacobina, é a redução tamanha do sujeito a um disfarce único e uniforme, uma exageração do imperativo de ser um. Justamente o uniforme é que tomou a alma do personagem, como sabemos, quando o alferes sobrepujou o homem, quando seu valor foi todo reduzido ao posto que ocupava: levantado o disfarce, ele nada encontrou de si que o sustentasse um, vivendo aquela espécie de experiência de despersonalização descrita um pouco acima. Sua antiga alma dispersou-se no ar e no passado. Nenhuma outra chance lhe restou, senão a de repetir-se cotidianamente o exercício da patente, que o tornava de novo um com o uniforme:

Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, como estava defronte do espelho, levantei os olhos e… não lhes digo nada; o vidro reproduziu então a fi gura integral; nenhuma linha de menos, nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfi m, a alma exterior [34].

Não lhe restou outra possibilidade que a cada dia, a partir de então, vestir-se de alferes e sentar-se diante do espelho por algumas horas, com o objetivo de ser novamente a si próprio. O que se passou aí é que, levantado o disfarce, surgiu um eu escangalhado e esfarrapado, não mais nem menos verdadeiro que o do disfarce fardado, mas apenas intolerável. Condenou-se nosso amigo a repetir-se interminavelmente o mesmo disfarce.

Por isso disse que a ficção machadiana nos pôs no campo da patologia. Na vida corrente, o eu é justamente aquilo que surge, não menos atônito, do levantamento do disfarce, como um efeito ilusório desse levantamento. Aquele que acorda de um pesadelo, aquele que chega em casa pronto para retirar o sapato apertado da festa, aquele que, aliviado, vê-se curado de uma doença prolongada: “voltei a ser eu mesmo, dizemos nessas ocasiões”. O eu é, assim, este efeito ilusório de que há um tesouro escondido atrás de cada disfarce, é ele mesmo este efeito ilusório de revelação.

O modelo tomado nos coloca, então, face à possibilidade de ser o eu uma espécie no gênero do disfarce, sem deixar de ser “em igual medida aquilo que o disfarce oculta” [35]. Essa é uma importante contribuição da teoria dos campos à noção do descentramento fundamental da psique, corolário da tese do inconsciente. Além de denunciar a fraqueza do ego frente ao serviço a três senhores, o que Freud fez com maestria, tendo essa idéia, inclusive, já se popularizado como teoria, o que se põe em pauta aqui é a ilusão de mesmidade do eu, como fundamento de nossa identidade. A partir daí, “nossa vida espiritual pode muito bem ser encarada como uma luta entre formas de coerência discrepantes, ou, se preferir, entre disfarces que competem e se relacionam de muitas maneiras distintas: um baile de máscaras em cada cabeça, ou, ainda melhor, uma guerra entre exércitos psíquicos uniformizados” [36].

Diríamos a nosso caro Jacobina: não duas almas, mas muitas, sendo o uniforme do alferes apenas uma revelação mais óbvia da disciplina militar a que se aferra o desejo no intuito de produzir identidade. A fi cção, como arte e pedagogia do disfarce, mostrou-se aqui o campo fértil de elaboração das idéias e de reconhecimento de nossos movimentos de apresentação do eu. Nesse quesito, com certeza, seguimos o movimento inaugurado por Freud e explorado tão magnifi camente por Fabio Herrmann.

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