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Resumo
Resenha de Luis Hornstein (org.), Projecto Terapêutico – De Piera Aulagnier al psicoanálisis actual, Buenos Aires, Paidos, 2008.


Autor(es)
Carlos Guillermo Bigliani


Notas

1 O que é mais a regra que exceção nesse país. Jorge Lebas comenta: “A presença de várias teorias em cada apresentação clínica foi constante, salvo as baseadas em teoria lacaniana, o que demonstrava que o pluralismo teórico predominava em Buenos Aires em 2003”, Psicoanalisis, Revista de APDEBA, 2009, v. XXXI, n. 1, p. 240.

2 Vale a pena aqui reproduzir por extenso a citação de A. Green (Lês états limites, Paris, PUF, 1999) no artigo de Luis Hornstein: “Na França, entre 1953 e 1970, durante a época de hegemonia lacaniana, era proibido se interessar pelo Ego. O mero fato de o levar em conta levava a sofrer acusações de ser “ego psychologist”, o que era uma fabulação com fi ns caluniosos, já que na França nunca ouve um só “ego psychologist”. Essa atitude paralisou os estudos sobre o Ego. Se não tivesse havido essa proibição de refl etir sobre o Ego e se a França não tivesse seguido como um ‘só homem’ o ditame de Lacan de que o Ego era produto das identifi cações especulares do sujeito – que o é, mas não unicamente – e se tivéssemos tido o valor de abordar a análise do Ego de outra maneira, é provável que não tivéssemos sofrido o atraso que acumulamos”.

3 Nesse sentido não se afasta de um Freud que pensou esta problemática desde seus esboços iniciais sobre fantasia, e até em “Construções” e “Moisés e o monoteísmo”.

4 É interessante relacionar esta produção pela sociedade de respostas fechadas que inibem a pulsão de saber com a concepção de Bion de interpretações saturadas, que bloqueariam a capacidade de se interrogar do paciente, e não saturadas, que ampliariam tal capacidade. Essa temática foi retomada recentemente por R. Hartke (cf. sua discussão do artigo de Antonino Ferro no congresso da IPA, Chicago, 2009, ainda não publicado).

5 Para Piera Aulagnier: “A clínica psicanalítica não é isolável da metapsicologia. A ênfase na articulação teórico -clínica se evidencia em seu conceito da “teorização flutuante”. Trabalho pré -consciente do analista em que está presente a teoria do funcionamento psíquico, os elementos que o analista guarda em sua memória referidos à história do paciente e a história transferencial que ambos construíram”. Maria Cristina Rother de Hornstein, “De Milão a Paris: Piera Aulagnier”, nesta coletânea.

6 Dentre os autores do livro, talvez Carlos Mario Aslan é quem aparece como mais heterodoxo, chegando em suas conclusões a postular que a análise deveria também, quebrando sua sujeição à via de “levare”, ensaiar a via de “porre” condenada por Freud. Luis Hornstein discute também o fato de que, quando não se realizam as curas clássicas, se diz que estamos realizando uma psicoterapia, e não que estaríamos abrindo novas perspectivas para a psicanálise.

7 Cesar Merea citará algumas páginas mais adiante a Max Bloch: “os homem se assemelham mais a seu tempo que a seus pais” (p. 125).

8 D. Najmanovich nos lembra em seu artigo (Projecto Terapeutico, p. 327) a inversão que Castoriadis faz do aforismo freudiano ao propor que “onde o Ego existe o Id deve advir”, ressaltando os efeitos benéfi cos enquanto a criatividade e diferenciação do Id sobre as estruturas enrijecidas do Ego.

9 S. Bleichmar nos lembra (Projecto Terapeutico, p. 138) o importante que seria deixar de nomear as personagens, expressão de uma sociedade patriarcal, pois, ao permanecer com esse tipo de nomenclatura (pai e mãe), “vamos acabar falando só com a Opus Dei”, e propõe, por exemplo, substituir o conceito de “lei do pai” por “função de interceptação terciária do gozo”.


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 LEITURA

Projeto terapêutico

[Projecto Terapêutico - De Piera Aulagnier al psicoanálisis actual]


Therapeuthic project
Carlos Guillermo Bigliani

Esta coletânea (pt) de textos visa pensar a produção teórico -clínica de Piera Aulagnier, assim como oferecer elementos de sua biografi a e percurso de diferenciação institucional e, de alguma forma, sua visão da sociedade como produtora de subjetividade.

Luis Hornstein, seu compilador, importante pensador da psicanálise argentina, presidente da Sociedad Psicoanalítica del Sur em Buenos Aires, vem trabalhando os textos de Piera Aulagnier há muitos anos. Os autores deste livro são profi ssionais muito experientes que compartem uma cultura psicanalítica e um momento fértil da psicanálise na Argentina.

Durante os anos em que muitos desses textos foram escritos ( Jornadas comemorativas dos dez anos da morte de Piera Aulagnier), esse país enfrentava reorganizações institucionais, desilusões e enriquecimentos teóricos: acontecia uma reaproximação entre psicanalistas e lógicos, filósofos, historiadores pesquisando subjetividade e epistemólogos aportando novas visões dos sistemas complexos.

Os psicanalistas que participam deste livro são fl uentes em várias “linguagens” teóricas [1] e ao revisar a obra de Piera Aulagnier o fazem em articulação com sua própria produção teórica, o que fi ca evidente e até explícito nos trabalhos inicias de Luis Hornstein em relação a sua própria produção sobre Ideologia e sobre Narcisismo, e de René Kaës, com suas pesquisas sobre Intersubjetividade.

Apresentarei alguns conceitos dos dois primeiros textos, incluindo aportes dos outros textos contidos nesta coletânea, tentando oferecer ao leitor pinceladas da vasta temática discutida. Il va sans dire que, assim como os autores fazem sua leitura dos textos de Piera Aulagnier, este resenhista faz sua leitura e seleção dos conteúdos de seus textos…

Piera Aulagnier modifi ca tanto a teoria tópica quanto a estrutural e são essas modifi cações que essas jornadas pretendem revisar.

Luis Hornstein propõe que, ao modifi car conceitos fundamentais visando teorizar a construção da subjetividade, Aulagnier articula sua marcha teórica à ideia de um trajeto identifi catório, e lembra que, para percorrer esse caminho teórico, ela deve construir suas próprias pontes conceituais: processo originário, pictograma, violência primária, antecipação identifi catória, projeto identifi catório, enunciados identifi catórios, sombra falada, identifi cante e identifi cado, confl ito identifi catório, princípio de permanência e de mudança, libido identificatória, teorização flutuante, contrato narcísico, entre outras. Conceitos estes que contêm uma recuperação de sua fi liação lacaniana para dela se afastar (assim como de seu mestre e seus jogos pessoais e institucionais de poder).

Luis Hornstein exemplifica esse movimento na teorização que Piera Aulagnier faz do Ego [2], recuperando para este, mais além de sua função adaptativa (ego psychology) e de desconhecimento (lacaniana), a dimensão historizante e dinâmica que o mesmo Freud lhe tinha outorgado devolvendo -lhe assim sua complexidade. Piera Aulagnier concebe um Ego com um núcleo estável (simbólico) e com a presença das fi - guras sucessivas de seu trajeto identifi catório.

Para Hornstein, Piera Aulagnier, afastando- -se do solipsismo que reduz o sujeito a representações de sua própria produção e em quem a verdade histórica é mera fantasia projetada no passado, conceitualiza um Ego historiador, dependente em sua historização do processo identifi catório e da realidade externa [3]. O que confere ao processo terapêutico a função de fornecer palavras ao afeto baseado na âncora do capital fantasmático do paciente para favorecer uma historização simbolizante.

Hornstein articula a teorização de Piera Aulagnier sobre a subjetividade com os conceitos de Castoriadis (seu marido e companheiro intelectual) sobre a pulsão de saber que comporta uma busca de sentido do ser humano singular e a possibilidade de arrancá -lo de seu estado autista original, e também como essa busca pode ser preenchida de modo empobrecedor pelas respostas canonizadas oferecidas pelo imaginário social através de seus “funcionários”: magos, sacerdotes, secretários gerais, cientistas… [4].

O trajeto identificatório é um processo continuado que se alimenta de todo vínculo investido: “enquanto existe vida existe trajeto identifi catório”, nos lembra Hornstein. O Ego estaria assim constituído por um conjunto de identifi cações, produto dos enunciados que sobre o sujeito formularam outros signifi cativos, e os olhares destes outros que propõem ao Ego da criança representações para consolidar uma construção identifi catória. Este processo estaria motorizado por uma “esperança narcisista de autoencontro” entre o Ego e seu Ideal, e é a partir desse Ideal que se investem os projetos do Ego. Em cada fase histórica, o Ego deve achar satisfações sufi cientes que estimulem a procura de mais satisfações no futuro e, ao mesmo tempo, insufi cientes a ponto de estimular a procura de novos prazeres.

Frustrações e gratificações ótimas impulsionam a criança a se desprender de satisfações iniciais e substituir os enunciados identifi catórios parentais por aqueles que se originam no discurso social. Em razão de o sujeito ser um sistema aberto, constrói -se assim um edifício identifi catório heterogêneo, o que explica a potencialidade para confl itos identifi catórios no Ego. Luis Hornstein cita W. Whitman: “estou me contradizendo?…, e daí? Sou imenso e contenho multidões”.

Para Hornstein, Piera Aulagnier revitalizou a teoria do Ego ao sustentar que as psicoses interrogam sobre as diversas modalidades de representação e sua vinculação à história, expressando em sua atividade delirante uma formação de compromisso que contém enunciados sobre a origem. Nessas patologias se manifesta uma “interpenetração” (termo teórico cunhado por Aulagnier) do cenário fantasmático com acontecimentos.

Na trama pulsional que sustenta a teorização de Piera Aulagnier, a pulsão de vida tende a criar unidades cada vez maiores que permanecem, enquanto a de morte tende a destruir traços mnêmicos e a desinvestir, deixando buracos de memória que difi cultam o trabalho de re -historização. Por isso o trabalho do analista não é só recuperar a história, mas também possibilitar simbolizações estruturantes.

Para a realização de tal projeto analítico, ambos participantes devem “correr o risco” de descobrir pensamentos que questionem suas convicções e experimentar o desejo de favorecer a emergência do novo que modifi que a relação entre o Ego e o resto das províncias psíquicas, fornecendo essa simbolização historizante que para Piera Aulagnier é a análise. A falta de disposição para a escuta do novo implica uma “violência secundária”, um abandono da teorização flutuante [5] e da preservação do caráter único do processo analítico, mergulhando -se na clonagem teórica da prática e da escuta. Luis Hornstein nos lembra que a psicanálise é feita para o paciente e não o paciente para a psicanálise, e que alterar “contratos” não signifi ca renunciar à análise, mas, em muitos casos, possibilitá -la [6].

O Ego não é inato: nasce de outrem.

O objeto se transformara em sujeito através das vicissitudes pulsionais e de seu trajeto identifi catório. O Ego se nutre dos enunciados identifi catórios e dos olhares que lhe devolvem os outros. Sua defi nição é feita cada vez mais: não pelos enunciados de um outro, mas pelo “discurso do conjunto”.

Para que o percurso da criança para espaços extra -familiares se opere é preciso que um narcisismo trófi co dê coesão e valor ao Ego e nutra ideias, ilusões e projetos que devem ser oferecidos pelo espaço familiar, retomando o ego antecipado que precedeu seu devir na cena psíquica e depois, para evitar ser um simples robô do desejo dos pais, se diferenciar destes.

Este sujeito, cuja construção é social [7], estará incluído numa história que será repetição e acontecimento, busca e encontro com o novo. Luis Hornstein sugere que esta concepção nos resgata de uma “psicanálise lúgubre” de “determinismos infantis fatais”, absolutos. O imaginário não seria assim só repetição ou ocultamento de uma falta, mas também criação.

A sociedade tende a reproduzir sua própria estrutura por meio das instituições. Estas repetem a produção de sujeitos que perpetuam a lógica e as signifi cações fornecidas por essa sociedade, ambas vistas como inquestionáveis. Mas o homem, através de sua capacidade de fantasiar e inventar, pode evitar ser aplainado pelo peso do pensamento herdado. Assim a capacidade de evitar a opressão pelo pensamento herdado indicaria para Castoriadis [8] (e seguramente também para Piera Aulagnier) a condição de fi m da análise…

René Kaës, em seu artigo “Intersubjetividade: um fundamento da vida psíquica”, pretende mostrar como e no que o pensamento de Piera Aulagnier aporta uma contribuição original à construção psicanalítica do conceito de intersubjetividade, cuja importância se evidencia como necessidade teórica nas chamadas novas práticas: família, grupo, casal, terapias vinculares e institucionais. No primeiro modelo freudiano do aparelho psíquico, não caberia o lugar do outro, para o que a segunda tópica, que permite uma melhor compreensão dos conjuntos, seria necessária, mas, ainda assim, o conceito de intersubjetividade não está inteiramente incluído na psicanálise.

René Kaës julga importante destacar que a forma em que Lacan usa esse conceito remete à alienação do sujeito nos desejos do outro e não à consistência psíquica do vínculo intersubjetivo no qual é necessário recorrer a outra lógica dos processos psíquicos: uma lógica de “não um sem o outro”. Para ele, as distâncias entre os sujeitos possibilitam as relações enquanto suporte da emergência do Ego. A intersubjetividade discute o problema do reconhecimento e articulação de espaços psíquicos parcialmente heterogêneos com lógicas próprias, o que seria diferente da interação.

Ainda sem ter achado na obra de Piera Aulagnier o uso desse termo, ele nota sua preocupação com essa problemática em diversos conceitos, notadamente ao se ocupar da noção de contrato narcisista (estabelecido entre o sujeito e o conjunto onde o Ego pode advir), de porta-voz (“que desempenha a mãe” [9] “falando” à criança, como acompanhante das funções psíquicas, interditando e estruturando) e de estados de alienação.

O trabalho de interpretação é levado a cabo pela reverie materna em sua função de porta -voz desde muito antes do nascimento e, por meio deste trabalho, o lugar do infans é antecipado. Aqui René Kaës recolhe o conceito de sombra falada que tenta dar conta da imposição à criança por meio da violência primária (violência necessária para dar acesso à ordem do humano), da imagem (às vezes de um antepassado) que é projetada sobre o corpo da criança que passa a tomar o lugar daquele a quem o porta -voz se dirige. A criança pode aceitar ou não o desejo com que a mãe a anima, causando -lhe alegria ou a sensação de ser agredida.

Einstein respondeu, no mais clássico estilo freudiano (judaico?), a uma pergunta de um jornalista que lhe solicitava uma explicação fácil de sua teoria da relatividade com outra pergunta condicionante: “Só se você me explicar como fritar um ovo”. O jornalista ofereceu a receita tradicional. Ao que Einstein respondeu: “… e como você me explica tudo isso se eu não sei o que é frigideira, fogão, óleo e fogo…”.

A receita do ovo teórico de Piera Aulagnier e a explicação de seus ingredientes aparecem claros neste livro inteligente, profundo, que não incensa Aulagnier, mas faz trabalhar seus conceitos num contexto de liberdade teórico -clínica em que, sem dogmatismos, peneiram -se os desenvolvimentos mais produtivos e criativos da disciplina na atualidade.

Na brilhante integração e síntese desses textos se encontra sua riqueza, assim como também sua complexidade, o que orienta o leitor a uma degustação em quantidades moderadas, já que, como toda boa literatura, exerce uma “violência interpretativa” sobre quem a acomete, o que recomenda uma metabolização vagarosa.

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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