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Resumo
Este trabalho aborda a obra de Herrmann a partir das conseqüências – aliás, inquietantes – extraídas do fato de o autor ter isolado a operação fundamental, denominada ruptura de campo, que coloca em funcionamento o trabalho analítico. A partir dessa constatação, a autora comprova, por meio do relato de um caso, que mesmo um texto literário, desde que seja sufi cientemente denso e desde que seja trabalhado criticamente, pode servir de suporte teórico ao trabalho clínico.


Palavras-chave
adolescência; vórtice; homem psicanalítico; expectativa de trânsito; literatura e psicanálise.


Autor(es)
Cecilia Maria de Brito Orsini
é psicanalista, membro efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo.


Notas

* Este artigo é uma versão modifi cada do trabalho intitulado “A operação de ruptura de campo em suas relações com a psicanálise, a clínica e a literatura”, na Coletânea do II Encontro da Teoria dos Campos, org. Leda Barone, O psicanalista ontem hoje e amanhã, São Paulo, Casa do Psicólogo, 2002.

1 F. Herrmann, Psicanálise da crença.

2 S. Freud (1900), A interpretação de sonhos, v. 4 e 5.

3 S. Freud (1895), Estudos sobre a histeria, v. 2.

4 F. Herrmann, op. cit., p. 16-7.

5 Mallarmé é empregado por F. Herrmann no artigo “Da clínica extensa à alta teoria: a história da psicanálise como resistência à psicanálise”, p. 15-20.

6 F. Herrmann, op. cit.

7 F. Herrmann, op. cit.

8 M. Proust, op. cit., p. 289.

9 M. Proust, op. cit., p. 290.

10 A. Candido, “O direito à literatura”, p. 240.

11 M. Proust, op. cit., p. 110.

12 F. Herrmann, op. cit.

13 Comunicação oral de Osmar Luvison Pinto, como comentador deste trabalho quando de sua apresentação ao II Encontro Psicanalítico da Teoria dos Campos.

14 Comunicação oral nos seminários de literatura, 1990- (em curso).

15 L. Flem, O homem Freud – o romance do inconsciente.

16 S. Freud (1914), “O manuscrito recém-descoberto – neuroses de transferência: uma síntese”.

17 S. Freud, op. cit.

18 F. Herrmann, Psicanálise do quotidiano.

19 H. Pellegrino, “A honra de ser inseto”.

20 F. Herrmann, A infância de Adão e outras ficções freudianas.



Referências bibliográficas

Barone L. (org.) (2002). O psicanalista ontem, hoje e amanhã, São Paulo: Casa do Psicólogo.

Candido A. (1995). O direito à literatura. In: Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades.

Herrmann F. (2002). A infância de Adão e outras fi cções freudianas. São Paulo: Casa do Psicólogo.

____ (1999). A psique e o eu. São Paulo: HePsiché.

____ (2002). Da clínica extensa à alta teoria: a história da psicanálise como resistência à psicanálise. Percurso, ano xv, no 29.

____ (2001). Introdução à Teoria dos Campos. São Paulo: Casa do Psicólogo.

____ (1998). Psicanálise da crença. Porto Alegre: Artes Médicas.

____ (1997). Psicanálise do quotidiano. Porto Alegre: Artes Médicas.

Flem L. (1994). O homem Freud – o romance do inconsciente. São Paulo: Campus.

Freud S. (1900). A interpretação de sonhos. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vols. iv e v. Rio de Janeiro: Imago.

____ (1895). Estudos sobre a histeria. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud, vol. 2. Rio de Janeiro: Imago.

____ (1914/1987). O manuscrito recém-descoberto – neuroses de transferência: uma síntese. In: Edição standard brasileira das obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago.

Monzani L. R. (1991). A fantasia freudiana. In: Prado Jr. B. Psicanálise e fi losofi a. São Paulo: Brasiliense.

Orsini C. M. B. (2002). A operação de ruptura de campo em suas relações com a psicanálise, a clínica e a literatura. In: Barone L. (org.). O psicanalista ontem hoje e amanhã. São Paulo: Casa do Psicólogo.

Pellegrino H. (1968). A honra de ser inseto. Correio da Manhã, 2 jun.

Proust M. (1996). Em busca do tempo perdido: À sombra das raparigas em flor. São Paulo: Globo.





Abstract
This paper depicts the work of Herrmann, considering the disturbing consequences of his isolation of the basic operation called fi eld rupture, which triggers the analytical work. Whithin this context, the author proves through a case story that a dense and critically used literary text can support, on theoretical grounds, the clinical work.


Keywords
adolescence; vortex; psychoanalytical man; expectation of transit; literature and psychoanalysis.

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 TEXTO

A nau desarvorada *

The wandering vessel
Cecilia Maria de Brito Orsini

Introdução

Fabio Herrmann, em busca da operação básica do método de investigação psicanalítico, pôs a descoberto uma propriedade básica da interpretação freudiana, que se encontrava embutida em sua obra. Esta operação, que será descrita mais adiante, foi batizada de ruptura de campo.

Ainda que o resultado dessa demonstração contenha a vantagem de revelar com clareza a unidade donde deriva a efi - cácia do tratamento analítico, seu desvelamento não deixa de ser oneroso para o autor, assim como para seus leitores.

Acontece que, ao trabalhar a partir desse ponto de vista, o praticante, ávido de certezas, se vê abruptamente lançado em dúvidas quando percebe que essa posição não obriga nem privilegia o uso de qualquer teoria consagrada, pois, da Teoria dos Campos, não brotam os critérios necessários para se decidir com que teorias metapsicológicas operar.

Assumir, então, a postura interpretativa pautada na idéia de ruptura de campo implica acolher, no seio das análises, a probalidade de empregar quaisquer teorias, desde que se preserve a escuta da singularidade do paciente. O curioso, entretanto, é que a abertura contida na atitude clínica de deixar que surja e tomar em consideração – procedimento básico da operação de ruptura de campo, que exclui qualquer emprego teórico a priori – permite a aproximação de abordagens tais como a que aconteceu em minha clínica de adolescentes: com base na análise literária da obra de Marcel Proust, particularmente no livro em que o autor descreve a própria juventude, emergiu uma teoria psicológica da adolescência que auxiliou a condução de um caso, durante certo tempo daquela análise.

Desse modo, na primeira parte do artigo, examino as conseqüências para a prática clínica do fato apontado acima. Relato, então, na segunda parte, os frutos que pude obter a partir dessa postura, exemplifi cando com o caso de Tiane, uma adolescente típica, que representa aqui as vicissitudes de uma garota com seu grupo de referência e o conceito de mancha advindo da conjunção entre literatura e clínica.

Na terceira parte, descrevo como se deu esse encontro, a partir do emprego que fiz dos seminários de crítica literária do professor Modesto Carone, em torno da obra de Marcel Proust, Em busca do tempo perdido. Justamente seu segundo volume, À sombra das raparigas em fl or, aborda o desenvolvimento do herói em sua adolescência. Desse modo, achei importante sublinhar que não foi qualquer autor, nem foi lido solitariamente, já que relato os elementos da análise literária fundamentais para a efi cácia desta leitura na clínica.

Ao terminar, formulo uma questão em torno do risco contido na atitude decorrente do emprego dessa postura. Uma vez mais, a literatura, agora na fi gura de Kafka, estendeu a questão para além dos limites usuais, através da análise da obra-prima A metamorfose.

I. A descoberta do fundamento da relação analítica e suas relações com a clínica contemporânea

Se a Teoria dos Campos não chega exatamente a constituir-se numa teoria da subjetividade, não deixa de supor a propriedade fundamental do funcionamento da psique, que é a própria ruptura de campo. E o que é essa operação? Signifi ca a imersão de terapeuta e cliente em sentidos desconhecidos durante o processo analítico, o que reconduz o paciente a novas auto-representações que andavam lá pelas margens de seu sistema representativo. Pelo movimento do vórtice, essas representações voltam da periferia do eu-principal do momento, em circulação vertiginosa, assim como a água da pia quando destampamos o ralo (esta é a origem do nome da noção). O vórtice pode acontecer em qualquer linha de trabalho, pois age como uma espécie de estrutura básica, à qual se acrescentam as singularidades.

Segundo Fabio, durante o processo de análise as crenças do paciente acerca de si mesmo são profundamente arreliadas. O paciente entra num estado expectante de angústia, no trânsito de uma auto-representação outrora acreditada para outras, que do vórtice surgirão. A estruturação dessas representações fortemente investidas chama- se campo, o que defi ne a relação inconsciente que a dupla vem mantendo. Quando rompido, é o movimento que entra em jogo, é o homem psicanalítico que se faz presente, o homem visto a partir da clínica, revelando a coabitação de vários eus contraditórios ou colaboradores do eu-ofi cial. Na sucessiva exploração desses movimentos, procuramos nos conhecer melhor e, quem sabe, com um pouco de sorte, nos tornemos melhores.

O movimento de mergulhar com o paciente dentro das franjas desconhecidas de seu universo auto-representacional supõe uma certa visão de homem, que não é do homem, de maneira geral, nem a do homem das teorias psicanalíticas, e sim a do homem psicanalítico, aquele homem posto a descoberto pela arte da interpretação. Funciona como uma espécie de matriz crítica em direção a todos os conceitos da psicanálise.

Para tanto, é preciso realizar uma articulação teórica, qual seja: esse homem move-se num universo representacional rotineiro, fruto de um consenso inconsciente, cujo substrato é um real desconhecido, produtor do primeiro – a rotina. Para que as coisas não se desorganizem demais, há que se supor uma função mental que dê coesão a essa aparência rotineira. É a função da crença [1] que faz com que acreditemos serem as coisas aquilo que aparentam ser. As aparentes contradições são enfeixadas no mesmo sistema, pois o espírito não gosta daquilo que o incomoda: as incongruências, as contradições. Por isso, nosso espírito esmera-se por contar histórias razoáveis. Lembrando Freud: mesmo no sonho nosso de cada dia, por mais absurdo que pareça, há uma função mental postulada, muito assemelhada à função da crença, que ainda tentaria dar ao sonho um mínimo de arranjo e conexão, estabelecendo falsas ligações, fazendoo contar uma espécie de história com um certo começo-meio-e-fim, ainda que absurda. É aquela enigmática função que Freud, no sexto capítulo da Interpretação de sonhos (1900) [2], chamou de elaboração secundária – um dos processos do trabalho do sonho – que, por sinal, provocativamente, vai colocar operando na base das doutrinas filosóficas e do pensamento científi co.

Há um tecido anterior, do qual brota a idéia do homem psicanalítico: método analítico e metapsicologia freudiana nascem juntos, como podemos comprovar numa leitura cuidadosa de Os estudos sobre histeria [3], verdadeiro manancial de descobertas teórico-clínicas, que Freud desenvolverá ao longo de toda a sua obra. Contudo, em que pese esta respeitável fonte geradora – a metapsicologia freudiana –, o uso da ruptura de campo é como se fora uma sintaxe, sem a correspondente e asseguradora semântica. Não é fácil. Não fora isso, como teria Melanie Klein criado um outro sistema teórico, altamente singular, baseada sobretudo no emprego da psicanálise ao tratamento de crianças muito pequenas? Como conjugar as proposições das posições esquizo-paranóide e depressiva, o domínio no psiquismo da relação primitiva com o seio, a fi gura de pais combinados com a abordagem predominantemente falocêntrica e edípica de Freud?

Que ingrata vocação é esta, a da ruptura de campo? Há alguma maldição no nosso método, pergunta-se Herrmann?

Para Fabio, a radicalidade dessa episteme negativa assinala a posição contraditória do conhecimento humano, repelindo quase todos nós, assim como os pólos de sinais iguais de dois ímãs. Reconhecendo que muitos colegas operam perfeitamente esse instrumento, Fabio constata, no entanto, que muitas vezes o praticante se sente perdido e acaba por apelar a modos familiares de refl exão quando se depara com a falência insuperável do conhecimento positivo. Dessa misteriosa condição decorreria que “conhecimento algum é objeto de posse na Psicanálise, não se universaliza para lá de seu campo, nem se pode fixar” [4] (1999).

Vemos assim que o autor explicita suas inquietações, certamente fonte de consideráveis dissabores. Senão, por que revelaria nas Intenções de seu livro Introdução à Teoria dos Campos que talvez um escritor seja o sobrevivente da idéia que decidiu habitá-lo? Fabio esclarece que procurou sobreviver à idéia de ruptura de campo mediante a construção de um sistema de pensamento que, segundo ele, não chegaria a ser uma escola, não apenas pela falta de discípulos, mas também pela poeira que esta idéia levanta. Em conseqüência, é necessário refl etir um pouco sobre a questão: qual sua inserção na teoria psicanalítica?

Acredito que esse desvelamento desarranja um tanto o panorama das teorias conhecidas. Se a ruptura de campo funciona como uma matriz crítica que aspira e liquefaz nossas representações teóricas usuais, não é mais possível utilizar-se das teorias de modo ingênuo. Ainda que não se admita, por não ser de bomtom, que nos aferremos a teorias, na prática, até mesmo por angústia de suportarmos o vórtice das representações teóricas, muitas vezes é o que acontece.

A idéia de que sofremos constantes deslocamentos representacionais de parte de analista e analisando implica uma condição assaz claudicante. O analista em sua relação com as teorias tem de suportar, em seu mundo interior, o despedaçamento de suas representações teóricas, como diz algures Fédida.

Aliás, se desde seu princípio o homem está destinado a ser livre, como Sartre pensava, ser livre é uma sorte de condenação. O mesmo ocorre com nosso método: usá-lo também é uma espécie de “sentença de liberdade”. Provavelmente a maldição de que fala nosso autor. Não será custoso ser responsável por essa liberdade? No dia-a-dia, será nossa clínica, tanto intra como extra muros, capaz de suportar o peso de tal autonomia?

A nau desarvorada?

Para melhor ilustrar essa situação de risco, Fabio invoca o poema empregado por Mallarmé em sua crítica ao verso clássico, Un coup de dés jamais n’abolira le hasard [5].

Em sua leitura psicanalítica do poema, Herrmann realça a paradoxal situação do Mestre navegador. Pois, apesar de o capitão ser aquele que deve conduzir o navio na travessia da incerteza, no momento derradeiro ele só dispõe do acaso, tempo justo de lançar os dados – sem poder se valer de modo seguro do patrimônio de conhecimentos acumulados, ao menos no que concerne à garantia do acerto de sua decisão. Daí a importância do hasard, o acaso.

No poema, o Mestre lança-se ao oceano com sua intolerável lucidez, mas reconhece que toda escolha coloca-se como uma abertura ao acaso. Mal comparando, Fabio observa que, ao criar a psicanálise, Freud jogava seus dados, apostando em suas criações: os vários modelos de aparelho psíquico e seu motor: a teoria das pulsões, sua história do indivíduo humano concebida como desenvolvimento psicossexual. Em decorrência: as melhores formas da cura analítica.

Nessa acepção, portanto, as teorias valem antes como aposta, ou seja, na expressão de Herrmann, como rupturas de campo, do que como conhecimentos seguros de que se pode lançar mão.

E Fabio prossegue, descrevendo aquilo que julga novas rupturas de campo: como a que se deu quando Melanie Klein reinventou a clínica psicanalítica ao estender suas fronteiras às brumas da infância primitiva e ao generalizar o emprego técnico da transferência. Ou quando Lacan inventa o discurso psicanalítico metafórico, que domina hoje, no seu entender, a Psicanálise. Ou ainda quando Bion, completando a lista dos Mestres mais conhecidos entre nós, aposta na recusa de todos os interpretantes canônicos ao mesmo tempo e acaba por converter seu trabalho num cânon. Assim, conclui Herrmann, “em cada ruptura, uma doutrina – eis o lema dos náufragos alegres” [6].

No final do artigo, para que não haja nenhuma dúvida quanto ao risco comportado em nossa prática, afi rma Hermann: “num momento dado, o Mestre de Mallarmé é Ninguém. Toute pensée emet um coup de dés” [7].

Esta é a idéia seminal: o Mestre é Ninguém.
Em cada relato de caso encontra-se implicado este risco. Assim, cada caso terá a “sua cara”, e não o aspecto da teoria em uso pelo analista. Por isso as decisões clínicas são sempre muito difíceis, momentos de lançar os dados, de vez que não contamos com o apelo prévio ao conhecimento teórico e sim com a singela estratégia de preservar sempre e sempre a escuta singular e até mesmo o auxílio direto ao paciente, quando muito necessário.

É a partir desses pontos que procederei ao relato do caso de Tiane no que concerne ao surpreendente apoio vindo da literatura e o modo como esse aporte articulou meu pensamento teórico-clínico. Na segunda parte deste artigo é o que pretendo descrever e interrogar.

II. Tiane, Proust e Psicanálise

Tiane representa um tanto fi cticiamente uma adolescente típica. Seus pais me procuraram, muito assustados – como de hábito na clínica de adolescentes – buscando reconhecer a própria fi lha. Tiane havia desbundado, como sói acontecer nesse período da vida. Como sempre, o contato com ela não mobilizava a magnitude da angústia trazida pelos pais. Sua inquietação parecia antes fruto de um excesso de vitalidade do que de uma potência para a destrutividade. Foi fi cando claro o quanto Tiane precisava articular na malha simbólica sua inquietude, em seu caso fonte de vitalidade e curiosidade, mas também de um excesso antes diruptivo do que propriamente destrutivo. Contavam, acima de tudo, o desejo e a curiosidade de viver algo radicalmente diferente do que aprendera com a família. Ela sentia que não cabia mais no mundo familiar. Nesse sentido, seu grupo de amigas, e depois de amigos, passou a ser a referência fundamental.

Nos tempos iniciais de sua análise, Tiane invadia meu consultório e meus ouvidos com uma massa viva de “ii”: em seu grupo de referência todos tinham apelidos com “ii”. Quando Tiane saía do consultório, este permanecia cheio de adolescentes: eu os sentia, via-os pulando e saltando à minha frente, como se tivessem ficado ali comigo. Por vezes eu fi cava particularmente atordoada. Parecia uma verdadeira perseguição, que conferia a seu relato, sempre muito vivaz, uma estranha melodia pastosa, na qual destacavam-se tons agudos, dissonantes. Eu não conseguia localizá-la dentro da massa de “ii”. O que Tiane queria com isso? Foi então que notei que eu vivia na carne o que ela me solicitava – ela, que sempre se esmerava em agradar, pedia-me que a destacasse, pois tinha pavor de ser diferente do grupo, de se descolar da massa informe. É que Tiane já dava vários indícios da fragilidade do projeto de viver grudada ao grupo.

É evidente que tudo isso faz pensar no narcisismo, no pavor de deixar de ser amada, na revivescência da relação pré-edípica com a mãe, bem como na fragilidade da entrada da fi gura paterna. Mas, tudo isso fazia parte de um cabedal de idéias já conhecido, a respeito do período adolescente. O que não sabíamos, e que continuava pulsando, era a interrogação: por que veio Proust nos auxiliar nessa travessia? Esse fenômeno, o que mais me intrigava, foi o fulcro da entrada de Proust no caso. Por que a teoria psicanalítica necessitou desse reforço?

Voltemos, pois, ao segundo volume – À sombra das raparigas em fl or –, que me ocupou enquanto Tiane se envolvia em mil e uma peripécias. No romance, assim como em minha vida, deu-se, abruptamente, a entrada triunfal do grupo de moças no balneário de Balbec que vai ocupar a mente de Marcel daí em diante, invadindo sua recém-terminada meninice. Assim como entraram, em meu consultório e em minha vida, Tiane e seu grupo de garotas.

A intensidade, a beleza e, principalmente, a precisão da descrição de Proust desviaramme da direção de um furor interpretandi. Essa dilatação temporal que ele provocou em mim ajudou a compreender, sem prejudicar com intervenções precoces, os delicados movimentos de Tiane, que desembrulhava suas histórias no grupo e também quando começou a destacarse dele.

Será necessário que eu reproduza alguns trechos do próprio Proust, cuidadosamente selecionados como os mais sugestivos, para que o fenômeno de suporte clínico possa ser retratado. Peço portanto um pouco de paciência, pois desejo demonstrar como foi que isso aconteceu. Vejamos como Proust descreve a irrupção do grupo de garotas em sua vida:

Quando, quase ainda na extremidade do dique, onde faziam mover-se uma estranha mancha, vi que se aproximavam cinco ou seis mocinhas, tão diferentes, no aspecto e maneiras, de todas as pessoas com quem estávamos acostumados em Balbec, como o seria, chegado não se sabe de onde, um bando de gaivotas que executa na praia a passos medidos – as retardatárias alcançando as outras num vôo – um passeio cuja fi - nalidade se antolha tão obscura aos banhistas, a quem elas não parecem ver, quão claramente determinado por seu espírito de pássaros. [8]

Era assim que Tiane irrompia no consultório, com seu bando de gaivotas e sua incompreensível algaravia. Pois um dos maiores encantos da juventude não está justamente em quebrar o costume? E eu, qual uma banhista tola, observava o passeio de sua turma pelo mundo, cuja fi nalidade se me antolhava tão obscura! Era a estranha mancha.

A falar a verdade, fazia tão poucos instantes que eu as via e sem ousar olhá-las fi xamente, que ainda não tinha individualizado a nenhuma delas […] quando (segundo a ordem em que se desenrolava aquele conjunto maravilhoso… mas que era confuso como uma música de que eu não pudesse isolar e reconhecer as frases no momento da sua passagem, distinguidas mas esquecidas imediatamente depois), eu via emergir um oval branco, olhos negros, olhos verdes, não sabia se eram os mesmos que já me haviam trazido encanto ainda há pouco, e não podia reportá-los a determinada menina que eu tivesse separado das outras e reconhecido. [9]

A leitura de inúmeros trechos como esses, pois o autor é pródigo em descrições fi nas e precisas, me mostrou que aquilo de que falava Tiane e que impregnava a atmosfera da minha sala era apenas um reflexo da vitalidade, da confusão e falta de nitidez dela própria dentro do grupo. Por isso eu não conseguia vê-la. Desse modo, descobri que Tiane singelamente me falava das evoluções de seu bando no ar, através dos diques de sua imaginação. Quem vinha às sessões era a mancha.

Então me dei conta: Proust, pelo acúmulo da repetição das descrições do bando, havia subrepticiamente formulado a noção de mancha – a perda de identidade que experimentamos ao entrar na adolescência, que dissolve as individualidades que permanecem indiscriminadas quando o jovem se encontra em grupo. De meu lado bastava observar, “esperar a banda passar” e, suavemente, ajudá-la a destacar-se dessa massa informe. Nada teria utilidade além da espera: era este o trabalho analítico demandado que a discriminaria do grupo. Aos poucos, não sem receio e sem dor, Tiane foi se afastando, para mim e para si mesma, de seu cortejo. Muitas vezes reiterou seu temor desse movimento, inevitável considerando-se seu nível de articulação mental, sem dúvida mais aguçado que o da turma. “O que fazer com o pensamento e com a possibilidade de enxergar?”, ela me indagava, nesta dialética entre o amor e o temor da multidão. O mesmo acontece com Albertine, a heroína de Marcel.

Na bela defesa que faz Antonio Candido [10] do direito fundamental de todo ser humano à fruição literária, encontramos esta bela passagem: “O caos originário, isto é, o material bruto a partir do qual o produtor escolheu uma forma, se torna ordem; por isso, o meu caos interior também se ordena e a mensagem pode atuar. Toda obra literária pressupõe esta superação do caos; determinada por um arranjo especial das palavras e fazendo uma proposta de sentido”. Foi desta maneira que a massa de “ii” tomou forma na idéia de mancha.

Assim, amarrando estes vários pontos, me pareceu ser a adolescência: um paradigma tanto da ruptura de campo quanto das múltiplas vozes identitárias que nesse período se delineiam, objeto do livro de Herrmann, muito esclarecedor a este respeito, A psique e o eu.

Mais uma vez Proust vem em nosso socorro. Como diz Antonio Candido, percebendo ou não, as formas pertinentes advindas da literatura ajudam- nos a organizar nossa experiência psíquica e nossa visão de mundo. Várias passagens de À sombra das raparigas em fl or dão testemunho de uma verdadeira teoria dos múltiplos eus, e menciono uma das que mais me agradaram:

Havia, pelo menos, duas Gilbertes. As duas naturezas, a do pai e da mãe, não se limitavam a misturar-se nela; disputavam-na, e ainda seria falar inexatamente e faria supor que uma terceira Gilberte sofria durante esse tempo por ser presa das duas outras […] E às vezes tamanha era a distância entre as duas Gilbertes que a gente se perguntava, aliás em vão, o que lhe poderia ter feito para encontrá-la assim tão diferente. [11]

Se pudermos respeitar e acolher esses movimentos sutis sem intervenções superegóicas, nos resguardamos do risco de tentar induzir no adolescente a idéia de uma solução identitária, que só poderia se constituir como prótese. Todavia, nem tudo é movimento. Existe, ainda que ilusório e cobrando sua importância, o eu regente de determinado ciclo vital, ou eu principal, aquilo que tanto parece procurar o adolescente.

O jovem busca o conhecimento. Creio que é isso que devemos ajudá-lo a agenciar: que eus são esses, quais suas potencialidades realizáveis, que disfarces [12] servem, quais atrapalham, qual o eu principal, em vez de reduzirmos sua análise a alguns poucos vieses interpretativos.

III. Alguns elementos de análise literária

Considero que a entrada de Proust em meu trabalho teórico clínico foi de molde a se consumar em mim, como analista, a operação de ruptura de campo. Embora eu estivesse convencida de que Tiane não poderia ser pensada apenas com base nas teorias usuais sobre a adolescência e, nesse sentido, já me utilizando de algumas referências teóricas pouco habituais em nosso meio – Ferrari, Garcia-Roza, Herrmann – uma espécie de virada aconteceu através da leitura de Proust. Através da força expressiva de sua escrita, criticamente analisada, fui teoricamente lançada em outro plano. Ou, segundo o comentário de Luvison Pinto [13], foi como se eu encontrasse em Proust a prova literária da reversão dessas expectativas usuais. Seja como for, é importante ressaltar que meu conhecimento da metapsicologia freudiana conduziu, em parte, a minha leitura de Proust. A estranha mancha de garotas, a solda que havia entre elas ganhou novo sentido quando pensada a partir da importância da liga que provê a inelutável corrente homossexual feminina resultante do indispensável relacionamento libidinal entre mãe e fi lha no período pré-edipiano, um dos avatares apontado por Freud no desenvolvimento da feminilidade.

No que diz respeito às relações entre psicanálise e literatura, observa-se claramente que a tensão entre criação científi ca e criação literária sempre esteve presente na obra de Freud, do começo ao fi m. Em 1895, ele já lamentava que seus casos se pareciam mais com contos ou novelas do que com relatos científi cos. E, segundo o próprio Freud, sua última grande obra Moisés e o monoteísmo é um romance histórico. Além do mais, Freud criou um gênero literário único [14] – o caso clínico, uma vez que seus casos não são nem um documento, nem um protocolo, nem uma história de vida completa.

Sófocles, Goethe, Schiller, Shakespeare e tantos outros sempre aparecem em momentos críticos em que a linguagem suposta científi ca falha em descrever o fenômeno a ser abordado [15]. Os escritores vêm em seu auxílio de modo a conferir verossimilhança àquilo que está sendo expresso, promovendo uma riqueza de ressonâncias, o que de outro modo, aparentemente, não se realizaria, fornecendo provas daquilo que se quer demonstrar.

Vale a pena lembrar: a verossimilhança em literatura é a faculdade de conferir poder de verdade ao relato fi ccional. É provável que se dê o mesmo com o paciente e, conseqüentemente, com nossa disciplina. A verdade em psicanálise diz mais respeito ao que é verossímil para o paciente do que à verdade consensual, positiva ou factual.

As relações entre Freud, a psicanálise e a literatura são múltiplas e intrincadas. De modo defi nitivo, L. R. Monzani, num excelente texto chamado “A fantasia freudiana”, por meio de uma criteriosa análise do manuscrito recém-descoberto, “Neuroses de transferência: uma síntese” [16], comprova minuciosamente que Freud, de fato, fantasiava cientifi camente. Na verdade, era este seu modo de trabalhar. Um texto, aparentemente aberrante, onde as neuroses e as psicoses são assimiladas a repetições fi logenéticas de eras geológicas pelas quais passou a Humanidade, como assevera Freud no Manuscrito… [17], encaixa- se perfeitamente dentro da fantasia científi ca freudiana, ou seja, sua metapsicologia.

Como já disse mais atrás em relação à análise de Tiane, aconteceu de estar lendo o volume já referido que descreve o período da adolescência do herói, entre os sete que compõem o grande romance de Proust. Não foi qualquer outro autor, nem foi lido solitariamente. Na análise literária chega-se mesmo a comentar que Freud e Proust podem ser tomados como autores complementares. Aonde um chega pela via sensual, o outro vai pelo caminho do conceito. Nesse sentido, os elementos de análise literária abriram caminho à narrativa de Proust para o interior da articulação de meu pensamento clínico. Devido à importância desses elementos, gostaria de sintetizá- los aqui, para que se tenha uma idéia do proveito decorrente de seu emprego.

Em busca do tempo perdido é um romance inusitado, onde o herói descreve meticulosamente seu aprendizado do mundo por meio de uma consciência narrativa. O leitor, se quiser se situar a partir desta perspectiva, chega a aprender para a própria vida observando a experiência de Marcel, este estranho narrador, pois vive com ele a descoberta do código de funcionamento da sociedade francesa, no período compreendido entre 1880 e 1920. É o retrato de uma história de época, contada sob forma literária. Ademais, Proust satisfaz o leitor interessado nas mais diversas experiências humanas com seu relato agudo, repleto de nuances, da complexidade das emoções e dos relacionamentos, no decorrer das diferentes estações da vida.

Este estranho narrador sensibiliza o leitor para um registro de leitura muito próximo à atmosfera analítica. Isso, por si só, já realiza uma perturbadora aproximação com a atividade clínica.

Proust explora uma conclusão extraordinária: a realidade se escondeu na subjetividade, como se fora realismo. Sua questão é: como tornar o real inteligível, mesmo nas suas obscuridades, mesmo na obscuridade da vida real? A psicanálise e a literatura conhecem um mesmo objeto – o espírito humano. Aquilo de que a psicanálise tenta se aproximar pela via conceptual, a literatura se aproxima pela via da experiência sensual, com toda a riqueza que lhe é inerente. Sabemos, contudo, que o conceito, em psicanálise, é eivado de emocionalidade, mas nem por isso deixa de lado sua aspiração ao universal, ainda que se preserve uma certa tensão pertinente à singularidade de cada caso. Sabemos que a literatura e a clínica, ao contrário, lidam com a particularidade e a potência da multiplicidade de sentidos.

Para terminar: Kafka

Perto de terminar este artigo, surgiu uma curiosa pergunta que arrastou seu desfecho numa direção inusitada, que passo a relatar agora.

O tempo do absurdo, que o mundo contemporâneo escancara, provoca no indivíduo uma espécie de síndrome de desrealização. Esta é fruto das tensões criadas pelo crescimento abusivo da tecnologia que trazem como resultado a fragmentação do eu, que perde sua relação com a história. Este novo homem torna-se descrente da substancialidade da realidade cotidiana. E como realidade e identidade são, numa acepção de forte teor fenomenológico, dois lados de uma mesma moeda, a uma crise na realidade corresponde uma crise de identidade. Portanto, o que Fabio Herrmann denomina homem psicanalítico, o Homem visto pelo olhar do método interpretativo, é justamente esse homem em crise [18].

Se o paciente a nossa frente, sentado, deitado ou em pé, no consultório ou fora dele, é o homem psicanalítico, ele é o homem do movimento, o ser da revelação, do indeterminado, do vazio de signifi cações pré-determinadas, numa palavra – o homem do absurdo. Desafi ador para a criação, como a obra de arte para um artista, no momento em que vai realizá-la. Mas, na clínica, será este desprendimento sempre possível?

Kafka, o mestre do absurdo, é também mestre confesso de Herrmann, que paga seu tributo à obra kafkiana por considerá-lo, possivelmente, o melhor e mais realista intérprete do século xx, provavelmente aquele que será conhecido como o século de Kafka.

A estratégia narrativa de Kafka constitui em bulir com o absurdo: desrealiza o real para realizar o irreal, que considera o verdadeiro. O narrador, mergulhado na sensação de absurdo, penetra objeto e mapeia a alienação a partir de seu interior. O que causa incômodo, pois o narrador kafkiano ignora o que se passa a sua volta tanto quanto a personagem, fazendo o leitor experimentar a alienação dentro de si.

Hélio Pellegrino [19], na interpretação rara por sua originalidade da obra-prima de Kafka, o romance A metamorfose, considera a transformação desumana de Gregor num inseto como uma redenção, ou seja, a única forma possível de se salvar da condição alienante em que vivia; a de ser o objeto de sacrifício da família. Se o processo de alienação na sociedade humana chegou a tal ponto que é impossível pensar num ser humano completamente desalienado, será que nós, analistas, que trabalhamos com uma prática desalienante, não corremos o risco, como Gregor, de nos desumanizar, por uma espécie de efeito colateral indesejável do abuso da “arte de interpretar”?

Será que, por seu efeito desvelador, podemos pensar em nosso método de trabalho como uma das fi gurações, das mais privilegiadas, do absurdo reinante? E porventura o analista seja uma sorte de personagem kafkiano? Ou melhor, freudiano? Uma vez que Fabio acredita ser o analista uma personagem do grande enredo elaborado por Freud, através da criação e das peripécias do movimento psicanalítico [20].

Ao prosseguir na pesquisa de uma clínica calcada no método psicanalítico, vê-se logo que as implicações da misteriosa condição de Gregor Samsa darão ensejo para muito o que pensar. Será que não estamos expostos a amanhecer, um belo dia, estranhamente transformados, como Gregor Samsa?

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Percurso é uma revista semestral de psicanálise, editada em São Paulo pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae desde 1988.
 
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